Postado em 03/09/2007
Para reduzir custos, empresas distorcem conceito de associativismo
ANDRÉ CAMPOS
Cooperjeans: prejudicada pelo "efeito Cooperbrim"
Foto: André Campos
Trabalhadores donos do próprio negócio, repartindo entre si a riqueza criada. Esse é um dos princípios basilares das cooperativas, entidades nascidas na Europa do século 19, durante a Revolução Industrial, quando antigos artesãos, combalidos pela competição das máquinas, buscavam meios para sobreviver que não o trabalho em fábricas insalubres. No Brasil, antes da virada para o século 20, já pipocavam as primeiras experiências do gênero. E, atualmente, são 7,6 mil empreendimentos registrados na Organização das Cooperativas Brasileiras (OCB) – órgão máximo de representação do segmento –, com faturamento total, em 2007, superior a R$ 72 bilhões.
Mas nem tudo são boas notícias nesse enorme crescimento. Em meio às estatísticas, esconde-se um número considerável de entidades criadas com o intuito de driblar leis trabalhistas e os altos encargos da carteira assinada – que podem ultrapassar 100% do salário. Funciona assim: o empregador, em vez de contratar funcionários, vale-se de indivíduos formalmente instituídos como "cooperados", que, em teoria, "prestam serviços" à sua empresa. No dia-a-dia, estão subordinados a patrões, ordens e horários. A artimanha muitas vezes ocorre durante verdadeiros processos de reestruturação interna, em que trabalhadores são demitidos e reacomodados como membros de cooperativas.
Há casos em que tais arranjos contam com o apoio dos profissionais envolvidos – já que, sem os encargos, cresce a margem para negociar remunerações maiores. No entanto, principalmente entre classes trabalhadoras menos favorecidas, muitíssimas situações são sinônimo claro de precarização. Em áreas como telemarketing e serviços rurais, por exemplo, os "cooperados" não raro recebem menos do que o piso de sua categoria. E, alijados da carteira de trabalho, perdem direitos como férias, auxílio-doença e Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS).
"Existem de fato muitas cooperativas constituídas para intermediar mão-de-obra barata. Talvez sejam até maioria em algumas áreas", diz Marcelo Mauad, assessor jurídico da União e Solidariedade das Cooperativas e Empreendimentos de Economia Social do Brasil (Unisol Brasil) – uma das principais entidades de representação do cooperativismo nacional, com mais de 200 empreendimentos filiados. Diante desse cenário, surge o desafio de combater as fraudes sem, no entanto, prejudicar iniciativas autênticas de economia solidária. Uma complexa tarefa de separar o joio do trigo, que vem gerando faíscas entre cooperativas e representantes do poder público.
Origens
O surto das chamadas "cooperfraudes" no Brasil remonta à década de 1990, quando a abertura às importações quebrou parte das indústrias e levou outras tantas a uma busca feroz por menores custos de produção. Segundo Paul Singer, secretário nacional de Economia Solidária do governo federal, essa conjuntura, aliada ao desemprego em massa, tornou tal arranjo viável. "Durante os anos anteriores ao golpe militar de 1964 e nos anos do milagre econômico, as empresas disputavam a mão-de-obra, inclusive oferecendo mais benefícios do que os estritamente exigidos por lei", explica ele.
Apesar disso, o setor citrícola brasileiro, líder mundial de produção, evidencia esse subterfúgio mesmo em segmentos sabidamente competitivos no cenário internacional. Na década de 1990, as grandes processadoras de suco investiram em pomares próprios, chegando a produzir até 40% da laranja consumida em algumas de suas indústrias. Tal conjuntura, de acordo com estudo de Luiz Fernando Paulillo, professor do Departamento de Engenharia de Produção da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), reduziu o poder de barganha dos fazendeiros fornecedores. Nesse contexto, a terceirização maciça de safristas na colheita virou a tônica para reduzir custos. "De 1996 a 1999, tornar-se cooperado deixou de ser livre opção e transformou-se num ato compulsório", afirma Paulillo. Nos anos seguintes, a fiscalização reduziu substancialmente a prática no setor.
Dados do Ministério Público do Trabalho (MPT) divulgados em maio de 2007 ajudam a dimensionar o tamanho do problema. Na ocasião, um levantamento em todas as regiões do país indicou a existência de aproximadamente 10,5 mil processos investigatórios em andamento sobre fraudes nas relações de trabalho. Desse total, nada menos que 20% envolviam cooperativas, totalizando 586 ações civis públicas ajuizadas com foco em entidades desse gênero.
A maioria das situações concentra-se nas chamadas cooperativas de trabalho. O cooperativismo divide-se em diversos ramos: há, por exemplo, as cooperativas de crédito, voltadas ao financiamento das necessidades de seus membros, e de consumo, onde cooperados se juntam para comprar artigos comuns no atacado, pagando menos. Entre todos eles, o ramo do trabalho foi, de longe, o que mais cresceu nos últimos 15 anos. Nos registros oficiais, 72,5% dessas entidades surgiram após 1992.
Mas o que exatamente é uma cooperativa de trabalho aceitável? Não há clareza e consenso quanto a isso. A OCB define tais cooperativas como entidades que englobam pessoas associadas para a prestação de serviços diversos. Trata-se de um guarda-chuva amplo, que dá margem às mais diferentes interpretações sobre os limites para a atuação dessas organizações.
Professores, vigilantes, digitadores, programadores, pedreiros, bancários e secretários são apenas alguns dos profissionais que passaram a conviver cotidianamente com cooperativas questionáveis. Em São Paulo, o setor da saúde é hoje um dos que mais preocupa, a ponto de se tornar o foco prioritário da fiscalização trabalhista. A Superintendência Regional do Trabalho e Emprego (SRTE/SP) assinou em junho um pacto com o sindicato patronal dos hospitais filantrópicos paulistas, prevendo prazos de quatro a doze meses para que seus filiados deixem de usar cooperfraudes. A SRTE/SP estima em cerca de 10 mil os trabalhadores – médicos, enfermeiros etc. – que podem ser beneficiados.
Lucíola Rodrigues Jaime, superintendente do órgão, defende articulações como essa para alcançar resultados maiores do que os permitidos por fiscalizações pontuais. Ela explica ainda que o objetivo não é punir empregadores de forma a gerar desocupação. "Se num local com um grande número de pessoas trabalhando irregularmente eu der um mês de prazo para registrá-las, a empresa não vai conseguir e vai quebrar", pondera.
Além da iniciativa privada, contratações irregulares que envolvem cooperativas também afetam com ênfase o setor público. Por estarem livres dos encargos trabalhistas, elas obtêm vantagem nas mais diversas licitações – que, via de regra, seguem o critério do menor preço. Nos últimos anos, observa-se, em municípios e estados, uma enxurrada de cooperativas que abocanham serviços como limpeza, conservação e vigilância em escolas e outras instituições.
A presença de falsas cooperativas em licitações, além de burlar os direitos trabalhistas, é apontada como brecha para tráfico de influência. Em maio deste ano, por exemplo, o MPT pediu intervenção na prefeitura de Nova Iguaçu (RJ) devido ao descumprimento de uma decisão judicial que impedia o município de contratar cooperativas de trabalho – prática que, de acordo com o órgão, encobria fins eleitoreiros, visto que políticos indicavam apadrinhados para as cooperfraudes. A prefeitura afirma, por meio de nota, que substitui os terceirizados como há muito não se fazia no município. "Nos últimos três anos, foram feitos sete concursos públicos para um total de 1.544 vagas, das quais 1.090 já foram preenchidas", explica o texto divulgado.
Efeito colateral
A legislação brasileira impõe a carteira assinada à relação laboral em que há subordinação do trabalhador – ou seja, sua obrigação, no dia-a-dia, de cumprir as ordens de um chefe. Também delega ao cooperado autonomia para gerir seu empreendimento, sem a interferência de terceiros – define-o, portanto, como seu próprio patrão.
No papel, simples e objetivo. Na prática, muitas controvérsias e queixas sobre supostos erros de avaliação de fiscais e procuradores, que estariam comprometendo cooperativas autênticas. Em novembro de 2007, um exemplo típico ocorreu em Avaré (SP), quando uma diligência do MPT no galpão da Cooperbrim – cooperativa que reúne cerca de 70 costureiros – classificou a entidade como fachada para mascarar vínculo empregatício entre trabalhadores e indústrias têxteis, já que prestava serviços para duas confecções presentes na cadeia produtiva da multinacional C&A.
Luís Henrique Rafael, procurador responsável pela ação, define a Cooperbrim como nada mais do que uma extensão da linha de produção das empresas beneficiárias. "A parte de costura, que gera corte no dedo, dor lombar, que é a parte suja da fábrica, eles terceirizavam para a cooperativa", indigna-se. Não havia no galpão, segundo ele, equipamentos de proteção adequados ou mesmo condições mínimas de conforto e higiene.
Para o procurador, uma cooperativa que trabalhe para terceiros caracteriza, por si só, fraude. "Em tese, o cooperado não tem chefe, ele trabalha para si próprio, e a Cooperbrim não tem uma produção de tecidos ou mercadorias próprias", atesta. Rafael afirma categoricamente que toda a gestão da entidade estava subordinada aos interesses de terceiros. "Como alegar que há autonomia para um trabalhador que bate cartão e tem metas a cumprir?", indaga.
A Associação Nacional de Trabalhadores e Empresas de Autogestão (Anteag) saiu em defesa da Cooperbrim. José Reitor Rizzardi, assessor jurídico da entidade, argumenta que atender serviços solicitados por clientes não é sinônimo de subordinação a estes. "Os procuradores não enxergam a forma societária", diz. Entre os costureiros, segundo Rizzardi, há autonomia para gerir os rumos do negócio, e seria isso o que caracteriza a autenticidade de uma cooperativa. "As normas são feitas por eles mesmos. Eles decidem em assembléia, por exemplo, a que horas e como querem trabalhar."
A Cooperbrim é formada em parte por ex-funcionários demitidos de uma indústria da região, alguns já com idade avançada. Foi criada em 2005 e, à parte os planos existentes para o lançamento de uma marca própria, produz para vários clientes no sistema de "facção" – em que entidades terceirizadas especializam-se em etapas específicas da confecção de um artigo. A ação proposta pelo MPT não foi julgada ainda. Há queixas, contudo, de que a perda de clientes com a repercussão do caso já inviabilizou a organização.
Como em muitas outras entidades do gênero, vigora na Cooperbrim um sistema de repartição das receitas em que há distintas faixas de retirada, dependendo da função exercida por cada um. Essa prática, de acordo com o procurador Rafael, contraria o princípio da distribuição democrática dos ganhos, sendo mais uma prova da fraude. "A presidente e a tesoureira tinham uma remuneração fixa maior. Assim, a cooperativa passa a ser uma empresa, com hierarquia", diz.
Para Rizzardi, tal visão remete a preconceitos sobre o cooperativismo. Uma coisa, diz ele, é a gestão da sociedade – realizada por meio de assembléias, onde cada cooperado tem seu voto para decidir, por exemplo, a organização do trabalho e como serão divididos os ganhos. Outra é a gestão do negócio, que requer hierarquia e diferentes funções. "Não é porque se trata de uma cooperativa que cada um faz o que quer", afirma.
Após a diligência, as confecções clientes da Cooperbrim comprometeram-se com o MPT a não mais utilizar serviços de falsas cooperativas. A C&A também foi acionada e firmou acordo para informar todos os seus fornecedores de que irá rescindir contratos caso se descubram cooperfraudes em suas cadeias produtivas.
À parte as discussões sobre a legalidade da Cooperbrim, esse tipo de acerto – associado à insegurança sobre o que é ou deixa de ser uma cooperativa autêntica – gera reclamações constantes de que, como efeito colateral no combate às ilegalidades, autoridades estariam prejudicando segmentos inteiros de economia solidária. A Cooperjeans, uma "facção" de costureiros localizada no município vizinho de Arandu (SP), é uma das que se diz atingida pelo "efeito Cooperbrim". Segundo Maria de Lourdes Roder, presidente da entidade, houve perda de clientes após o episódio. Em busca de novos compradores, ela diz que, atualmente, fecham-se as portas quando se menciona a palavra "cooperativa".
Na esfera pública, diversos níveis administrativos também têm assumido compromissos restritivos com o MPT. Em 2003, foi o próprio governo federal que divulgou uma lista de atividades – por exemplo, serviços de limpeza, recepção e de escritório diversos – que não mais poderiam, de forma alguma, ser contratadas por meio de cooperativa, sob pena de multa.
Guilherme Krueger, assessor jurídico da OCB, critica a decisão. A seu ver, trata-se de uma simplificação nefasta: já que não se encontram formas eficazes de inibir as cooperfraudes, veta-se o acesso de todo o cooperativismo aos serviços terceirizáveis. "Na prática, significa dizer que, se você for faxineiro, só pode ser empregado", reclama. Argumentos contrários revelam, mais uma vez, interpretações distintas sobre as possibilidades de relações de trabalho não subordinadas. "A própria natureza dessas atividades impede que elas sejam feitas de maneira autônoma. Faxineiro, telefonista, vigilante autônomo? Não existe isso", afirma o presidente da Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho (ANPT), Fábio Leal Cardoso.
Marco legal
Em 2006, com vistas a desfazer o infindável imbróglio das cooperativas de trabalho, o Executivo encaminhou à Câmara dos Deputados um projeto de lei para regulamentar, de uma vez por todas, a atuação dessas organizações. Desde abril deste ano, após muitas emendas e discussões, a matéria está pronta para ser votada pelos deputados.
Além de ressaltar, mais uma vez, que cooperativas não podem intermediar mão-de-obra subordinada, a proposta define uma série de regras mínimas para que elas possam funcionar. O ganho dos trabalhadores, por exemplo, não pode ser menor do que o piso de sua categoria, e a jornada fica limitada a 44 horas semanais. Torna-se, além disso, obrigatória a criação de fundos, de modo a garantir aos cooperados direitos semelhantes ao 13º salário e ao FGTS. Quanto às normas de segurança e de saúde, as cooperativas obrigam-se a segui-las, e há também parâmetros que visam garantir, por meio das assembléias, democracia na gestão dos negócios. Outra inovação do projeto é a criação do Programa Nacional de Fomento às Cooperativas de Trabalho (Pronacoop), que objetiva apoiar empreendimentos através de linhas de crédito.
Juízes e procuradores mantêm um pé atrás quanto ao novo marco jurídico. Cláudio José Montesso, presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra) diz temer a "legalização do ilegalizável" – ou seja, que a garantia de direitos mínimos vire um escudo para justificar a presença de cooperados em relações empregatícias. Nesse contexto, tanto a Anamatra quanto a ANPT já manifestaram publicamente apreensão com a possibilidade de que a proposta incentive a evaporação de milhares de postos com carteira de trabalho.
O projeto também não é unanimidade entre representantes de cooperativas. Rizzardi é outro que vê nele uma janela para a precarização. "Com o estabelecimento de ganhos mínimos, eles serão máximos quando se quiser explorar o trabalhador", diz. Ele critica ainda os fundos e remunerações impostos – metas que, ao engessar recursos, podem inviabilizar organizações nascentes ou em momentos de retração nos negócios.
Já a OCB encampa a proposta. Para Krueger, as novas regras aproximam o custo do trabalho cooperativo ao do emprego – situação que, pelas próprias leis de mercado, desencorajaria fraudes. "Só se interessará em organizar cooperativas quem quiser optar pela autogestão", afirma ele. A Unisol Brasil também apóia o projeto, apesar de ver, como a Anteag, riscos para empreendimentos devido ao aumento dos custos. Dessa forma, diz Mauad, é fundamental que o Pronacoop dê prioridade a cooperativas em dificuldades momentâneas – algo que, no entanto, não pode ser sinônimo de subsídios de longo prazo. "Não se pode insistir com organizações que não demonstrem viabilidade econômica. Isso não é bom para ninguém."