Postado em 08/05/2008
Nunca tinha visto tantas coisas lindas e caras juntas num lugar só. Aquilo era um templo ao luxo e à sofisticação do bem viver. Não que eu seja muito pobre. Estou no bolo dos que se espremem entre os miseráveis e a classe média. Convivo com gente que não tem quase nada, nem mesmo um emprego, mas tenho amigas que conhecem a Europa, andam em carro do ano e usam roupa de grife. Com isso, uma coisa ou outra a gente sempre acaba querendo ter.
Quando minha irmã se casou, por exemplo, eu senti uma pontinha de inveja da festa que ela teve e eu não tive, do marido dela, que era formado e ganhava bem mais do que o meu, da filha que ela teve e eu não, só tive meninos, dois. Também senti inveja quando ela foi para os Estados Unidos, quando passou no concurso do Banco do Brasil, quando comprou a casa dela. Eu sabia o que era inveja. Mas o que eu sentia naquela hora era diferente. Eu olhava aquelas maravilhas todas na minha frente e não queria nada daquilo. Não queria a lata de sardinha de quarenta reais (onde já se viu sardinha a esse preço? Essas vieram dos mares gelados sei lá de onde) nem o pacote de bolachas (inglesas) que custava a metade do que eu levo um mês pra ganhar, nem as bebidas finíssimas, as carnes, as aves, os peixes. Nada disso me interessava. Eu queria o que antecede a possibilidade da posse. Eu queria ser aquelas pessoas. Dentro de mim. Por isso, eu digo que era uma inveja diferente.
Eu sempre invejei a Mirtes, mas nunca quis ser a Mirtes, Deus me livre! Queria ter as coisas que ela tinha, mas continuar sendo eu, com a minha cara, o meu jeito, minha casa, meu marido, meus filhos. Agora não. Era como se ali, naquele supermercado, eu tivesse entendido num estalo que a minha vida não valia nada. Nunca valeu. Que se eu e toda minha vergonhosa descendência fôssemos banidas da face da terra seria um favor.
O que eu desejava mesmo, do fundo do meu ser, era andar por esse chão de mármore com meu sapato de pelica sabendo que podia comprar o que quisesse. E só por isso não compraria nada. Eu queria poder não querer tudo isso que me deslumbrava. Eu queria ter a pele dessas mulheres perfeitas de vida perfeita, essa elegância discreta, essa calma, essa educação ao se dirigir aos subalternos (eles também feitos de outra matéria-prima), essa serenidade.
Eu queria, num belo dia, acordar, chamar o motorista e pedir que ele me levasse a um mercadinho de bairro. Quero ver como essas pessoas vivem. Ele então iria ao bairro onde moro, pararia na porta do supermercado onde faço minhas compras, a senhora quer que eu a acompanhe? Não, obrigada, eu vou sozinha. Acho que não tem perigo. Entraria arranhando meu sapato de pelica no chão bruto de cimento, olharia as prateleiras meio vazias, os produtos de marcas que desconheço empilhados de qualquer jeito, latas vazias, amassadas, olharia os preços, só isso? Deve ter algum engano. Do que essa gente reclama?, entraria na fila para ganhar um copinho de suco de abacaxi com gosto de remédio, veria que o setor de peixes é um único freezer lotado de filé barato, que as frutas são laranjas passadas, banana prata, maçã e nanica. A salada não vai além de alface, tomate e pepino e o acompanhamento você escolhe entre mandioca e batata frita. Os cereais vão direto ao ponto: arroz e feijão. Deve ser bom viver com tão poucas opções. Eles não sabem o tormento que é escolher uma entre dezenas de alfaces diferentes, isso sem falar da rúcula, da minirrúcula, da rúcula gigante, da escarola brasileira, japonesa, tailandesa, da abóbora gigante, da abóbora em miniatura. Um horror! A variedade dos grãos me deixa maluca. Lentilha de cinco cores diferentes, arroz selvagem, arroz civilizado, feijões e subfeijões que se multiplicam ao infinito.
Eu queria poder achar tudo isso um saco.
Queria passear pelo meu bairro, ver a vida que eu levo e exclamar como se fosse turista: que paisagem mais exótica!
O que será que eu pensaria ao ver o bando de mulheres cansadas, suadas, nervosas, loucas pra chegar em casa, tirar o sapato que lhe aperta o calo, carregando um filho no colo, outro no carrinho, dando cascudo no mais velho que tem mania de abrir bolacha que ela não pode comprar. Na fila do caixa, ela refaz as contas e tira metade do que pretendia levar. Depois chama o supervisor e esfrega o jornal na cara dele: não era isso que estava escrito no anúncio. O rapaz destrava a máquina registradora e deleta os trinta centavos da margarina. Sinto muito, mas o que é direito é direito.
O que madame pensaria ao me ver saindo toda orgulhosa por ter ganho a parada dessa vez, por ter filhos tão saudáveis, por ter emprego quando tanta gente não tem, por ser casada com um homem tão bom que me ajuda tanto em casa, com os meninos.
A essa hora o Cidão já deve ter saído pro trabalho. Eu fico batendo perna na rua e esqueço da vida. De manhã, quando ele chega, eu estou saindo. É só o tempo de falar sobre o almoço dos meninos, a roupa que deixei de molho, pedir que ele conserte o varal e correr para o ponto pra ver se eu consigo ir sentada dessa vez. À noite eu chego e ele sai para o trabalho. Durante a semana a gente quase não se vê.
Era nisso que eu pensava quando senti o chão sumir. Caí desmaiada no corredor de frios, aos pés da mulher que eu queria ser. Acordei num escritório com pessoas me abanando enquanto um segurança revirava minha bolsa pra ver se encontrava algum documento. Eu não conseguia responder às perguntas que eles me faziam: qual o meu nome, onde morava, quantos anos tinha, o que estava fazendo ali. Me deram um copo de suco e se ofereceram para me levar até o ponto de ônibus, mas eu disse que não precisava. Já estou melhor, obrigada. Foi um mal-estar passageiro.
Saí andando devagar, com a cabeça um pouco tonta. Lá fora já era noite. O trânsito estava um inferno. Ônibus e automóveis lotavam as ruas. Nas calçadas, uma multidão desesperada pra chegar em casa. As buzinas atordoavam meus ouvidos. Os meninos estão sozinhos. Que cabeça a minha.
No meio daquela confusão, o ventinho frio que batia no meu rosto me fazia bem. Aos poucos fui lembrando quem eu era, quantos anos tinha, onde morava, quem era o meu marido, os meus filhos. A única coisa que eu não lembrava era o que eu tinha ido fazer ali, porque tinha entrado naquele supermercado de grã-fino. Isso eu nunca lembrei.