Iniciativas bem-estruturadas tendo o esporte como foco podem ir além da prática da atividade física ao difundir conceitos de cidadania e inserção social em comunidades
"O esporte é um meio para mobilizar a sua cidade!" Esse é um dos motes do Sesc Verão 2008, durante os meses de janeiro e fevereiro. Neste ano o evento, realizado em todas as unidades do Sesc, traz o tema O Esporte e as Interfaces com a Comunidade.
O objetivo é explorar o papel que as diversas modalidades esportivas podem desempenhar na melhoria da qualidade de vida não somente do indivíduo, mas também do grupo a que pertence. E mais: como esse fenômeno pode extrapolar os locais específicos de prática - quadras, campos etc. - e chegar à casa, à vizinhança, enfim, a toda a comunidade.
"O esporte é a manifestação cultural que goza de maior popularidade e penetrabilidade não só no nosso país como no mundo inteiro", afirma o professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Victor Melo, pesquisador na área de estudos de lazer. "Há mais países ligados à Fifa [Federação Internacional de Futebol, composta de 203 seleções] do que à ONU [Organização das Nações Unidas, que reúne 191 países].
É perfeito que a gente possa utilizar essa manifestação cultural como uma ferramenta para discutir a inclusão social, para discutir a construção de cidadania nessa perspectiva ampliada.
"Segundo a Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais (Abong), em 2002 havia 276 mil fundações e associações sem fins lucrativos no país. Dessas, 26.894 atuam na área do esporte e do lazer, ficando atrás somente das organizações religiosas (70.446) e de assistência social (32.249). O estudo, segundo a Abong, é o mais recente nesse sentido e foi lançado em 2004 pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em parceria com a própria Abong.
O joio e o trigo
No entanto, o professor Melo chama a atenção para o fato de que é importante não se deixar impressionar pelos números sem considerar alguns fatores. "A organização de ONGs no Brasil é um fenômeno recente e bastante complexo", informa. "É obvio que não estou criminalizando a existência desses projetos. Longe disso. Porém, ao redor deles a gente tem um manancial de boas intenções, mas tem também um manancial de nem tão boas intenções assim."
A Revista E foi atrás de algumas iniciativas que representam o primeiro time. Pessoas e organizações que, na verdade, ultrapassam a "boa intenção" e atingem resultados por meio do esporte, envolvendo o coletivo em torno de um objetivo comum: a melhoria da qualidade de vida. "O esporte, assim como qualquer outra atividade prazerosa, é capaz de mostrar ao praticante que é possível ter prazer, aliviar o estresse e elevar a auto-estima tendo atividades e hábitos saudáveis", afirma Cristiane Guimarães Silva, responsável pela captação de recursos do Grêmio Recreativo Barueri, na Grande São Paulo.
A ONG foi criada em 1989 e hoje atende 10.500 crianças em escolinhas educativas de futebol, futsal, vôlei, basquete, judô, caratê, ginástica artística, atletismo, skate e tênis. "Mas o trabalho não fica somente na criança", afirma Cristiane. "Nós acreditamos que ele chega até a comunidade. Primeiro porque os pais normalmente se envolvem com as atividades que os filhos realizam e acabam adquirindo parte dessa cultura desenvolvida com os praticantes.
Em segundo porque trabalhamos anualmente com temas transversais e com campanhas nas quais os alunos se tornam multiplicadores das informações trabalhadas e as levam para dentro de suas casas, escolas e na comunidade." Entre os temas tratados, Cristiane cita as campanhas de preservação do meio ambiente, do agasalho, contra a dengue, de prevenção ao álcool e drogas e da promoção da qualidade de vida.
Ética e cidadania
No bairro do Capão Redondo, Zona Sul da capital, o esporte é a capoeira, ensinada para crianças e jovens de 10 a 24 anos no projeto Porta Aberta, criado em 2001. A iniciativa faz parte da organização Projete Liberdade e Capoeira, criada em 1978, que possui núcleos também em Pelotas, no Rio Grande do Sul, em Rosário, na Argentina, e em Cuzco, no Peru. "A gente trabalha com crianças e jovens considerados em uma situação de risco social", afirma Vinícius Heine, professor de educação física do Centro de Práticas Esportivas da Universidade de São Paulo (Cepeusp) e que coordena o núcleo do Capão Redondo em companhia do colega Gladson de Oliveira, também do Cepeusp.
"O trabalho é muito voltado para a manutenção da qualidade de vida das pessoas por meio da capoeira", complementa Gladson.
"Mas é claro que também abrange a família, a escola. Não é só ser um grande capoeirista que vai fazer o indivíduo galgar uma hierarquia dentro da capoeira, mas também como ele vai na escola." Os professores explicam que as aulas não incluem somente os movimentos e ritmos da prática.
Disciplinas escolares, como história e geografia, fazem parte do currículo. "E a coisa não fica só na oralidade", garante Gladson. "A gente dá temas para eles pesquisarem, trabalhos para eles fazerem. Por exemplo: um grupo vai pesquisar a vinda dos escravos, outro vai falar sobre a abolição da escravatura, um terceiro sobre a capoeira na atualidade, ou seja, eles vão fazendo esses trabalhos e vão interagindo com o professor de história, de geografia, na escola."
E será que a meninada gosta? "O projeto mudou muita coisa na minha vida, por exemplo, o modo de eu me relacionar com as pessoas e o modo de encarar os problemas", responde Elaine Souza da Silva, hoje com 21 anos, que ingressou no Porta Aberta aos 15 anos.
"Meu professor [de capoeira] sempre me diz que ele não está formando capoeiristas, mas cidadãos, e eu concordo com isso."
De aluna, a jovem passou a monitora e hoje dá aula a crianças e adolescentes de 6 a 14 anos. "Aprendi muito depois que virei monitora. Trabalhar com crianças é muito gratificante." O colega de Elaine, Leonardo de Carvalho, o Leo, de 22 anos, é um pouco mais calado, mas nem por isso deixa de ter palavras para agradecer a "oportunidade" que o projeto lhe ofereceu. "Eu fui educado e agora sou monitor, para educar mais crianças", conta.
"A capoeira ensina ética e cidadania. É uma modificação muito grande na forma de interagir com o outro." Leonardo planeja prestar vestibular para educação física e aprimorar seus conhecimentos. "Quero dar aulas e passar um pouco do que aprendi."
Jogo limpo
A ONG Futebol de Rua foi criada em 2006 e atende crianças da comunidade de Heliópolis, também na Zona Sul, região hoje com 125 mil habitantes, 52% deles de 0 a 25 anos. "A gente conseguiu gerar uma idéia de que quem vem de fora pode fazer bem também", explica o advogado Alceu de Campos Natal Neto, idealizador do projeto. "Porque eles tinham uma grande desconfiança pelo fato de que a gente não era de lá.
Eles não tinham tanta certeza de que nós poderíamos ajudá-los.
E isso mudou ao longo deste ano." A ONG se dedica a ensinar a cerca de 60 crianças uma modalidade do futebol que Alceu conheceu na cidade inglesa de Liverpool. Em uma quadra, um time de apenas quatro jogadores - três na linha e um no gol - toma emprestadas algumas regras do futebol convencional, mas com a informalidade das peladas.
"Onde tiver uns moleques tem futebol de rua", conta Alceu. "Só que a gente quer que eles tenham esse espírito de não fazer falta, para coibir a violência e não coibir as jogadas bonitas. O fair play [jogo justo, em inglês] é a nossa regra número 1."
Segundo o advogado, que hoje se dedica somente ao projeto, outro benefício da presença do projeto na comunidade é o fato de que a dinâmica das aulas e a mobilização em torno dos jogos acabou impulsionando a economia local.
"Tudo o que a gente compra para o Futebol de Rua hoje sai de Heliópolis - comida, água, materiais esportivos", conta. "Por exemplo: quando a gente vai fazer amistosos, precisa de duas vans para levar os times, nós sempre pegamos dois carros de dentro da comunidade."
O magrinho e o grandão
Embora tenha a origem inglesa em comum com o futebol, o rúgbi está longe de ser considerado popular. Claro, exceto entre os moradores de Paraisópolis, bairro da Zona Sul onde atua a ONG Rugby para Todos. "Todo mundo sabe o que é rúgbi em Paraisópolis hoje", conta o geógrafo Fabrício Kobashi de Faria, que fundou a organização junto com o amigo administrador de empresas Maurício Alexandre Pérez Dragui em 2004.
"O rúgbi é um esporte diferenciado e tem características que o tornam importante na educação", afirma Fabrício.
"Suas regras prevêem o autocontrole, a cordialidade e a lealdade." Tudo bem, mas e aqueles choques violentos que se vêem nas partidas do esporte - sem contar com as montanhas de gente que se formam sobre o atleta que detém a bola?
"O rúgbi é um esporte de contato, mas cada jogador sabe que é responsável pela integridade física dele e do outro", garante Fabrício. O trabalho da ONG no bairro foi iniciado nas escolas. Os amigos saíram de classe em classe explicando que ali seria instalada uma escola do esporte. "Logo no primeiro dia apareceram 80 crianças", lembra Fabrício. Houve lugar para todos.
"Eu vejo a modalidade como bastante inclusiva porque, por exemplo, ela, em si, demanda diferentes tipos físicos. Então entra o grandão, o mais forte, o magrinho que é mais rápido, todo mundo."
Com o passar do tempo, outros voluntários se juntaram à iniciativa, o que terminou por criar uma equipe multidisciplinar de profissionais que, por meio do rúgbi, chegaram até as crianças do bairro.
"Aqui a gente tem psicólogos, pedagogos, pessoal da área da comunicação, todos trabalhando nessa empreitada com a gente." O Rugby para Todos, hoje, faz parte do Instituto Nova, que abriga diversas iniciativas sociais.
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A ordem é se movimentar
Em 2008 o Sesc Verão explora o esporte como forma de mudar o indivíduo e toda a comunidade
Depois de apresentar os temas Corpo Legal (2001), Corpo Feliz (2002), Escolha seu Corpo (2003), Corpo e Ambiente (2004), Jogos, Brincadeiras e Movimento (2005), Tempo, Movimento e Qualidade de Vida (2006) e Esporte! Na prática todo mundo pode (2007), o Sesc Verão acontece, em 2008, com a seguinte proposição: O Esporte e Suas Interfaces com a Comunidade.
A idéia é explorar as práticas físicas como meio de mobilizar não somente cada um de nós, mas também nossa rua, nossa vizinhança e - por que não? - toda a cidade. "O que pretendemos agora é que seja gerado um movimento que vá além do sujeito e que encontre respaldo no meio no qual ele está inserido", esclarece Mário Fernandes, técnico da Gerência de Desenvolvimento Físico e Esportivo (GDFE), do Sesc São Paulo.
"As pessoas são modificadas pelo esporte em situações em que ele é utilizado como meio de educação ampla." Ainda segundo o técnico, a escolha do Sesc de investigar o caráter transformador do esporte - e dessa vez não somente para o praticante, mas também para toda a comunidade - significa uma "ampliação do olhar" sobre a relação entre as pessoas e a atividade física.
"Se pensarmos no ano passado, nossa preocupação maior era convidar as pessoas a praticar mais esporte", explica Fernandes. "Neste ano, nossa proposta é mais ambiciosa, pois pretende motivar as pessoas a utilizar o esporte como meio de mobilização e transformação de sua comunidade."
Entre as ações propostas para atingir esse objetivo estão: atividades de sensibilização para a importância e os benefícios da prática do esporte; realização de fóruns para a reflexão da prática esportiva nas comunidades - em escolas, centros e
sportivos ou em todo o bairro - em relação à auto-organização dos participantes; e promover uma programação diversificada, que enfatize a democratização do esporte, a melhoria da qualidade de vida e o exercício da cidadania por meio de circuitos de esporte e lazer, ruas de lazer, ciclorrotas e caminhadas. Acompanhe a programação do Sesc Verão 2008 no Portal Sesc SP.
Dicas valiosas
O Sesc São Caetano lançou, durante o Sesc Verão 2007, o guia Esporte Social no Grande ABC, com diversas dicas de locais gratuitos para a prática de atividades físicas com segurança e qualidade. A publicação fornece mais de 200 endereços - entre praças, parques e centros de cultura e lazer - nos sete municípios que formam a região: São Caetano do Sul, São Bernardo do Campo, Santo André, Diadema, Mauá, Ribeirão Pires e Rio Grande da Serra. A seguir, alguns desses endereços valiosos para os amantes do esporte.
Parque 24 horas - Para quem mora no bairro Jardim, em Santo André, e redondezas e não tem tempo para praticar atividades físicas durante o dia, a resposta pode ser o Parque Prefeito Celso Daniel, o único da região do Grande ABC que funciona 24 horas. O local possui um ginásio, pista de corrida e caminhadas, e até uma área reservada para alongamento. O endereço é Avenida D. Pedro II, 949.
Boa praça - Segurança e qualidade rimam com espaço público em três praças localizadas em São Bernardo. A Praça dos Meninos (no bairro de Rudge Ramos), a Praça das Coleirinhas (no Parque dos Pássaros) e a Praça Juliano Versolato (no Parque Espacial) são cercadas e possuem uma infra-estrutura especialmente voltada para os praticantes de atividades físicas. A primeira ganha em arborização, a segunda se destaca no quesito acessibilidade e a terceira tem uma pista de caminhada de 500 metros de extensão e uma ciclovia de 430 metros.
Esporte e ecologia - Mantido pela Secretaria do Meio Ambiente da Prefeitura de Diadema, o Parque do Paço possui uma área de 33,5 mil metros quadrados e uma estrutura completa para esportistas. Destaque para a cessão de materiais esportivos aos freqüentadores e a orientação de um professor de educação física, de segunda a sexta-feira, das 6 às 10 horas.
Radical! - Além de um campo de futebol de areia, a Praça da Bíblia, no município de Rio Grande da Serra, atrai os jovens com uma pista de skate semiprofissional de 400 metros quadrados e que, desde 2006, quando foi inaugurada, vem sendo sede de competições regionais.
