Domenico de Masi é um dos mais brilhantes sociólogos da atualidade. Professor de sociologia da Universidade La Sapienza, de Roma, presidente da SIT - Società Italiana per il Telelavoro e diretor da revista Next - Instrumentos para a Inovação, é autor de vários livros. No Brasil, publicou A Emoção e a Regra - Os Grupos Criativos na Europa de 1850 a 1950. Em maio último, durante uma de suas viagens ao Brasil, proferiu palestra para o corpo técnico do Sesc, reunido no Sesc Pompéia. A seguir, entrevista exclusiva de De Masi à revista E.
A que o Sr. atribui o enorme sucesso de suas idéias relativas ao trabalho e ao tempo livre ?
Creio que as pessoas vivenciam o tempo livre com um sentimento de culpa e, ao contrário, eu tento mostrar que ele é uma das coisas mais divinas de nossa vida. Parto do princípio de que o trabalho alcançou uma importância excessiva. A partir do momento em que nascemos, ouvimos falar no trabalho. A família nos leva a uma profissão, nos encaminha, e depois a escola nos lembra continuamente que precisamos nos profissionalizar. Depois vem a empresa, que naturalmente dá cursos de formação e treinamento. Assim, o trabalho se tornou um elemento absorvente. Antes da sociedade industrial, o trabalho tinha seu ritmo sinalizado pelas estações do ano. Hoje, o ritmo é ditado pelas máquinas. E os homens não são máquinas. Veja o desemprego: ele tornou-se um problema da nossa época, até agora sem solução.
A pouca valorização do tempo livre está vinculada à sociedade industrial ?
De um lado, o tempo livre aparece como o grande inimigo dos sacerdotes do trabalho. Esses são como "padres" que chegam ao ponto de sustentar a idéia de que o trabalho nos exime do pecado original, nos libera. Porém só um trabalhador ou uma trabalhadora podem entender o que é o tempo livre. Só quem trabalha, só quem realmente sente o peso do trabalho pode entender o que é tempo livre.
A capacidade para "entender" o tempo livre é uma característica cultural?
A imagem do Brasil é imediatamente ligada à imagem da alegria e do lazer. Quando falamos dos japoneses nunca pensamos em descanso. O brasileiro inventou a rede: a maior invenção de todos os tempos. Ela custa quase nada e proporciona um descanso fantástico. A rede é o oposto da linha de montagem. Os americanos inventaram a linha de montagem e os brasileiros inventaram a rede. Já os japoneses inventaram o haraquiri. O Japão, como os Estados Unidos, é especialista em trabalho estressante. Já o Brasil e a Itália são especialistas em tempo livre. Isso é um monopólio muito grande, pois todos os outros países industrializados, a essa altura, já não conhecem mais o conceito de tempo livre. Como não detêm mais esse conceito, organizam o período de tempo livre que dispõem como se estivessem na indústria.
As pessoas realmente trabalham demais ou não sabem o que fazer do tempo livre?
Na Europa, uma pessoa de 20 anos, de acordo com as estatísticas, viverá mais ou menos até os 80 anos. Então ela tem pela frente uns 60 anos de vida, que correspondem a cerca de 530 mil horas. O que essa pessoa vai fazer durante as suas 530 mil horas? Vamos imaginar que ela comece a trabalhar hoje, aos 20 anos, e que trabalhe sem cessar até os 60 anos. Hoje, trabalha-se entre 1.700 a 2.000 horas/ano. Multiplicadas por 40 anos resulta em cerca de 70 mil horas. Então, essa pessoa tem pela frente 530 mil horas de vida, das quais 70 mil horas serão de trabalho, mesmo sendo um americano ou um japonês. Prosseguindo: 530 mil menos 70 mil dá quase 460 mil horas. O que essa pessoa vai fazer com 460 mil horas? Vai dormir mais ou menos umas dez horas/dia, comer, cuidar de si própria etc. São mais ou menos 230 mil horas. Portanto, ela tem 530 mil no total, sendo 70 mil de trabalho, 230 mil em cuidados pessoais, restando mais 230 mil horas de tempo livre. Nessa situação (e não falo em coisas utópicas), mesmo para o maior trabalhador americano ou japonês não deixa de ser significativo que uma pessoa de 20 anos trabalhará apenas um sétimo do tempo de vida. Mas como durante o trabalho se produz e como o capitalismo está somente atento à produção, essas 70 mil horas se tornam o aspecto mais importante da existência humana: a família, a escola e a sociedade nos preparam para o tempo de trabalho.
Há resistências ao lazer ?
Há resistências porque existem duas grandes instituições contrárias a ele: a instituição empresa e a instituição religião. Houve épocas em que não se trabalhava tanto. Antes do advento da indústria, no século 18, mesmo os escravos nunca trabalhavam mais que cinco horas por dia, pois o escravo era um tipo de máquina e o seu dono não queria estressá-la. Foi a sociedade industrial que descobriu os ritmos das máquinas. Esses ritmos são frenéticos. Os executivos têm dinheiro, têm bons salários e muitas vezes seus locais de trabalho são até agradáveis, mas saem de casa às sete da manhã e voltam tarde da noite. Ficam no escritório o tempo inteiro, sempre entre eles. Por quê? Porque certamente odeiam a família. O ódio pela família faz com que nasça o amor pelo trabalho e, depois, no macho trabalhador existe uma homossexualidade latente. Por isso esses executivos e dirigentes têm de ficar sempre entre eles, sempre entre homens. Por isso as mulheres foram expulsas dos altos escalões.
Essas resistências sempre existiram ?
Não.Os gregos, por exemplo, faziam mais festas que os brasileiros, que ainda assim têm muitos dias de festas ou feriados. Na época de Péricles, cada cidadão de Atenas tinha a obrigação de participar, todos os anos, de pelo menos 24 representações teatrais. Bem, o resultado de tudo isso foi uma cidade como Atenas, de apenas 60 mil habitantes, ter produzido em cem anos mais cultura do que todos os outros povos somados. Isso porque era uma civilização baseada no ócio e não no trabalho, segundo os preceitos da sociedade industrial. O outro elemento que contrastou manifestamente contra o ócio, como já mencionei, foi a religião. A religião partiu do princípio de que o ócio é o pai dos vícios. Criou-se a idéia de que o trabalho expia o pecado original. Ensinava-se que o trabalho não era apenas um instrumento para produzir riqueza ou mesmo um dever para nos sustentarmos e aos outros, mas era um fator por meio do qual poderíamos alcançar o Paraíso. A soma desses fatos criou em relação ao tempo livre o senso de repulsão.
Quais são as saídas que, hoje, as pessoas utilizam para preencher o tempo livre que lhes resta?
Obviamente a televisão. Crianças, velhos e adultos são postos diante da televisão. E quando não é a televisão, há sempre uma organização que nos pega, nos enfia num ônibus, nos coloca em um avião, novamente nos põe num ônibus e nos leva de novo para casa. Uma espécie de fast-food do tempo livre. Que tempo livre é esse? É como o tempo livre de Clinton, que tem de fazer amor de pé enquanto telefona para um ministro. Que amor é esse? O homem mais poderoso do mundo não tem nem tempo para fazer amor deitado. É o fim do mundo. Oscar Wilde dizia: "Não faça nunca de pé o que pode fazer sentado e nunca faça sentado o que pode fazer deitado". Portanto, quando a gente faz de pé uma coisa que pode fazer deitado está dando dois saltos negativos.
Qual é o resultado de tudo isso?
É o surgimento de um tipo de fobia, de loucura coletiva. Nossos bisavós tinham uma vida média bem mais curta, chegavam apenas aos 35 anos. Em duas gerações, a vida média das pessoas dobrou. Mas isso não basta. Nós inventamos uma série de máquinas que nos permitem gerenciar melhor o nosso tempo, como o telefone, o avião, o rádio, a secretária eletrônica, o computador e coisas do gênero. Esses são meios pelos quais tentamos aumentar a disponibilidade de tempo. Embora vivamos mais e tenhamos essas máquinas, ficamos com a sensação de que o tempo não é suficiente. Enquanto nossos antepassados tinham uma relação muito mais serena com o tempo, temos uma relação dramática com ele. Hoje, todos têm pressa. Não acontece quase nada à nossa volta, mas de manhã à noite nos preocupamos e estamos sempre ocupados.
De que maneira esse ritmo desvairado nos é imposto ?
Primeiramente há a má distribuição do tempo. Equanto há pessoas que trabalham excessivamente, outras estão desempregadas ou desocupadas. Poder-se-ia tranqüilamente distribuir esse tempo de maneira mais eqüitativa. Um segundo fator reside no desequilíbrio de horários: há lojas e museus abertos enquanto trabalhamos, e que fecham quando saímos. Outra hostilidade contra o tempo livre fica por conta da desconfiança em relação ao teletrabalho, o trabalho eletrônico. Ao invés de mudar as pessoas, transferindo-as de suas casas para os escritórios, poder-se-ia transferir as informações para a casa delas. Bastaria ter um computador e o correio eletrônico. Mas muitas empresas são contrárias ao trabalho eletrônico porque temem que a obediência lhes escape das mãos. Outra falácia contra o tempo livre é que sempre temos a ilusão de que chegará uma época em que, finalmente, teremos tempo para fazer outras coisas. Compramos, então, discos que nunca escutaremos, livros que nunca leremos e assim por diante. Um último subterfúgio contra o tempo livre é o que acontece muito nas empresas: demitem as pessoas que estavam acostumadas a trabalhar intensamente. Elas já têm uma certa idade e durante toda sua vida fizeram uma única coisa: trabalharam. E para estar sempre nesse trabalho, muitas vezes perderam amigos ou até a família. Assim, de repente, esse sujeito é colocado de lado com um salário menor, sem prestígio e sem saber o que fazer. É um acontecimento horrível, sem paralelo. As acusações contra o ócio têm sido as seguintes: é o pai dos vícios, estraga as nações, mata as economias, causa até problemas nas bolsas de valores. Todos nós aprendemos na escola o conto de La Fontaine sobre a cigarra e a formiga. Naturalmente, eu estou do lado da cigarra. Mas as formigas detestam as cigarras porque têm muita inveja delas. Não é verdade que a cigarra não trabalha, ela trabalha, mas com juízo e bom senso. Um provérbio espanhol diz: "O homem que trabalha perde um tempo precioso". Portanto, a cigarra é que entendeu isso, enquanto a formiga não entendeu nada.
Qual seria o procedimento adequado para reverter o preconceito contra o lazer e, ao mesmo tempo, encontrar um equilíbrio para o próprio trabalho?
Deveríamos rever o conceito de lazer, assim como o de trabalho. O conceito de trabalho é pura formalidade, porque algumas atividades humanas (e os seres humanos são sempre ativos) são consideradas trabalho e têm retribuição. Outras não são consideradas trabalho e, portanto, não há salário. Por exemplo, se uma mulher está cuidando do próprio filho, não recebe remuneração, mas se cuidar do filho de outra pessoa será chamada de baby-sitter e ganhará dinheiro. É a convenção que realmente conta, não a mera atividade. Um jovem de 20 anos que trabalha num banco recebe um salário; outro jovem de 20 anos que não trabalha oito horas por dia num banco, mas cumpre o mesmo horário como estudante numa universidade nada recebe. Aliás, é ele quem paga o curso. O trabalho é uma convenção. Precisamos encontrar novamente a dignidade da atividade humana. Devemos também modificar o conceito de trabalho. Para os liberais, o trabalho é uma mercadoria; para os marxistas, é uma expressão da essência humana; para os católicos, é uma maneira de expiar ou reparar o pecado original. É importante dizer que o trabalho é uma das tantas formas de atividade humana que gera riqueza. Estudar também cria riqueza, pois prepara um cidadão que amanhã será capaz de produzir uma riqueza ainda maior. Portanto, acredito que devemos recuperar a importância do tempo livre e entender que foi o lazer o responsável pelas grandes idéias, que nos acometem quando descansamos. A maioria dos cientistas já declarou que as melhores idéias vieram quando estavam em férias, ou quando estavam com as suas famílias, ou até mesmo durante o sono. Como recuperar o tempo livre? Quando as pessoas exerciam trabalho físico havia uma separação entre o tempo livre e o trabalho. A pessoa que estava trabalhando em uma mina quando ouvia a sirene parava de trabalhar e ia embora para casa. E não queria mais ouvir falar em trabalho a partir dali. Mas o trabalho intelectual é feito com a cabeça e não pode ser separado do tempo livre. Alguém que trabalhe com publicidade e que na sua agência esteja em busca de um slogan, quando vai embora continua pensando. E talvez a solução venha durante um momento em que ele não esteja mais considerando o assunto. Eu vou propor que se colonize o trabalho através do tempo livre. A partir de agora devemos trabalhar como se brincássemos. Entre os valores da sociedade industrial estavam especialmente o poder, a posse e o dinheiro. Os valores da sociedade pós-industrial são a amizade, o amor, o fato de viver entre outras pessoas, os jogos e a introspecção. Mudou também o luxo. O que é o luxo? O luxo é tudo que é raro. O que é raro hoje, por exemplo, numa cidade como São Paulo? O tempo é raro, o espaço é raro, o silêncio é raro, a segurança é rara, a autonomia é rara e a criatividade é rara. Todos esses fatores raros podem ser conquistados através de uma vida muito mais sábia.
Qual o papel do Brasil na dinâmica de construção do lazer e do tempo livre?
O tempo livre se tornou uma linha de montagem. O problema é livrar o tempo livre dessa linha de montagem que o oprime e devolver-lhe os valores dos quais falei anteriormente. Um importante intelectual de São Paulo conversava comigo outro dia e eu lhe perguntei quais são as principais características do Brasil. Ele me respondeu: a sensualidade, a oralidade e a inclusividade, o fato de acolher e juntar várias culturas e nações diferentes. O Brasil tem muitas etnias e elas convivem em paz. Vejam que a Iugoslávia só tem quatro raças diferentes, que nos últimos 200 anos não fazem outra coisa além de se matar. Pensem no quanto mais sábio é o Brasil. Eu acho que a sensualidade, a oralidade e a inclusividade são as três melhores maneiras para se começar uma nova filosofia do tempo livre. E se isso for triunfante no Brasil, será um grande mérito dos brasileiros.