Postado em 20/12/2006
Técnica revolucionária de cura desperta otimismo e muita cautela
EVANILDO DA SILVEIRA
Até 1999, quando foram eleitas pela revista Science o avanço científico do ano, pouca gente sabia o que eram as células-tronco (CTs). A partir de então, o número de publicações sobre o assunto cresceu exponencialmente, popularizando-as. Hoje, elas estão nas páginas dos jornais e, por causa de sua capacidade de se transformar em qualquer tecido do corpo humano, trazem esperanças de recuperação, no caso de vários males. Alguns cientistas chegam ao ponto de dizer que sua descoberta é tão revolucionária quanto a da penicilina. Em sua maioria, no entanto, os pesquisadores são mais cautelosos. Embora reconheçam as possibilidades que essas células abrem para a medicina, fazem questão de lembrar que ainda serão necessários muitos anos de estudos e testes até que elas possam ser usadas em tratamentos rotineiros.
A farmacêutica-bioquímica Patrícia Pranke, professora de hematologia da Faculdade de Farmácia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) é uma das que preferem guardar uma certa reserva. Ela realiza estudos na área de neurociência, mais especificamente na tentativa de reconexão de medula partida. É o caminho para que paraplégicos possam voltar a andar. Ainda na fase de experiências com cobaias, ela já conseguiu bons resultados em ratos. Mesmo assim, mantém a calma e resume sua posição e a da maioria de seus pares. "Estamos cautelosamente otimistas. Não podia ser diferente diante do que estamos conseguindo. Há dez anos dizia-se que a reconexão da medula era impossível. Hoje sabemos que não. Mas também não devemos nos precipitar, porque não se trata de milagre. É ciência, e ciência é lenta."
Lygia da Veiga Pereira, física e doutora em genética molecular humana, do Departamento de Genética e Biologia Evolutiva do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP), também mostra um otimismo contido quando o assunto é o emprego de CTs na medicina. "As pesquisas com os diferentes tipos dessas células devem ser acompanhadas com entusiasmo e cautela", recomenda. "Os avanços e retrocessos são inerentes a toda área de ciência em desenvolvimento. Quanto às CTs, ainda não sabemos quais tipos cumprirão a promessa terapêutica e serão mais adequados no caso de cada doença. Por isso, ainda há poucos resultados no tratamento em seres humanos."
Mal comparando, as CTs são como o tronco de uma árvore que pode gerar os ramos, as folhas, as flores, ou seja, são precursoras de outros tipos de células. Segundo Lygia Pereira, tecnicamente elas podem ser definidas como aquelas com grande capacidade de proliferação e auto-renovação e de responder a estímulos externos e dar origem a diferentes linhagens (tipos) de células especializadas. Ou, de forma simplificada, são células primitivas, produzidas durante o desenvolvimento do organismo e que dão origem a todos os tecidos do corpo, como a pele, os rins, o cérebro, o coração e os ossos, por exemplo. "Assim, teoricamente elas poderiam ser multiplicadas em laboratório e induzidas a formar tipos celulares específicos que quando transplantados regenerariam o órgão doente", diz a cientista da USP.
Potencial de diferenciação
Há dois grupos de células-tronco: embrionárias e adultas. As primeiras, encontradas nos embriões, eram tidas até recentemente como as únicas capazes de desenvolver todos os tecidos humanos. Em novembro último, duas equipes de pesquisadores, uma do Japão e outra dos Estados Unidos, anunciaram que conseguiram fazer com que células humanas adultas da pele passassem a ter as mesmas características das versáteis células-tronco embrionárias (CTEs), como a capacidade de dar origem a outros tecidos do corpo.
É essa característica natural das CTEs que faz com que um embrião se transforme em um corpo completamente constituído. Por volta de 72 horas após a fecundação do óvulo, o embrião não passa de um grupo 32 células capazes de formar todos os tecidos, incluindo a placenta, e que por isso são chamadas de totipotentes. Com cerca de cinco dias, o embrião humano é uma esfera formada por aproximadamente cem células, chamada de blastocisto. As que estão na parte externa vão formar a placenta e outros órgãos necessários ao desenvolvimento fetal. As internas darão origem a todos os tecidos do corpo, e por isso são chamadas de pluripotentes. São estas últimas as usadas nas pesquisas.
O feito dos cientistas americanos e japoneses poderia fazer supor que as pesquisas com CTEs seriam de agora em diante dispensáveis. Não é o que pensa Lygia Pereira. Em declaração à "Folha de S. Paulo" de 21 de novembro último, ela afirma que ainda temos muito a aprender com as CTEs e que elas serão necessárias às análises e aperfeiçoamentos requeridos pelas recentes descobertas.
Em estado natural, as células-tronco adultas são mais especializadas, e delas derivam tipos específicos de células. Elas podem ser oligopotentes (capazes de formar mais de um tipo de tecido) e unipotentes (geram um único tipo). As mais conhecidas são as da medula óssea, que desde a década de 1950 são utilizadas no tratamento de diferentes doenças que afetam o sistema hematopoiético (ou hematopoético), responsável pela formação e desenvolvimento de todos os diferentes tipos de células do sangue (linfócitos, hemácias, plaquetas e outras). Entre as doenças mais conhecidas tratadas por transplantes de CTs de medula óssea está a leucemia. As células-tronco adultas também estão presentes em muitos tecidos adultos, como por exemplo músculos, pele, fígado e sistema nervoso. Elas atuam na manutenção desses tecidos, repondo células mortas.
Devido a sua maior capacidade natural de diferenciação, as embrionárias seriam as ideais para uso terapêutico na chamada medicina regenerativa. "Em modelos animais, elas se mostraram capazes de regenerar praticamente todos os tecidos e, portanto, poderiam ser utilizadas para tratar muitas doenças", revela a médica Rosalia Otero, membro do Programa de Terapias Celulares da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). "Mas ainda não são empregadas em nenhum estudo clínico no mundo com seres humanos."
Os estudos de Rosalia, que é chefe do Laboratório de Neurobiologia Celular e Molecular do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho, da UFRJ, investigam o possível papel terapêutico dos diferentes tipos de células-tronco, tanto embrionárias como adultas, em modelos animais de doenças neurológicas. "Em colaboração com neurologistas de várias instituições, coordenamos o estudo clínico que avalia a segurança da terapia celular com CTs de medula óssea em pacientes com acidente vascular cerebral na fase aguda", explica a pesquisadora. "Nosso trabalho ainda está em andamento, mas todos os realizados por outros cientistas e já concluídos mostraram que elas são seguras, com alguns indícios de que podem ser eficazes."
Questões éticas
O problema na utilização de células-tronco embrionárias é que ela esbarra em questões éticas, religiosas e culturais. Há duas maneiras de obtê-las: a partir de embriões excedentes, nas clínicas de reprodução assistida (fertilização in vitro ou, popularmente, "bebê de proveta"), ou daqueles produzidos, por clonagem, especificamente para fins terapêuticos. "O processo envolve obrigatoriamente a destruição do embrião, ainda na forma de blastocisto", explica Lygia, da USP. "No entanto, certas culturas e religiões atribuem ao embrião humano, desde o momento da fecundação, o status de ser vivo, com todos os direitos de uma pessoa já nascida – por isso sua destruição seria inaceitável, e as CTEs têm sido tema de grande polêmica no mundo todo."
Nesse contexto, a legislação brasileira sobre a questão chega a ser ousada. O assunto foi definido pela lei nº 11.105, de 24 de março de 2005 – a Lei de Biossegurança –, que diz em seu artigo 5º que "é permitida, para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e não utilizados no respectivo procedimento", desde que eles sejam inviáveis ou estejam congelados há três anos ou mais. Em qualquer caso, é necessário o consentimento dos genitores.
No entanto, mesmo que as questões éticas fossem superadas, haveria ainda barreiras técnicas a vencer. A primeira delas diz respeito à segurança dessas células. A mesma capacidade que elas têm de se transformar em qualquer tipo de tecido para transplante também as torna um perigo. "Quando injetadas em seu estado nativo em camundongos imunodeficientes, as CTEs podem formar tumores compostos de vários tecidos diferentes, chamados teratomas", explica Lygia. "Assim, antes de injetá-las no paciente (seja ele um camundongo ou uma pessoa), temos de, primeiro, induzi-las no laboratório a se transformar no tipo celular que nos interessa."
Um segundo problema importante diz respeito à compatibilidade entre as CTEs e o paciente. "Em qualquer transplante é necessário existir compatibilidade entre doador e receptor para que não haja rejeição", diz a cientista da USP. "O mesmo deve acontecer com um transplante dessas células. Como garantir que teremos CTEs compatíveis com todos os pacientes? Uma solução seria criar um banco delas, cada uma derivada de um embrião diferente, e procurar uma adequada ao paciente. Porém, nossa experiência com bancos de medula óssea demonstrou que isso é extremamente difícil de conseguir."
Pesquisas
Diante desse quadro, os cientistas já vêm desenvolvendo há algum tempo pesquisas com células-tronco adultas. Um desses estudos é da Universidade de Düsseldorf, na Alemanha. Trata-se de uma das primeiras experiências de transplante de CTs retiradas de medula óssea em seres humanos com problemas cardíacos, realizada em 40 pacientes que haviam sofrido infarto agudo. Desses, 20 receberam o transplante e 20 serviram de grupo de controle. Três meses depois, os transplantados mostraram uma melhora do desempenho do coração, com a fração de sangue bombeada passando de 55% para 65% e uma redução da parte do tecido lesado do órgão de 33% para 14%.
Na Universidade de Alberta, no Canadá, foi feito outro estudo, nesse caso com diabéticos, também com bons resultados. Participaram da pesquisa pessoas que sofriam de diabetes do tipo 1, doença causada pela redução do volume de insulina, hormônio que regula os níveis de açúcar no sangue e é secretado pelo pâncreas. A partir de células pancreáticas de órgãos doados, os pesquisadores canadenses induziram a maturação in vitro de CTs das ilhotas de Langerhans, agrupamento de células no pâncreas precursoras das produtoras de insulina. Depois do procedimento, 33 dos 38 pacientes que se submeteram ao transplante não precisaram mais receber insulina.
No Brasil também estão sendo desenvolvidos alguns trabalhos, além dos de Patrícia e Rosalia. Ainda não há resultados definitivos, mas os obtidos até agora são promissores. Um dos melhores, inédito no mundo, foi conseguido por uma equipe do Centro de Pesquisa Gonçalo Moniz, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), na Bahia. Seus pesquisadores realizaram o primeiro transplante de células de medula óssea em pacientes com insuficiência cardíaca causada por doença de Chagas. Além da cura dos pacientes, o que chamou a atenção foi a rapidez dos resultados. Foram apenas três anos e meio entre a pesquisa básica, que começou em 2000, e a aplicação clínica, iniciada em junho de 2003.
Insuficiência cardíaca também é o objeto de estudo do cardiologista Edimar Bocchi, do Instituto do Coração (Incor), da Faculdade de Medicina da USP. Há cinco anos ele começou a tratar com células-tronco pacientes com essa doença, que pode levar à morte. Até agora, 30 pessoas receberam o tratamento com resultados promissores, mas aquém do que esperava a equipe de Bocchi. "Houve um aumento de 4% a 5% da fração de ejeção [capacidade de bombeamento] do coração deles", explica. "Isso resultou numa melhora clínica dos pacientes, que passaram a ter menos falta de ar. Mas nosso sonho era regenerar o coração doente. Agora, vamos continuar as pesquisas."
Teste em larga escala
O médico Júlio Voltarelli, coordenador da unidade de transplante de medula óssea do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP, também tem bons motivos para otimismo. Desde 2001 ele vem pesquisando transplantes de CTs para tratar doenças auto-imunes, como lúpus, esclerose múltipla, esclerose sistêmica e diabetes do tipo 1. "De modo geral, tivemos bons resultados em 50% a 70% dos casos, em doenças reumáticas e neurológicas", conta. "Quanto ao diabetes, conseguimos tirar e manter suspensa a insulina em 11 dos 14 pacientes pesquisados."
Além disso, o Brasil está realizando a maior pesquisa do mundo sobre o uso de células-tronco no tratamento de doenças cardíacas. Trata-se de um teste clínico em larga escala, financiado pelo Ministério da Saúde e que envolve cerca de 50 instituições de todo o país. Estão sendo tratados com células mononucleares, entre as quais as células-tronco, 1,2 mil pacientes, dos quais 300 com cardiopatia causada pela doença de Chagas, 300 com coração dilatado, 300 com doença isquêmica crônica e 300 que sofreram infarto. Metade de cada grupo recebe o tratamento e a outra metade serve como grupo de controle, recebendo apenas placebo.
Segundo o médico e coordenador do estudo, Antonio Carlos Campos de Carvalho, da UFRJ, o objetivo do trabalho é avaliar a segurança e a eficácia dessa opção terapêutica para eventualmente colocá-la à disposição da população como uma alternativa ao transplante de coração. "Queremos saber se o tratamento melhora ou não a função cardíaca", explica Carvalho, que também é coordenador de Ensino e Pesquisa do Instituto Nacional de Cardiologia, ligado ao Ministério da Saúde. "Os primeiros resultados serão divulgados no ano que vem."
Mesmo que essa e outras experiências dêem certo, ainda vai se passar algum tempo até que as CTs se transformem numa alternativa terapêutica. As estimativas variam de cinco a dez anos – mas pode demorar muito mais. Quando a Aids surgiu, há mais de duas décadas, também se dizia que seria possível desenvolver uma vacina em pouco tempo. Como se sabe, até hoje isso não aconteceu, e a doença ainda é incurável. No caso das moléstias do coração, Carvalho pode ser considerado um otimista, com ressalvas. "Se conseguirmos descobrir qual o tipo ideal de célula-tronco a usar, a melhor via de introduzi-la no paciente e quando isso deve ser feito, poderemos chegar a um tratamento de rotina com CTs dentro de uns cinco anos", acredita.
Seu colega Bocchi é mais cauteloso. A seu ver, isso não ocorrerá em menos de dez anos. Segundo o cardiologista, os estudos no mundo todo ainda são incipientes, e os avanços obtidos são pequenas melhoras, que não passam de 6%, no desempenho do coração. De acordo com ele, está havendo uma divulgação precipitada e muito otimista desses resultados, o que tem gerado um efeito ruim sobre a população. "As pessoas estão deixando de fazer a prevenção dos problemas cardíacos e morrendo por causa disso", alerta. "Muitos acreditam que em pouco tempo haverá cura para todas as doenças e não se cuidam. Eles precisam saber que os cuidados preventivos, como a prática de exercícios físicos e a manutenção do nível de colesterol dentro dos parâmetros, aumentam a produção natural de células-tronco no organismo."
Patrícia, da UFRGS, também chama a atenção para o excesso de otimismo e as promessas milagrosas. "Os pesquisadores sérios devem tomar cuidado para não criar expectativas exageradas nos pacientes", diz. "É preciso evitar o charlatanismo. Lidamos com uma população muito suscetível a ele." No caso dos pacientes, ela faz recomendações sobre como evitar cair nas mãos de impostores. "Primeiro, é preciso saber que ainda não existe tratamento e que por enquanto tudo se resume a estudos", alerta. "Depois, que jamais há trabalho nessa área feito por um indivíduo isolado. As pesquisas sempre são realizadas em grupo e em grandes hospitais."
Voltarelli, da USP de Ribeirão Preto, lembra mais um obstáculo a ser vencido. "Não existe certeza ainda se as células-tronco apresentam efeitos adversos em longo prazo nem quanto à forma como elas agem", diz. "O potencial delas é ilimitado, mas os estudos básicos e clínicos terão de transformá-lo em realidade, e ainda não sabemos para quais doenças elas vão funcionar." Isso não deve, entretanto, paralisar os cientistas. Mesmo que não acabem se destinando a tratamentos rotineiros, as CTs podem trazer vários benefícios para a humanidade. "As pesquisas com células-tronco não devem apenas objetivar seu uso como agente terapêutico, mas também servir como um modelo em que possamos estudar os mecanismos por trás da diferenciação celular, do desenvolvimento embrionário e do câncer, entre outros", diz Lygia. "Esses conhecimentos de biologia básica poderão, por sua vez, levar a uma real melhora da qualidade de vida humana."
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