Postado em 08/05/2008
Fortemente presente no imaginário coletivo, a década de 1960 foi palco de uma série de acontecimentos que deixaram marcas indeléveis na metade ocidental do globo. Em meio à miscelânea de eventos e inovações inimagináveis anos antes, basta lembrar a chegada do homem à Lua, a descoberta da pílula anticoncepcional e a escalada da Guerra Fria. Foi quando uma onda de questionamentos estendeu-se até os domínios do establishment e originou um movimento conhecido como contracultura, cujas primeiras manifestações surgiram nos EUA, embaladas pela efervescência do rock e regadas a experiências com drogas lisérgicas. Esses jovens tinham gurus – como Timothy Leary (considerado pai da droga conhecida como LSD) e Jim Morrison, líder da banda The Doors.
Além de negar o sistema, veneravam as tradições esotéricas do oriente e reuniam-se em grandes manifestações que entraram para a história. Como marcos desse movimento, é possível citar o festival de música de Woodstock, em 1969, e a revolução estudantil de maio de 1968, em Paris. No ideário, a proposta de uma realidade alternativa, anseio de uma juventude que desejava se distanciar da sociedade vigente. “Isso deu um impulso enorme para o início de revoluções: de costumes, cultural, política, universitária...”, afirma a professora titular de Teoria Crítica da Cultura da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Heloisa Buarque de Hollanda. “É um momento muito rico para jovens, estudantes e artistas, um momento de recusa e invenção. Começam ali várias experimentações contra o sistema, que impunha normas rígidas para se viver.”
Ao contrário de outros momentos na história da humanidade, em que se propunha mudar a sociedade à força – a Revolução Francesa, que destronou a monarquia na França, é um exemplo –, a contracultura pregava uma sociedade traduzida na atitude e no comportamento dos hippies e da vida comunitária, cujo lema era paz e amor. “A mudança da sociedade proposta pela contracultura tinha um método bem diferente daquele apregoado pelos ‘revolucionários tradicionais’”, explica o jornalista Luiz Carlos Maciel – para muitos, guru da contracultura no Brasil. “Não havia ação política, luta armada, guerrilha ou qualquer coisa que provocasse uma mudança radical.” Maciel conta ainda que a transformação viria pela “vida alternativa”, que progressivamente intentava desligar-se do “mundo organizado”, criando outras formas de viver. “Mais livres, mais humanas, mais satisfatórias”, esclarece o jornalista, um dos fundadores do semanário O Pasquim.
Acima, os albúns Disraelo Gears (1967), do Cream; Incense and Peppermints (1967), do The Strawberry Alarm Clock; Recital na Boite Barroco (1968), de Maria Bethânia; e Magic Bus - The Who on Tour (1968), do The Who.
Precursores
Historicamente, pode-se dizer que o movimento foi muito influenciado pela geração beatnik, da década anterior, formada por jovens que não se ajustavam ao american dream, o sonho americano do pós-Segunda Guerra. Os ícones beat, escritores como Allen Ginsberg, Jack Kerouac e William Burroughs, abraçavam a alternativa de largar tudo e se lançar na estrada, em busca de viagens para o corpo e para a alma, tema tratado no célebre livro On the Road (1957), de Kerouac.
Nessa época, começa a busca por filosofias orientais, que viriam a ter grande influência nos anos de 1960 e 1970. “Tem um ditado que diz que o vencedor é vencido por sua própria cultura, e foi o que aconteceu depois da Segunda Guerra Mundial”, afirma o artista plástico José Roberto Aguillar, também “representante” da contracultura no Brasil. “Muita coisa da cultura japonesa, principalmente o zen-budismo, entrou pela costa oeste dos Estados Unidos e influenciou muito a beat generation, os beatniks. Essas novas idéias se espalharam pelo mundo e por várias manifestações artísticas, inclusive a pintura.”
Foi a partir daí que começaram a surgir as comunidades alternativas nos Estados Unidos e também as grandes manifestações de rua da juventude, como a de 1967, em São Francisco, chamada de Verão do Amor, com a participação do próprio Ginsberg. No entanto, a mobilização que realmente passou para a história como o ápice da contracultura aconteceu do outro lado do Atlântico, na França, em maio de 1968. Apesar de ter se iniciado com uma greve de operários franceses, o movimento logo perdeu a característica exclusivamente política para ser encabeçado pelos estudantes.
Clássico Sem Destino (Easy Rider), de 1969, um dos símbolos do espírito de liberdade almejado pela contracultura. |
Ecos brasileiros
Enquanto isso, no Brasil, muitos artistas dialogavam com os ecos da contracultura vindos dos Estados Unidos e não demoraram a incorporar elementos da “versão européia”. Alguns foram à França exatamente durante as manifestações de 1968, como o grupo Oficina, de José Celso Martinez Corrêa, que tinha ido apresentar, em Paris, uma das suas montagens, representante da contracultura brasileira: O Rei da Vela, adaptada do escritor modernista Oswald de Andrade, pai da antropofagia. Era o início do Tropicalismo, uma manifestação brasileiríssima que se inspirou nos ideais transgressores da contracultura. A corrente musical liderada por Caetano Veloso, Gilberto Gil e Torquato Neto, entre outros artistas, propôs mudanças inspiradoras para as gerações seguintes – como o uso da guitarra elétrica e a mistura de gêneros, como o bolero, os ritmos folclóricos e a bossa nova. Os tropicalistas, por sua vez, tinham como inspiração o movimento antropofágico. Por isso, também absorviam as tendências que vinham de fora e as incorporavam com o “genuinamente brasileiro”. O compositor Jorge Mautner, uma das mentes criativas do período, resume o ideário nacional: “Se a contracultura começou nos Estados Unidos, na França e na Inglaterra, ela chegou aqui no Brasil para exacerbar a nossa coisa brasileira. Misturamos a marchinha, o frevo... Tem uma antropofagia grande, sempre.” O músico é também autor do livro Deus da Chuva e da Morte (1962), que ficou conhecido como a bíblia dos artistas da contracultura brasileira (a Navegar Editora publicou o livro em 1997).
O Brasil ainda trouxe outra característica peculiar ao movimento. Aqui, a instabilidade política era grande, com uma ditadura militar que enxergava nesses artistas fortes indícios de subversão. “A censura cortou bastante o campo experimental”, diz a professora Heloisa Buarque de Hollanda. “Nossa contracultura teve um feitio diferente da do americano e do francês por causa do viés de resistência, não só ao sistema como também à ditadura. Por isso, os anos 1960 e 1970 foram muito pródigos em novas formas de fazer política”, diz Heloisa. Ela cita o grupo de teatro carioca Asdrúbal Trouxe o Trombone – o mesmo que revelou nomes como Regina Casé e Luiz Fernando Guimarães – entre os que se posicionaram politicamente na época. “Tem também os shows dos Novos Baianos, que cozinhavam no palco, traziam os bebês etc. A diferença entre arte e vida era muito pequena. E tudo isso tinha certo tom de desagravo com a ditadura.
Pôsteres de Bo Diddley, YardBirds e Pink Floyd
Alienação profunda
O movimento que enfrentou a ditadura brasileira também o fez por meio do cinema. Pode-se ver o diálogo na produção underground de Júlio Bressane, como Matou a Família e foi ao Cinema (1969), e Rogério Sganzerla, como O Bandido da Luz Vermelha (1968). A mesma coisa acontecia na pintura, no trabalho de Hélio Oiticica e José Roberto Aguillar. Até o jornalismo teve seu representante, com o lançamento de O Pasquim, terror dos militares. Atualmente, os possíveis frutos do movimento são vistos com certa apreensão por uns e com otimismo por outros. Para Luiz Carlos Maciel, a frase de John Lennon, “o sonho acabou”, é lapidar. “Não vejo muitos resultados do que fizemos naquela época para o Brasil de hoje”, afirma. “Vejo resultados para mim, para o meu aprendizado do valor fundamental da liberdade. Agora, o resto da sociedade permaneceu no que eu considero uma alienação profunda. O sonho acabou, o sonho sempre acaba. O triste é ver que o pesadelo continua.
Já o músico Jorge Mautner não concorda nem com Lennon nem com Maciel. “Hoje tem a contracultura da internet”, anima-se Mautner. “É um número grande de pessoas com muito acesso a qualquer informação, e elas se reúnem em pequenos grupos de acordo com seus interesses; podem facilmente achar sua tribo, organizar encontros, discussões etc. É um meio muito prolífico e, em grande parte, o que a gente gostaria que tivesse acontecido naquele tempo. O sonho está aí, realizado.