Postado em 20/12/2006
Nas faculdades, quase metade dos estudantes desiste da área escolhida
MIGUEL NÍTOLO
Arte PB
Todos os anos, milhões de brasileiros festejam o ingresso no curso superior. Para muitos desses felizes combatentes, que enfrentaram com bravura as dificuldades impostas pelo velho e ainda imprescindível vestibular, entrar na universidade é como começar a escrever uma página nova em sua vida. Vencida a batalha, supõe-se, o universitário cursará de fio a pavio a faculdade, e não arredará pé da carreira escolhida para, no final, triunfante, quatro ou cinco anos depois, exibir o canudo que, raciocina, abrirá as portas do mercado de trabalho.
Aqueles que refletem assim, imaginando que as coisas ocorrem exatamente dessa forma, estão redondamente enganados. Não fazem idéia de que o abandono dos bancos escolares não é uma exclusividade do ensino fundamental e médio. É um aleijão que também afeta a universidade numa dimensão tal que começa a preocupar tanto as autoridades quanto os empresários do ramo, gente que está sendo cobrada a fazer mudanças com o objetivo de reduzir os números da desistência.
Um levantamento realizado pelo Instituto Lobo para o Desenvolvimento da Educação, da Ciência e da Tecnologia, a partir do Censo da Educação Superior (dados oficiais), mostrou que os números da evasão no ensino superior são maiores do que um pessimista poderia supor.
Segundo esse estudo, 49% dos alunos que entram na universidade não terão seus nomes inscritos, quatro anos depois, na lista de formandos. O instituto comparou o contingente de concluintes de 2005 com o de ingressantes quatro anos antes, uma relação que é chamada de taxa de titulação e que, no caso do Brasil, gira em torno de 51%. Descobriu-se que, do 1,4 milhão de estudantes que em 2002 brindaram o ingresso na faculdade, apenas 718 mil chegaram ao final do curso. Ou seja, quase outro tanto ficou pelo caminho. "Os índices de titulação e evasão variam muito de um país para outro e mesmo dentro de um único, dependendo do tipo de curso e das instituições de ensino superior (IESs)", observa Roberto Leal Lobo, ex-reitor da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade de Mogi das Cruzes (UMC), presidente do Instituto Lobo e sócio-diretor da Lobo & Associados Consultoria. Ele esclarece que nos Estados Unidos a média de titulação é da ordem de 66%, variando de 85% nas instituições altamente seletivas a 30% nas mais abertas; no Japão, é de 93%; no Reino Unido, 83%; na Coréia, 78%; na França, 59% e, na Itália, 42%.
"A taxa de evasão divulgada pelo Instituto Lobo, na verdade, pode apresentar algumas incorreções, pois não considera as reprovações, os cursos com duração superior a quatro anos e as mudanças de cursos ou de IESs, situações que podem representar, não necessariamente, fuga da faculdade, mas a permanência mais demorada dentro da escola para a efetiva conclusão do curso", observa Hermes Ferreira Figueiredo, presidente do Sindicato das Entidades Mantenedoras de Estabelecimentos de Ensino Superior no Estado de São Paulo (Semesp). Ele explica que o sindicato utiliza uma metodologia própria para medir a dimensão da evasão. "Em 2005, as faculdades públicas e privadas receberam 4.453.156 matrículas e assistiram à fuga de 770.222 alunos, originando uma taxa de evasão da ordem de 17,3%", garante Figueiredo. É possível mesmo que a taxa de abandono no Brasil seja um pouco menor que a divulgada, pois em muitos exemplos a relação do aluno com a universidade não se dá pelo critério anual, mas, sim, pelo vínculo de matérias cursadas, "sendo possível, portanto, que o estudante acabe permanecendo mais tempo na faculdade", sugere Yvette Piha Lehman, professora do Instituto de Psicologia da USP e coordenadora do Laboratório de Estudos sobre Trabalho e Orientação Profissional (Labor) e do Serviço de Orientação Profissional vinculados a essa escola. Entretanto, diz ela, a taxa de evasão é efetivamente alta, alcançando tanto as universidades privadas quanto as públicas.
Sinal vermelho
O que o governo tem a dizer sobre isso? "Nossos números indicam que de cada 100 pessoas que ingressam na educação superior apenas 60 concluem a graduação, o que representa uma taxa de sucesso um pouco maior do que a calculada pelo Instituto Lobo", relata Dilvo Ilvo Ristoff, diretor de Estatísticas e Avaliação da Educação Superior do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), do Ministério da Educação. Ele explica que, na realidade, trata-se de uma média e de uma aproximação, já que há cursos com dois, três, quatro, cinco e até seis anos de duração. "E há cursos, como os de formação de professores, com milhares de vagas oferecidas, que se extinguem assim que a primeira e única turma se forma." Ristoff, que também é professor titular na Universidade Federal de Santa Catarina, salienta que as médias dão uma idéia muito geral e podem esconder realidades diferenciadas.
Seja como for, o fato é que a evasão no ensino superior pode ter avançado o sinal vermelho. "É alarmante e, ao mesmo tempo, previsível e paradoxal", mostra-se compreensivelmente sobressaltado Aldo Vannucchi, reitor da Universidade de Sorocaba (Uniso), no interior de São Paulo, instituição comunitária com 10 mil alunos. "Alarmante porque acarreta enorme desperdício financeiro ao governo, à sociedade e às famílias dos desistentes; previsível, porque essa evasão se deve, em grande parte, à renda muito baixa da maioria das famílias brasileiras; e paradoxal, enfim, porque o aluno mais pobre, ao desistir do curso superior, acaba jogando fora o dinheiro que investiu, com tanta dificuldade, na realização de um sonho." Vannucchi destaca que o prejuízo que a evasão provoca não é só financeiro, mas também social. "A sociedade toda sai perdendo. É como montar um belíssimo hospital, com profissionais competentes e equipamentos completos e perfeitos, mas mantê-lo fechado ao público", compara.
Essa realidade, no entanto, obedece a uma série de motivos, e todos concordam que a pobreza é apenas um deles. "Há uma acomodação de todas as partes quando se conclui que a grande maioria das evasões se dá somente por razões econômicas", assinala o professor Lobo. "Esse é o argumento apresentado pelo aluno nas entrevistas, para não ter que ficar explicando muito, e pelos responsáveis pelas escolas, uma vez que, assim, a culpa pelo abandono não recairia sobre eles ou sobre os cursos." O ex-reitor da USP comenta que pesquisas realizadas principalmente nos Estados Unidos revelaram que a alegação de dificuldades econômicas reflete, em grande parte, perda de prioridade dos gastos com o ensino superior em relação a outras solicitações, quando o estudante se desencanta com o curso ou com a profissão. "Se não está satisfeito, o aluno prefere gastar com outras coisas e afirma que não tem recursos. Aquele que realmente sai da faculdade por questões econômicas procura antes soluções dentro das IESs, vai atrás de bolsas, financiamentos etc. E isso não acontece com grande parte dos evadidos", explica ele.
Opção errada
Um estudo conduzido em 2005 pela professora Yvette com jovens que bateram às portas do Serviço de Orientação Profissional da USP teve o mérito de realizar um mapeamento bem específico das causas da evasão. Segundo ela, o levantamento foi feito entre estudantes em crise quanto à escolha da carreira. Alguns já haviam desistido do curso, mas mantinham o firme desejo de reingressar na universidade. A pesquisa levantou que quase metade dos estudantes que abandonam a graduação experimenta problemas no instante da escolha: por conta disso, 44,5% dos alunos acabam deixando tudo para trás ao descobrir que fizeram a opção errada. Outros 30,7% abandonam a faculdade por não gostar da estrutura do curso escolhido. Vêm a seguir, totalizando 13,4%, os insatisfeitos com o mercado de trabalho e com a profissão. Os que desanimam por razões pessoais (problemas familiares, financeiros e afetivos) somam 10,5%. E aqueles que largam o curso porque não se adaptaram à cidade onde a universidade se acha estabelecida respondem pelos 0,9% restantes.
"Quando percebe que suas expectativas tinham por base os estereótipos das profissões, o aluno se decepciona", analisa a psicopedagoga Maria Beatriz de Oliveira, coordenadora dos cursos de psicopedagogia e gestão e supervisão na Universidade de Franca e professora de mestrado e doutorado em educação escolar na Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp), no campus de Araraquara, ambas no interior de São Paulo. "A falta de orientação vocacional é um fator extremamente significativo porque os adolescentes têm de fazer opções por um curso superior em um período de conflitos e de medo de enfrentar o mundo adulto." Responsável pela coordenação do Serviço de Orientação Vocacional da Unesp-Araraquara, Maria Beatriz diz que, se o acompanhamento não é competente e atualizado, os jovens acabam se pautando pelas oportunidades de mercado. Isso é uma falácia, afirma, acrescentando que a pressão vinda de casa para que os filhos sigam a carreira dos pais também dá origem a decepções. "Os jovens idealizam algo com base na competência dos pais bem-sucedidos e se frustram", explica ela.
Algumas IESs mais atentas ao problema fazem uma espécie de rastreamento da fuga protagonizada pelos universitários. Denise Aparecida Campos, pró-reitora da Universidade Cidade de São Paulo (Unicid), conta que a instituição, estabelecida no bairro paulistano do Tatuapé e com 12 mil alunos, tem obtido sucesso com a figura do professor-tutor (um por curso), espécie de orientador e articulador do curso e dos demais espaços da universidade. "O tutor auxilia o estudante em seu percurso de formação, oferecendo, inclusive, orientação profissional", ela explica. No fundo, ele trabalha com o objetivo de reverter o quadro da evasão por meio de entrevistas com os alunos que estão prestes a abandonar a faculdade. "O foco desses profissionais são os calouros, já que o maior índice de evasão centra-se no primeiro semestre." Denise argumenta que esse período é para o iniciante um outro processo seletivo, considerando que o ensino superior guarda poucas semelhanças com o ambiente escolar experimentado até então pelos estudantes. "O professor-tutor faz um trabalho preventivo direto nos primeiros meses: fica de olho nos alunos que faltam muito ou que vêm à universidade mas não entram na sala de aula, ou que vão mal nas provas. Também não perde de vista os inadimplentes. São todos sintomas da evasão", salienta a pró-reitora, afirmando que, por ter se transformado numa espécie de referencial para os estudantes, são os tutores que eles procuram quando estão enfrentando algum tipo de problema.
Foi assim que a Unicid ficou sabendo que 46% dos alunos com declarada disposição de sair alegam problemas financeiros; 20%, questões relacionadas com a parte pedagógica (dificuldade de acompanhar o curso, escolha errada da carreira, falta de identificação com o curso, incompatibilidade do turno de estudo com a disponibilidade de tempo); 20%, problemas com o trabalho (perda do emprego e mudança de cidade, de carreira ou do período de trabalho). "E 20% se justificam apontando questões de ordem pessoal, tais como problemas de saúde, gravidez, fim do casamento, separação dos pais. Nosso quadro é basicamente esse", diz Denise, revelando que, graças ao monitoramento, o índice de abandono na Unicid, que já foi de 28%, não passa hoje de 6%.
"Existem cursos com números menores de evasão e outros com números maiores. Essa é a realidade", diz Carlos Augusto Moreira Júnior, reitor da Universidade Federal do Paraná (UFPR). "Temos procurado detectar aqueles realmente problemáticos, buscando, entre o colegiado, levantar causas e procurar soluções." Moreira Júnior afirma, por exemplo, que a mudança de currículo é uma das muitas providências que podem contribuir para segurar o aluno na faculdade.
Enfim, a tarefa dos responsáveis pela solução dos problemas relativos à evasão escolar é espinhosa. "Além da qualidade do ensino, quatro pontos precisam ser trabalhados", diz Figueiredo, do Semesp. "É essencial oferecer cursos atualizados e voltados para o mercado; conceder atendimento e orientação profissional ao aluno; passar informações claras e verdadeiras sobre o curso e o seu respectivo mercado, e legar apoio para o ingressante." "A não valorização do diploma de ensino superior como forma de ascensão social e a não garantia de emprego podem levar o jovem ao desânimo", completa a psicopedagoga Maria Beatriz. "A sociedade, dada a mensagem da mídia, não valoriza o saber e sim o poder", ela assevera. Os estudantes lêem e vêem televisão, e se dão conta de que são muitos os exemplos de pessoas que fazem sucesso sem ter passado pelo curso superior e, da mesma forma, é crescente o número daquelas capacitadas, mas desempregadas. Essa constatação, aparentemente banal, está começando a abrir fendas na relação do aluno com a universidade.
Descontentamento geral
Gabriel Mário Rodrigues, presidente da Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior (ABMES) e reitor da Universidade Anhembi Morumbi, em São Paulo, vai um pouco além ao afirmar que o maior desafio posto no caminho das instituições educacionais é adaptar seus cursos às exigências da demanda educacional dos jovens. "O mundo mudou, mas a maior parte das escolas continua igual, o que faz que o aluno já não tenha o mesmo ímpeto de estudar. Ele deseja mais praticidade e objetividade." Rodrigues comenta que as aulas, com raras exceções, continuam sendo transmitidas da mesma forma. "Isto é, o professor falando e o aluno ouvindo, com pouca participação. Pior ainda, sem preocupação alguma com a contextualização e as novas realidades." Ele diz que isso não acontece só no Brasil, mas em todo o mundo. "O descontentamento é geral", adverte. Alberto Albuquerque Gomes, professor do Departamento de Educação da Faculdade de Ciências e Tecnologia e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Educação-Mestrado da Unesp, campus de Presidente Prudente, no oeste do estado de São Paulo, pensa como Rodrigues, mas faz um alerta: "De um lado, há cursos conservadores que não mudaram a ‘cara’; de outro, os cursos ditos ‘inovadores’, ‘revolucionários’, principalmente aqueles ligados às novas tecnologias, que não possuem substância e acabam se esgotando em sua própria pobreza e mediocridade teórica", diz. Ele salienta que, apesar disso, esses cursos têm conquistado mercado, a despeito dos elevados índices de evasão, "pois o ensino superior privado tem sido um investimento de retorno certo e rápido. Afinal, abrir uma faculdade exige pouco mais do que giz, lousa e saliva". Gomes comenta ainda que tem visto muitas IESs, inclusive públicas, sem a menor condição de funcionamento, formando milhares de jovens despreparados e decepcionados com o escasso retorno para o investimento emocional, intelectual e financeiro que foram levados a fazer.
"As instituições de ensino devem aprender a trabalhar com o aluno real, aquele que elas estão recebendo, e não um estudante idealizado ou aquele que havia em 1950", assevera o professor Lobo. Da mesma forma, ele diz, precisam oferecer programas não-paternalistas de integração dos calouros à vida universitária, orientar profissionalmente os novos alunos, colocar os melhores professores do ponto de vista didático nos primeiros anos, criar programas de nivelamento, quando necessário, dentre outras providências. "Há muito o que fazer para melhorar o ensino superior no Brasil", afirma, sustentando que a evasão é um reflexo dos problemas existentes e que, embora muitas ações pontuais possam ser tomadas para reduzi-la no curto prazo, ela só será efetivamente combatida por uma melhora do sistema educacional.
"A meu ver o ato de abandonar a faculdade não significa, necessariamente, como se quer fazer parecer, fracasso do professor, do curso ou do estudante", afirma o professor Ristoff, do Inep. Evasão é, em grande parte, mobilidade, diz. "Sou pessoalmente um evadido do curso de direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde fui aluno por dois anos e meio. Saí porque quis, pois preferi dedicar-me às letras, em especial à literatura." Ristoff comenta que sempre se surpreendeu com o fato de que tantos pudessem achar o direito a melhor opção para sua vida. "Não foi para mim! Mesmo assim, devo dizer que me recuso a aceitar que os dois anos e meio que passei no curso de direito tenham sido tempo perdido." Ele assegura que aprendeu muito. "Até hoje sei o que é fumus boni iuris [a fumaça do bom direito (o fundamento jurídico)] e periculum in mora [o perigo (está) na demora], e essas coisas do teatro jurídico. E posso garantir que, se outra estrutura burocrática nunca validou o que lá aprendi, os inúmeros cargos administrativos que exerci validaram, a vida validou, e isso, no final das contas, é o que importa", completa.
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