
O
diretor russo Anatoli Vassiliev fala de seu trabalho como pedagogo nas
artes cênicas
Um dos principais
encenadores da Rússia nos últimos 20 anos, o diretor de
teatro Anatoli Vassiliev alcançou projeção internacional
por meio de seu trabalho como pedagogo e pesquisador da arte cênica.
Em meados da década de 80, Vassiliev foi o responsável
pela criação da Escola de Arte Dramática em Moscou,
um espaço laboratorial de renovação e pesquisa
da cena e da pedagogia teatral. Embora tenha herdado toda a tradição
do teatro de seu país, sua trajetória artística
demonstra a manutenção e, ao mesmo tempo, o constante
questionamento desse legado."Comecei a me afastar da tradição
russa e passei a trabalhar em sala branca, onde não existe escuridão",
conta em sua palestra realizada no Teatro Sesc Anchieta, em 17 de julho.
"Desde então, sempre vejo o público, e isso é
muito bom." Na conversa, que tem trechos publicados a seguir, Vassiliev
falou sobre metodologia no ensino da arte dramática e comentou
o processo de montagem do espetáculo Médée-Matériau
- a partir da tragédia grega de Eurípedes, da adaptação
do mito feita pelo alemão Heiner Müller e de material de
outros autores - após exibição de um vídeo
da peça, que fez parte da programação do Festival
Internacional de Teatro de Rio Preto.
Escola russa
Minha paixão pela pedagogia pode ser explicada pelo fato de que
minha mãe era professora. Trabalho há 26 anos como professor.
Quando estava estudando direção na escola russa, meus
mestres me educaram para ser professor. A profissão de diretor
é composta, em primeiro lugar, de saber analisar o texto e ser
um espelho para o ator. Em segundo, de ser o professor do ator. E, por
último, de organizar toda a ação. Esse é
um postulado da escola russa de direção. Nessa escola
não se fala somente em ensaiar o papel, e sim em "educá-lo".
Isso significa ter uma relação semelhante à que
se tem com uma criança. Primeiro a criança precisa ser
concebida, depois educada até se tornar um adulto. Ou seja, é
só aí que o papel pode ser lançado em cena. No
período de ensaios, a parte pedagógica ocupa mais da metade
do tempo. Assim é a tradição russa. Gosto muito
da parte pedagógica do trabalho.
Dentro e fora
de cena
Sempre digo que há duas etapas fundamentais no trabalho: antes
do palco e durante o palco. Antes do palco, nunca trabalho com a mise-en-scène
[interpretação que será dada à cena no palco].
No palco, trabalho somente com ela. São duas etapas muito claras
e opostas: a primeira é o trabalho interno e a segunda, o externo.
O trabalho interno diz respeito àquilo que chamamos de análise
para a ação. Quer dizer, é nesse momento que se
define cada movimento concreto que o ator deve fazer para cumprir a
ação. Um ator em cena age segundo três formas de
ação: verbal, física e psíquica. Ele fala,
move-se e sente. Já as situações são formadas
pelas circunstâncias, preparadas antes de o ator começar
a agir, e estão todas no início da ação.
Tudo isso se constrói para o personagem, e o ator tem de fazer
um trabalho interno. É como se ele se identificasse com as circunstâncias
e as situações do personagem. Dessa forma, o ator provoca
em si o desejo de fazer alguma coisa. No final das contas, esse desejo
se transforma em sua ação. Essa forma de análise
é a tradicional, típica daqueles textos dramáticos
que estudam a vida do personagem no que diz respeito a sua psique. Então,
a gente pega a peça, vê o que aconteceu no início
e o que pode provocar a ação. Com esse jeito tradicional,
estuda-se o estilo do comportamento psicológico. Nesse caso a
ação está na psique.
Método
No ensino que proponho, sempre começo com os diálogos
de Platão. Pois esses textos me permitem transmitir a teoria
e a prática das estruturas lúdicas. Esse texto é
ideal para isso. Gasto cerca de um ano com esse ensino. Acho que se
deva começar daí. No entanto, essa estrutura não
é a base para a consciência moderna. Por isso, no ano seguinte
começo a educar detalhadamente a capacidade do ator de representar
a estrutura psicológica. Ou seja, ocupo-me de Tchecov [Anton
Tchecov (1860-1904), escritor e dramaturgo russo] ou de dramas semelhantes
aos dele. Considero essa prática básica. Depois de os
meus alunos terem assimilado essa escola fundamental, volto ao teatro
lúdico. É assim que construo a metodologia da educação
do ator. Há dois métodos de trabalho. Um é o que
se chama método de estudos: baseia-se em improvisações
no período de ensaio. Nele, as propostas dos atores são
muito importantes, e o diretor sempre os provoca para isso. Nesse caso,
a mise-en-scène nasce nos ensaios e nem sempre são propostas
do diretor. Ao contrário, são propostas dos atores. Quer
dizer, é um método livre. Já, o método que
peguei para fazer Medéia, de Heiner Müller, é severo
e preciso. Não existe nenhuma improvisação.
Medéia
Tanto a ação quanto a mise-en-scène de Medéia
estão na palavra. Sendo assim, a forma como foi feito esse espetáculo
é o caminho mais radical nas estruturas lúdicas. Porque
aqui a ação na palavra é como a ação
absoluta, máxima e integral. Na realidade, durante o período
de ensino é impossível que eu aborde textos assim, pois
três anos não seriam suficientes. É preciso tempo.
Esse trabalho teve sua estréia em Moscou, em 2001, quando eu
ainda utilizava o palco italiano. Dessa maneira, a platéia ficava
às escuras. Mas comecei a me afastar da tradição
russa e passei a trabalhar em sala branca, onde não existe escuridão.
Desde então, sempre vejo o público, e isso é muito
bom. A última vez que representamos Medéia foi na cidade
de Delfos, na Grécia, há mais ou menos uma semana [na
primeira quinzena de julho]. Apresentamo-nos em um antigo palco grego,
e havia 600 pessoas sentadas no anfiteatro. Mas a técnica utilizada
pela atriz permite que ela represente tanto para 60 quanto para 600
pessoas. Agora compreendo que esse foi um trabalho fundamental na minha
vida. No fim das contas, foi como uma síntese de todas as idéias
e da prática. Com esse trabalho, simplesmente tentei completar
o caminho da prática e da teoria que eu estava procurando. Mas
não procurei Heiner Müller de propósito. Medéia
acabou sendo praticamente por acaso e, ao mesmo tempo, como era para
ser. A personagem é subtraída de tudo que tinha, não
fica com nada. Entre Jasão e Medéia só há
os filhos. Na realidade não é assassinato dos seus filhos,
é um sacrifício dela. É uma coisa que tem um conteúdo
ritual completamente diferente. Quando descobri que Medéia sacrifica
os filhos aos deuses, vi que eu podia fazer isso. Para mim, teria sido
completamente impossível assassinar as crianças.
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