Movida a paixões
A compositora Chiquinha Gonzaga escandalizou a sociedade ao desistir do casamento, abraçar a abolição, lutar pela República e viver do próprio trabalho
Chiquinha Gonzaga rompeu padrões em nome de suas paixões: pela música, por desejar mais de sua condição do que a sociedade esperava de uma mulher, por seus amores proibidos. Foi renegada pela família, mas viveu intensamente a vida. O próprio nascimento, em 17 de outubro de 1847, significou a quebra de um tabu. A mãe, Rosa, pobre e mulata, casou-se grávida com o militar José Basileu Neves Gonzaga, que, contrariando as determinações de sua família, assumiu a menina como filha.
A partir daí, Francisca Edwiges Neves Gonzaga foi criada de acordo com os costumes do Rio de Janeiro imperial. "Chiquinha foi educada em um lar tradicional e a ascendência humilde de sua mãe foi excluída de seu registro de nascimento por seu pai, para garantir-lhe um bom casamento", explica a socióloga Edinha Diniz, autora da biografia Chiquinha Gonzaga: uma História de Vida (Rosa dos Tempos, 1999).
No meio da sala havia um piano
Assim como em toda casa de família proeminente do século 19, no lar dos Gonzaga havia um piano - símbolo de refinamento e status. A menina aprendeu a tocá-lo cedo, antes dos 10 anos de idade. Aos 11, apresentou sua primeira composição, Canção dos Pastores, em uma festa de Natal, acompanhada pelo irmão Juca e pelo tio e padrinho, Antônio Eliseu, flautista e músico popular.
Cumprindo a determinação de arranjar-lhe um casamento nobre, José Basileu uniu-a ao jovem e promissor Jacintho Ribeiro do Amaral quando ela tinha 16 anos, mas "a aproximação com a música logo lhe causou problemas conjugais", revela Edinha.
Em entrevista ao documentário Chiquinha Gonzaga: A Primeira Maestrina do Brasil, dirigido por Guilherme Fontes - e disponível no endereço eletrônico www.chiquinhagonzaga.com -, o musicólogo Ary Vasconcelos conta que o marido de Chiquinha tentou afastá-la da música, chegando a levá-la junto com ele para a Guerra do Paraguai.
"Mas isso não deteve Chiquinha. Uma vez distante do piano, ela tratou de arrumar um violão para tocar a bordo", diz. O tumultuado casamento não foi muito longe - ao menos para os padrões da época, que previam enlaces matrimoniais até a morte. "Após cinco anos de casamento e três filhos, ela decidiu sair de casa, para o desgosto da família, que a deu como morta", afirma Edinha. "Separação naquele tempo era sinônimo de marginalização."
O preço da fama
Aos 22 anos, Chiquinha começa a viver do próprio trabalho, compondo e dando aulas de piano - algo impensável para uma mulher de seu nível social. É quando decide morar com o bon vivant João Batista de Carvalho, conhecido como Carvalhinho, com quem teve uma filha, Alice. Desnecessário dizer que a união provocou escândalo geral. O casal mudou-se, então, do Rio de Janeiro para o interior de Minas Gerais, em busca de sossego.
Porém, pouco tempo depois, Chiquinha volta para o Rio, desiludida com Carvalhinho e convicta de que não nascera para o casamento. "Ela passa a tocar em bailes e salões", explica a pianista e intérprete das músicas de Chiquinha, Clara Sverner. "Mas sua música, fortemente influenciada pelos ritmos europeus, começa já nessa época a se misturar com o som que vinha das ruas."
Em 1887, veio o primeiro sucesso, a polca Atraente, vendida em edição luxuosa e com direito a retrato da artista na capa. Atraente foi exaustivamente assoviada pelas ruas do Rio de Janeiro, principal forma de popularização da música na época. Chiquinha Gonzaga se torna conhecida, provocando a ira da família, que destrói suas partituras postas à venda e a proíbe de ver a filha Maria.
O feminino de maestro
Quando o teatro de revista chegou ao Brasil, ela percebeu que podia fazer música para aquele tipo de espetáculo. No entanto, ao compor para a peça Viagem ao Parnaso, de Arthur Azevedo, no início dos anos 1880, teve seu trabalho recusado por preconceito. "O empresário do espetáculo pediu que ela usasse um pseudônimo masculino, mas Chiquinha apenas pegou suas partituras e foi embora", explica Edinha Diniz.
Acostumada a contornar as dificuldades, dois anos depois, em 1885, fez sua estréia com a peça A Corte na Roça, de Palhares Ribeiro.
Em sua segunda peça, A Filha do Guedes, uma surpresa: além de compor, ainda se atreveu a reger. Mais uma celeuma era criada em torno dela - a começar pelo fato de que, até então, ninguém conhecia o feminino da palavra maestro. "A imprensa chegou a chamá-la de 'maestra', até encontrar a palavra correta, maestrina", ressalta Edinha.
Em 1899, aos 52 anos, Chiquinha compôs aquela que, até hoje, é sua obra mais conhecida, a marcha carnavalesca Ó Abre Alas, dedicada ao cordão Rosa de Ouro. A canção é considerada por estudiosos como um dos grandes exemplos de sua postura vanguardista. "Ela antecipou em 18 anos o estabelecimento da marcha como ritmo oficial do Carnaval", explica o musicólogo Jair Severino.
Naquele mesmo ano, Chiquinha conheceu o português João Batista Fernandes Lage, um jovem de 16 anos, e começou a viver com ele. Para evitar uma reação violenta da sociedade, a compositora passou uma temporada em Portugal e voltou apresentando o companheiro como filho. A relação durou até a morte da artista.
Elo perdido
O pioneirismo de Chiquinha Gonzaga extrapolou o âmbito musical e pessoal e rendeu muitas histórias. "Ela se envolveu em todas as causas sociais de seu tempo, como a abolição da escravatura e a proclamação da República", declara Edinha. O compositor e ator Mario Lago, em entrevista ao documentário de Guilherme Fontes, conta que chegou a conhecer Chiquinha e ressalta seu lado participativo.
"Ela foi pioneira em estimular a participação do artista na política", afirma. Em 1911, a compositora se envolveu em uma nova causa, a defesa dos direitos autorais.
Ela foi despertada para o tema depois de encontrar partituras suas sendo vendidas sem crédito em Berlim e perceber que quem realmente lucrava com os espetáculos eram os empresários e não os artistas.
Em 1917, é então fundada a Sociedade Brasileira de Autores Teatrais (Sbat). "Chiquinha foi sua idealizadora e primeira associada", garante a biógrafa. O episódio envolvendo o maxixe Corta Jaca também ilustra o tipo de reação que a figura e a música de Chiquinha eram capazes de provocar. Segundo Edinha, em 1914, a então primeira-dama da República, Nair de Tefé, esposa do marechal Hermes da Fonseca, resolveu incluir a composição na programação de uma recepção no Palácio do Catete, sede do governo federal.
A própria primeira-dama, numa tentativa de inserir a música popular em ambientes mais formais, executou a peça ao violão - instrumento que não era bem-visto pela sociedade no início do século 20. O então senador Rui Barbosa reagiu com virulência ao "atrevimento", defendendo que aquele tipo de música jamais seria adequado a ambientes ditos "de respeito".
Para a socióloga, embora Chiquinha Gonzaga tenha criado 77 peças de teatro e mais de 2 mil composições, a amplitude de seu legado permanece desconhecida para o grande público. "Uma das razões de sua música não ter ficado marcada - como aconteceu com o samba, por exemplo - se deve às características dela, de ser uma transição entre ritmos europeus e brasileiros", explica.
"A marcha Ó Abre Alas nunca foi esquecida, mas muitos acham que se trata de uma composição de domínio público. Sua obra é como um 'elo perdido' entre a música européia e o samba, e deve ser estudada a partir dessa perspectiva."
Para o musicólogo Jairo Severino, Chiquinha e seus parceiros, Ernesto Nazaré e Anacleto de Medeiros, são responsáveis pelo 'abrasileiramento' da música tocada nos salões no fim do século 19. "Chiquinha compôs muitas polcas que, tocadas à moda brasileira, viraram choros", revela. A primeira maestrina brasileira morreu em 28 de fevereiro de 1935, durante o Carnaval, no Rio de Janeiro.
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Mulheres modernas
A musicista Chiquinha Gonzaga fez parte de um seleto grupo bem distante do que se convencionava chamar de senhoras de família.
Uma rápida revisão da condição das mulheres da época de Chiquinha Gonzaga ajuda a entender quão pioneira, inovadora e ousada foi a compositora. Durante o período conhecido como Brasil Colônia, de 1500 a 1822, era praticamente impossível uma mulher conseguir fugir do padrão "esposa e mãe". Afinal, a única instrução que recebia era sobre tarefas domésticas.
Maria Amélia de Almeida Teles, autora do livro Breve História do Feminismo no Brasil (Brasiliense, 1993), conta que as mulheres que se "rebelavam" eram mandadas para conventos, destino comum também àquelas que não conseguiam arranjar casamento. Depois da declaração da Independência, em 1822, algumas mulheres começaram, timidamente, a reivindicar o direito à educação.
"Permissão" concedida, mas com restrições. As alunas só estudavam até o 1º grau e, em matemática, só aprendiam as quatro operações. Na obra, Maria Amélia informa que na metade do século 19 havia no Rio de Janeiro 17 escolas primárias para meninos e apenas nove para meninas. A partir de 1850, campanhas pela abolição da escravatura e pela proclamação da República começaram a eclodir e algumas mulheres, incluindo Chiquinha Gonzaga, passaram a participar dos movimentos.
Segundo Edinha Diniz, autora da biografia Chiquinha Gonzaga: uma História de Vida (Rosa dos Tempos, 1999), a maestrina chegou a alforriar pessoalmente um escravo com o dinheiro que juntou com a venda de suas partituras. Chiquinha Gonzaga fez parte de um grupo diminuto, mas formado por mulheres poderosas, entre elas a feminista Nísia Floresta, a romancista Maria Firmina dos Reis, a jornalista Narcisa Amália e a bailarina Maria Baderna (aquela mesma que deu origem ao termo que hoje significa "bagunça").
Por outro lado, a maioria das "senhoras de família" achava Chiquinha uma aberração. "Chegavam a vaiá-la na rua quando a viam usando um lenço amarrado nos cabelos em vez do tradicional chapéu", afirma a atriz Rosamaria Murtinho, que interpretou a musicista na peça Ó Abre Alas, em 1998, no documentário Chiquinha Gonzaga: A Primeira Maestrina do Brasil, dirigido por Guilherme Fontes - disponível no endereço eletrônico www.chiquinhagonzaga.com.
Apesar de ter dado um passo importante em direção à emancipação feminina, Chiquinha escandalizou mais do que serviu de exemplo imediato, na opinião de Edinha. "Tanto que demoramos para ter outra compositora no país, que foi Dolores Duran."
Arrasta-pé
Alunos do centro de música do Sesc Vila Mariana e do Centro Universitário Belas Artes remontam musical de Chiquinha Gonzaga
Na época em que foi escrito, em 1912, o musical Forrobodó (foto) - com música de Chiquinha Gonzaga e texto de Carlos Bettencourt e Luiz Peixoto - não recebeu muito crédito por parte dos produtores. Depois de a própria Chiquinha Gonzaga muito insistir, concordaram em colocá-lo em cartaz, mas por apenas uma semana. A peça, no entanto, foi sucesso absoluto de público e somou 1.500 apresentações, tornando-se o maior sucesso teatral da compositora.
Com o objetivo de lembrar o episódio e trazer a público a música de Chiquinha Gonzaga, o Sesc Vila Mariana remontou Forrobodó, com alunos do seu centro de música e também do Centro Universitário Belas Artes - uma parceria que já dura três anos.
O espetáculo, apresentado nos dias 5 e 6 de dezembro, é uma comédia musical em três atos que revela os costumes cariocas do início do século 20, abordando o comportamento das camadas mais baixas da sociedade da então capital federal sob o ponto de vista das elites da época. Toda a trama acontece em torno de dois grandes eventos, um roubo de galinhas e um grande baile, em que serão apresentados todos os personagens e é desenvolvido o enredo.
A montagem teve coordenação vocal de Gisele Cruz e Eduardo Gonçalves, concepção coreográfica de Juçara Amaral e direção cênica do ator e diretor André Garolli.
