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Em Pauta

Postado em 08/05/2008

Bem conservado


Com o roubo de duas obras do acervo do Museu de Arte de São Paulo (Masp), em dezembro do ano passado – um quadro de Candido Portinari e um de Pablo Picasso –, foi levantada uma questão importante: como os museus e instituições responsáveis cuidam do patrimônio cultural do país? Felizmente as pinturas foram encontradas pouco tempo depois, mas a pergunta ainda carece de resposta. Será que se trata de um fato isolado ou o acontecido denuncia mais um problema de ordem cultural – e financeira – no Brasil? Convidados pela Revista E a refletirem sobre o assunto, o presidente do Comitê Brasileiro do Conselho Internacional de Museus (Icom-BR), Carlos Roberto F. Brandão, e o professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e ex-curador-chefe do Masp, Luiz Marques, expõem suas opiniões em artigos inéditos.


Duas propostas para o patrimônio
por Luiz Marques

A questão do patrimônio museológico e bibliográfico do Brasil é um círculo vicioso: não se sente falta do que se desconhece. Como não temos bons museus e boas bibliotecas, não sentimos falta deles. E como não sentimos falta, não exigimos que se enriqueçam e se aprimorem. O ponto de partida desse círculo, como todos sabem, é o gigantesco déficit educacional do país. O problema não é apenas de ineficiência. É de concepção. Como professor, sei que educar é, antes de mais nada, ensinar a se educar. Isso significa que além de infundir no educando um imprescindível repertório de informações e saberes, é preciso habilitá-lo para aprender. E essa habilitação requer que o educador dote esse aluno de uma desenvoltura intelectual própria, algo que ele não adquire sem familiaridade com o legado da cultura e do saber consignado em bibliotecas e museus. A ausência desses [bibliotecas e museus] permanece, assim sendo, ao mesmo tempo causa e conseqüência de nossa atrofia educacional. Digamos, de outra maneira, o mesmo círculo vicioso. O Brasil, acossado por sua pobreza – hoje mais intelectual que material – não atina para a importância de considerar a educação como seu maior desafio histórico. E, como não atina para isso, não é capaz de se capacitar para educar seu povo. Como seu povo não se educa, não sente sua própria falta de educação e não exige, portanto, essa civilidade do Estado. A própria estrutura do aparelho de Estado reflete essa incapacidade de focar no desafio histórico maior do país. Tudo se resolve no âmbito burocrático: o cumprimento da grade curricular é da alçada do Ministério e das Secretarias de Educação; a conservação dos museus e bibliotecas é da alçada do Ministério e das Secretarias de Cultura; a formulação e a consecução das estratégias de investimento dos recursos do Estado na sociedade são da alçada dos Ministérios e Secretarias da Fazenda, do Planejamento etc.; enfim, a formulação das políticas de conservação do patrimônio natural cabe ao Ministério do Meio Ambiente. Ora, não é preciso ser iluminado para se perceber que a educação ambiental e científico-cultural deveria ser o objeto principal da atuação do Estado e, em conseqüência disso, estar sob a responsabilidade de um superministério, estratégico, transversal e coordenador da aplicação dos recursos já não tão escassos de nossa sociedade. 


Uma vez assimilada a idéia de que não há educação sem museus e bibliotecas, compreende-se facilmente porque esses devem ser objeto de um esforço estratégico, visando dotá-los dos meios que os habilitem a cumprir sua missão. Não se trata apenas de injetar recursos, mas de redefinir completamente a função dessas instituições. Tão importante quanto conservar seus acervos é saber usufruir intelectualmente de suas riquezas e, sobretudo, explorar seu potencial para além dos estreitos parâmetros recreativos a que foram até hoje confinados.

A grande questão em jogo, de fato, não é apenas a dos recursos para a conservação. Quando não se conserva nem o pouco que se tem, estamos na esfera da pura e simples incúria, do descaso, da irresponsabilidade. E não vale a pena gastar mais papel e tinta para reafirmar pela enésima vez o óbvio, isto é, que é preciso mais recursos para a conservação dos acervos. O que é necessário, além disso, é dar início a uma discussão de idéias sobre o próprio conceito de patrimônio.


A globalização dos mercados debate-se hoje em suas próprias armadilhas e o coro de seus defensores, dentro e fora do Brasil, desafina, hoje, mais que nunca. Mas, por piores que tenham sido, e tendam sempre mais a ser, seus efeitos no plano socioeconômico, um benefício intelectual ela trouxe: a liquidação das fronteiras mentais e a consciência generalizada de que o nacionalismo é uma ideologia obscurantista.


Esse obscurantismo resiste ainda, contudo, em alguns círculos ligados à gestão de nosso patrimônio cultural. Se é importante reconhecer o enorme legado de Rodrigo Melo Franco de Andrade, Mario de Andrade e Gustavo Capanema, heróis de nosso patrimônio, está mais que na hora de admitir que aquele conceito de patrimônio nacional gerado na era Vargas, e cultuado depois pela ESG e pela ditadura, não é mais atual. Hoje é preciso ter presente que o patrimônio – como o pensamento e a arte que nele se materializam – não tem fronteiras. Seu horizonte não pode mais ser nacional. Ele deve ter um horizonte metropolitano. Nesse horizonte, a escultura africana, a cerâmica chinesa, a escultura clássica, a pintura européia, o artefato etnográfico, o objeto de civilização mesopotâmica ou pré-colombiana, entre outros, têm tanta importância para o patrimônio nacional quanto Aleijadinho, Portinari ou Carlos Gomes. Não se trata de opor arte “brasileira” a arte não-brasileira. Trata-se de entender que a arte e a cultura produzidas no país são ininteligíveis se não forem irrigadas pela arte e a cultura produzidas fora do país e confrontadas com elas. Todas essas manifestações da cultura humana representam uma “forma do tempo”, para usar a expressão consagrada desde 1962 em um famoso livro de George Kubler, The Shape of Time.

“Museus devem ser entendidos não apenas como promotores de exposições, mas, sobretudo, como vetores de ampliação ?criteriosa dos acervos nacionais”


Ora, à luz desse conceito expandido de patrimônio nacional, o Brasil surpreende por sua indigência. Praticamente todo nosso patrimônio internacional resume-se a algumas centenas de obras conservadas no Masp, no MAC/USP, no MAE/USP e no Museu Nacional de Belas Artes. Para um país com um PIB que se inclui entre os maiores do planeta, a pobreza de nosso patrimônio internacional é estarrecedora. 
Para recuperar terreno nessa área, é preciso persuadir os gestores da cultura no aparelho de Estado a agir em duas direções. A primeira deve levar o Estado a se tornar mais presente. A segunda deve levá-lo a se tornar mais ausente. Vejamos o que se entende por isso.


Em primeiro lugar, é preciso incluir uma rubrica de despesas nos Ministérios e Secretarias da Educação e da Cultura especificamente voltada para a ampliação do patrimônio de cunho metropolitano, a ser captado inclusive no mercado internacional. Por meritórias que sejam, as leis de incentivo não bastam. É necessária uma lei específica que beneficie os museus e bibliotecas com um fluxo ininterrupto de recursos destinados à ampliação de seus patrimônios. Museus devem ser entendidos não apenas como promotores de exposições, mas, sobretudo, como vetores de ampliação criteriosa dos acervos nacionais. Estes não crescem graças, apenas, a incentivos fiscais nem em países de incomparável tradição participativa e protestante, como os EUA.
Em segundo lugar, é preciso, em vez de criar uma lei, suprimir outras, ainda mais perniciosas ao nosso patrimônio que a inexistência de uma lei de dotação. Trata-se das leis que impõem uma descabida carga tributária a toda importação de obras de arte. As obras de arte ditas “brasileiras” pouco ou nada sofrem com essas barreiras, pois 99,9% delas já se encontram em território nacional. Mas a arte produzida fora de nossas fronteiras políticas, do neolítico ao contemporâneo, e que se encontra fora do Brasil na razão de 99,999% é praticamente impedida de entrar. No Brasil, qualquer pessoa, física ou jurídica, que quiser importar uma obra de arte deverá pagar, segundo a legislação atual, quase 1/3 a mais de seu valor: 7% de imposto de importação + 18% de ICMS + 7% de impostos vários, num total de 32% de impostos, aproximadamente. Portanto, para o colecionador brasileiro, seja ele privado ou público, uma pintura de Picasso custa quase 1/3 a mais do que para o colecionador norte-americano, inglês, suíço, etc. Por que, enfim, não estender às obras de arte – objetos essenciais da educação de um povo – os mesmos benefícios de que já goza tão acertadamente a importação de livros? 


Em suma, o Estado brasileiro não apenas não destina recursos da nação para adquirir obras internacionais para nossos museus (como o fazem os países industrializados), mas, ainda por cima, inviabiliza economicamente qualquer iniciativa de importar arte internacional, vale dizer, de agregar valores universais ao patrimônio artístico do país. Se adotadas, essas duas propostas para o patrimônio terão mais efeitos benéficos para o país que toda retórica patriótica sobre a riqueza de nosso patrimônio nacional.
 
Luiz Marques é professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e foi curador-chefe do Museu de Arte de São Paulo



Luiz Marques é professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e foi curador-chefe do Museu de Arte de São Paulo

 

 

A segurança do patrimônio cultural brasileiro
por Carlos Roberto F. Brandão

A preocupação com o patrimônio cultural tomou forma no Brasil em 1934 com a criação da Inspetoria de Monumentos Nacionais (IPM), sob inspiração de Gustavo Capanema e Mário de Andrade. Vinculada ao Museu Histórico Nacional, a IPM tinha como principais finalidades impedir que “objetos antigos referentes à história nacional” fossem retirados do país, em virtude do comércio de antiguidades, e que as edificações monumentais fossem destruídas por conta das reformas urbanas, a pretexto de modernização das cidades. A primeira iniciativa da Inspetoria foi o decreto de tombamento da cidade de Ouro Preto, antiga Vila Rica, principal cidade do Ciclo do Ouro em Minas Gerais. O atual Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), do Ministério da Cultura, foi criado em 13 de janeiro de 1937, sendo seu primeiro presidente Rodrigo Melo Franco de Andrade, até 1967, quando se aposentou.


O conceito inicial de patrimônio, que hoje seria chamado de “pedra e cal”, privilegiava o edificado, o tangível, o que merece ser perenizado, contrapondo-se à deterioração natural e irrecorrível a que tudo está sujeito. Hoje, a Unesco define patrimônio cultural como o conjunto de bens naturais, históricos e artísticos com relevante valor local, regional, nacional ou internacional e que, por essa razão, merece proteção e classificação de mérito em listas especiais de ampla divulgação.


No Brasil, essa ampliação do conceito de patrimônio acompanhou a diversificação de natureza dos acervos e coleções abrigados em museus e outras instituições. Permitiu também reconhecer manifestações intangíveis como patrimônio merecedor de proteção: tradições orais, manifestações artísticas, usos e costumes.
A Constituição dispõe que o patrimônio cultural brasileiro é constituído pelos bens materiais e imateriais que se referem à identidade, à ação e à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, e reconhece como esse patrimônio as formas de expressão, os modos de criar, fazer, viver; as criações científicas, artísticas e tecnológicas; as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico – os modos específicos de criar e fazer (as descobertas e os processos genuínos na ciência, nas artes e na tecnologia); as construções referenciais e exemplares da tradição brasileira, incluindo bens imóveis (igrejas, casas, praças, conjuntos urbanos) e bens móveis (obras de arte ou artesanato); as criações imateriais como a literatura e a música; as expressões e os modos de viver, como a linguagem e os costumes; os locais dotados de expressivo valor para a história, a arqueologia, a paleontologia e a ciência em geral, assim como as paisagens e as áreas de proteção ecológica da fauna e da flora. A Constituição estabelece que o poder público, com a cooperação da comunidade, deve promover e proteger o patrimônio cultural brasileiro.

“Os recentes episódios lamentáveis de furtos de patrimônio, amplamente divulgados pela imprensa, devem representar uma oportunidade de reavaliar as estratégias atuais ?de segurança e mudança urgente de patamar”


Quando se preserva legalmente e na prática o patrimônio cultural, conserva-se a memória do que fomos e do que somos, selecionando e projetando no futuro como seremos lembrados. Patrimônio, etimologicamente, significa “herança paterna” – na verdade, a riqueza comum que herdamos como cidadãos, e que se vai transmitindo de geração a geração. Nesse sentido, os museus e outros detentores de acervos os mantêm em custódia e em confiança do público, assumindo responsabilidade ética e moral pela sua salvaguarda, cabendo ao poder público zelar pela aplicação desse princípio.


Os recentes episódios lamentáveis de furtos de patrimônio, amplamente divulgados pela imprensa, devem representar uma oportunidade de reavaliar as estratégias atuais de segurança e mudança urgente de patamar. As instituições que abrigam acervos enfrentam inegável fragilidade perante a profissionalização do crime, que avança em ritmo descompassado com o das instituições; em poucos anos, o Brasil subiu muitas posições no ranking dos países que mais registram perda de patrimônio.


Para reverter essa situação, será necessária a concorrência do poder público e das próprias instituições no seu aperfeiçoamento físico e conceitual, reconhecendo que segurança, muito mais que equipamentos sofisticados, requer inteligência e boa administração. Como resposta a esses episódios recentes, algumas iniciativas já estão se organizando em âmbito federal e em alguns Estados, mas a discussão sobre segurança ainda precisa envolver os outros atores da cadeia que vai da produção à salvaguarda do patrimônio cultural brasileiro.


Carlos Roberto F. Brandão é presidente do Comitê Brasileiro do Conselho Internacional de Museus (Icom-BR)

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