Postado em 30/07/2008
Precisar precisa?
Há especialistas que alertam para o fato de que o hábito de consumir se tornou um instrumento de bem-estar e conforto, auto-afirmativo para a sensação de estabilidade financeira e afetiva. Para além da necessidade, carros, roupas, perfumes e outros produtos seriam hoje os substitutos para valores éticos e morais – e mais: disponíveis para quem pudesse pagar por eles. “Existe apenas a possibilidade imediata de alcançar a felicidade, entendida como a posse de um determinado bem de consumo”, escreve o psicanalista Sérgio Telles em seu artigo. Já o doutor em antropologia Everardo Rocha defende a necessidade de analisar a questão sem demonizar o consumo, a fim de entender um fenômeno característico de nossa sociedade. “O julgamento moral ou político do consumo tolhe, emperra, dificulta um debate conseqüente sobre seu significado na experiência contemporânea”, afirma. A seguir, ambos discutem, em artigos inéditos, o consumo desenfreado.
As faces da moeda: produção e consumo na cultura contemporânea
por Everardo Rocha
O consumo visto como consumo desenfreado é, obviamente, condenável. Aliás, qualquer coisa sem freios é terrível, sobretudo aquelas que se movem em velocidade. Como ensina o dicionário, algo que tem como derivações de sentidos figurados as idéias de incontrolável, desabalado, desembestado, que não se contém, exaltado, sem limites, desmedido, furioso, irado, que age de maneira dissoluta, devasso ou licencioso é, no mínimo, algo perigoso. Se consumo desenfreado é perigoso, produção desenfreada, também.
Falar de consumo e de produção é falar de fenômenos que marcam o espírito do nosso tempo. Na vida cotidiana, são temas de conversas usuais e recorrentes. Falamos sistematicamente sobre coisas como trabalhos, estágios, estudos, coisas da chamada vida produtiva de cada um. Sempre que algo é dito sobre trabalho, os interlocutores parecem interessados em ouvir, comentar e participar, concordando ou discordando, desenvolvendo ou complementando. Profissões, carreiras, propostas, planos, salários, ações, resultados, problemas, conquistas, sucessos ou dificuldades experimentadas no mundo dos negócios são tópicos comuns de conversas. A vida produtiva é sempre um bom assunto em diversas situações sociais.
Mas, se falamos muito de assuntos relacionados à chamada vida produtiva, falamos muito (às vezes até mais) de assuntos relacionados à outra ponta da questão – o consumo. Falar do que gastamos ou queremos gastar, do que compramos, das grifes, das modas, dos produtos, dos serviços, dos shoppings, das lojas, dos bens de consumo é também uma conversa recorrente. É comum ainda passar das questões da produção às do consumo, do ganho ao gasto, no mesmo diálogo, e podemos observar que esses assuntos – produção e consumo – perpassam diferentes grupos e classes socioeconômicas, pois são temas que atuam como textos de um repertório essencial e amplamente disponível no imaginário da cultura contemporânea. Produção e consumo são como códigos através dos quais um imenso conjunto de representações e práticas ganha sentido em nossas vidas.
Ainda que produção e consumo sejam assuntos comuns, é interessante ver que geram diferenças significativas se aplicados ao comportamento humano. Quando se diz que alguém é bom trabalhador ou que é comprometido com a empresa, que veste a camisa, que se dedica, estamos atribuindo-lhe identidades positivas. Quando se diz que alguém é consumista ou gastador, estamos no pólo oposto, atribuindo-lhe uma identidade negativa. Essa diferença indica, de forma eloqüente, a superioridade moral que a produção e os seus temas – trabalho, empresa, profissão – possuem quando comparados ao consumo e os seus temas – marcas, compras, gastos. É como se a produção fosse nobre e valorosa, o mundo sério e verdadeiro, e o consumo, do outro lado, fosse superficial e fútil, o mundo vazio e inconseqüente. A idéia do consumo como consumo desenfreado, vício compulsivo, doença, problema ou superficialidade, coisa de fútil, emergente, dondoca – uma inferioridade moral, portanto – tem grande apelo ideológico. É comum que variações sobre essa idéia apareçam em artigos de jornal, reportagens de revistas ou debates televisivos. Nesses fóruns, geralmente, o consumo é julgado e condenado como responsável por boa parte das mazelas do mundo. O consumo é sempre um culpado disponível, um dos réus favoritos, um bom argumento para sustentar a superioridade moral da produção.
O julgamento moral ou político do consumo tolhe, emperra, dificulta um debate conseqüente sobre seu significado na experiência contemporânea. A opção pelo olhar apocalíptico sobre o consumo transforma um fenômeno absolutamente central em nossa cultura – algo que até mesmo nomeia nosso tempo como sociedade de consumo – em mero repositório de culpas. Assim, abre-se mão de estudar devidamente o fenômeno e, através dele, compreender melhor a experiência social que vivemos. Jogamos fora o bebê junto com a água do banho.Para falar da produção e suas conseqüências sociais, existe uma pesada tradição acadêmica que atravessa várias disciplinas, inclusive uma delas, a economia, elaborada especificamente para pensá-la. Isso, evidentemente, contrasta com o consumo em torno do qual ainda muito pouco se produz de forma sistemática. Claro, é mais fácil julgar e condenar. Entretanto, a pesquisa do consumo é fundamental, pois o fenômeno coloca em jogo um diversificado conjunto de atividades sociais, envolve todo um universo de pessoas, um imenso investimento de tempo e de recursos, um amplo repertório de significados culturais e, por causa dele, estabelece-se uma formidável movimentação social que se espalha a nível planetário.
No tempo presente, as singularidades culturais se encaixam no curso do que chamamos globalização, elaborando um imaginário amplamente difundido em um processo constante de mundialização de valores. É, sobretudo, através do sistema de consumo e da narrativa midiática que acontece esse compartilhamento de valores que caracteriza a mundialização ou planetarização da cultura. Pesquisar o consumo é, portanto, um projeto decisivo para entender experiências e representações coletivas, tanto locais quanto globais, na sociedade contemporânea.
O consumo, através de um complexo sistema de representações, define capitais sociais, expressa identidades, diferenças, subjetividades, projetos, comportamentos, relações e oferece um mapa classificatório que regula várias esferas da experiência social na cultura contemporânea.
O fato de que o consumo é parte importante de nossa vida é uma obviedade. Todos sabem disso. Portanto, não pesquisá-lo sistematicamente é negligenciar a oportunidade de, através dele, conhecer uma das formas mais importantes de expressão da nossa cultura. O estudo do consumo se impõe como uma chave fundamental para a compreensão do nosso modo de vida.
Por isso, é importante indicar alguns pontos que podem ser bons para pensar o consumo como um fenômeno central na sociedade contemporânea. O primeiro é que o consumo é um sistema de significação e a principal necessidade que supre é uma necessidade simbólica. O segundo é que o consumo é como um código, e através desse código são traduzidas muitas das nossas relações sociais. O terceiro é que esse código, ao traduzir relações sociais, permite a classificação de coisas e pessoas, produtos e serviços, indivíduos e grupos. O consumo é um sistema de classificação do mundo que nos cerca a partir de si mesmo e, como é próprio dos códigos, pode ser sempre inclusivo. E inclusivo em dois sentidos: de um lado, inclusivo de produtos e serviços que a ele se agregam e são por ele articulados aos demais, de outro, inclusivo de identidades e relações sociais que são definidas, em larga medida na nossa vida, a partir dele. Através do consumo e da narrativa midiática que lhe dá sentido, são reproduzidas formas de sociabilidades, modos de vida e experiências sensíveis que definem produtos e serviços como necessidades; explica-os como modos de uso; confecciona desejos como classificação social. A mídia, o marketing, a publicidade, o design interpretam a produção, socializam para o consumo e nos oferecem um sistema classificatório que permite ligar um produto a cada outro e todos juntos às nossas experiências de vida.
Penso que uma especificidade da nossa cultura, uma singularidade histórica, reside em construir um sistema de integração simbólica da diferença entre produção e consumo, pela distribuição de significados a partir da esfera da produção, realizando o destino de produtos e serviços na direção de mercados e consumidores. É nesse jogo poderoso que se envolvem fantasias, desejos, magias, mitos e rituais; que acontece o consumo, lugar privilegiado para o exercício permanente de classificação que fornece valores e categorias com os quais concebemos semelhanças e diferenças entre objetos e seres humanos.
É essencial, portanto, entender a natureza das relações entre produção e consumo. Nem uma nem outra deve ser desenfreada. O consumo não é culpado; é parte integrante de um processo articulado à esfera da produção. Um modelo de sociedade iniciada com a Revolução Industrial e no qual produção e consumo são duas faces da mesma moeda. Sem consumo a produção não tem razão de existir. E o mundo seria outro. A produção e o consumo, para o bem ou para o mal, são parte integrante da sociedade moderno-contemporânea, pois sua relação é indelével – o que afeta um, afeta o outro.
Assim, para chegar ao equilíbrio, deve haver consumo consciente, mas também produção consciente. Não se deve colocar a compra como valor absoluto ou buscar a felicidade simplesmente pela obtenção de bens de consumo. A esperança é de que, cada vez mais, consumidores, de um lado, e forças produtivas, de outro, tomem consciência de que responsabilidade é fundamental tanto no consumo quanto na produção. E a responsabilidade passa mais por uma reflexão conseqüente sobre o consumo do que por um simples julgamento moral do fenômeno. É nesse espaço que se inscreve o desafio de um estudo antropológico do consumo como campo de experimentação, troca intelectual e compreensão responsável.
“A opção pelo olhar apocalíptico sobre o consumo transforma um fenômeno absolutamente central em nossa cultura – algo que até mesmo nomeia nosso tempo como sociedade de consumo – em mero repositório de culpas”
A busca da felicidade e as vãs promessas do consumo
por Sérgio Telles
O que é uma ideologia? É um sistema de crenças no qual estão abordadas e resolvidas todas as grandes questões que angustiam uma determinada parcela da humanidade num certo período do tempo, fornecendo explicações sobre o passado, organizando o presente e estabelecendo rotas para o futuro. Com facilidade, a ideologia pode transformar-se num programa político, traçando objetivos e prioridades a serem alcançados através de uma ação organizada. A ideologia permite que o poder seja exercido de forma discreta, acobertado por crenças que simultaneamente o disfarçam e legitimam. O exemplo padrão da ideologia é a religião, qualquer religião. Outros exemplos são os partidos políticos.
No século passado, tivemos duas expressões máximas de organização estatal ideológica, o nazismo e o stalinismo, que deram origem a várias cópias mais circunscritas e regionais.
Como não se podem conceber esses totalitarismos sem a propaganda política que divulgava sua ideologia monolítica, não se pode conceber a atual produção de bens do capitalismo sem a publicidade maciça que nos induz ao consumo. A publicidade comercial é a herdeira direta da propaganda político-ideológica. Por isso mesmo, a publicidade veicula uma ideologia própria das democracias ocidentais regidas pelo capitalismo globalizado e pela ditadura dos mercados que transcendem e subjugam as antigas soberanias nacionais – a ideologia do consumo.
Essa atual ideologia promete a felicidade através da aquisição de uma mercadoria. Diz ela: “Compre tal carro e você será feliz, demonstrando seu sucesso. Compre tal roupa e você será sexy e bem-sucedido. Fume tal cigarro ou beba tal bebida e será um vencedor”.
A propaganda cria um mundo completamente distante da realidade. Nele não existe dor e sofrimento, não existe a morte. Existe apenas a possibilidade imediata de alcançar a felicidade, entendida como a posse de um determinado bem de consumo.
Além do mais, a propaganda vende a idéia de um “direito” à felicidade. É uma sutil perversão de uma grande conquista política conseguida pela democracia. Como reza a constituição norte-americana, todos temos o direito de procurar a felicidade, o que não é o mesmo que o direito à felicidade. A diferença é fundamental. A procura da felicidade implica a idéia de liberdade política, a possibilidade de o cidadão fazer escolhas que lhe sejam convenientes de acordo com o seu desejo. Mas não se pode falar em direito à felicidade, pois isso implicaria o salto de uma categoria político-social para uma outra situada em outro campo, aquele do existencial, do desejo e da fantasia. Quem pode garantir um “direito” à felicidade, sendo esta algo evanescente e de difícil caracterização devido a sua peculiar singularidade, específica para cada um? Por acaso, pode-se falar num “direito” de ser mais feliz, mais inteligente, de ser mais bem-apessoado, de ter uma cor de pele diferente daquela com a qual se nasceu, de ser dez centímetros mais alto – para dar alguns exemplos corriqueiros?
A resposta é negativa, embora a ideologia do consumo inclua também os procedimentos médicos, que graças aos avanços da tecnociência conseguem realizar intervenções antes impensáveis no manejo do corpo humano, possibilitando mudanças no aspecto formal (cirurgias estéticas) e até mesmo no gênero sexual (cirurgias transexuais).
Essa confusão entre direito a buscar a felicidade e direito a ser feliz tem duas conseqüências imediatas. Uma delas é do âmbito do psicológico. Ela propicia a negação dos limites inevitáveis e irremediáveis que a realidade impõe a nossos desejos. Afinal, haverá sempre pessoas mais felizes, mais inteligentes, mais bonitas, mais altas, do que outras. Ter de reconhecer, admitir e aceitar as diferenças entre o eu e o outro, um outro que poderá ser ou ter tudo aquilo que o eu deseja e não pode ter ou ser é o resultado de um longo e indispensável percurso a ser trilhado pelo ser humano para conquistar um crescimento psíquico e emocional.
A outra conseqüência do embuste promovido pela publicidade é que, ao prometer “direitos” impossíveis, ela propositadamente confunde a noção de direitos do cidadão com os direitos do consumidor, além de incidir naquela outra confusão mais importante já assinalada acima: o trânsito do sociopolítico para o vivencial do desejo.
Dessa maneira, a ideologia do consumo veiculada pela publicidade alimenta o narcisismo infantil existente em todos nós. Ela promete a felicidade e a realização de todas as nossas fantasias onipotentes de beleza, força, encanto, poder, charme sexual. Para tanto, basta comprar tal ou qual mercadoria.
Todos nós, ao vermos um anúncio de qualquer bem de consumo, com todas as promessas de beleza, felicidade, sucesso sexual, afetivo e profissional a que teríamos acesso com sua aquisição, sabemos que aquilo é um logro, um engano, uma mentira. Mas, lá no fundo, uma parte de nós tende a acreditar, quer acreditar. É justamente aquela parte que se rebela contra os impedimentos e as limitações que a realidade nos impõe e quer restaurar o narcisismo onipotente perdido em nosso desenvolvimento. Ao nos constituirmos como sujeitos, tivemos de abdicar da fantasia de fazermos uma totalidade com a mãe, tivemos de aceitar nossa incompletude e construir, a partir dela, nossa existência. É por isso que a publicidade comercial funciona. Ela, com grande habilidade, maneja nossos mais regressivos desejos inconscientes.
Sob esse aspecto, a psicanálise e a publicidade estão em campos rigorosamente opostos. A psicanálise nos confronta com a falta, a incompletude, a castração, por saber que é somente a partir da abdicação do narcisismo e da onipotência que podemos crescer e viver plenamente. A publicidade faz o inverso, alimenta a fantasia onipotente e narcisista de completude através da aquisição de bens de consumo.
Mas o que acontece quando as pessoas compram o objeto de seu desejo? Elas ficam mais felizes, como promete a publicidade?
Claro que não. Em primeiro lugar porque o desejo humano estará sempre insatisfeito, pois ele se baseia na restauração de uma impossível completude com o corpo da mãe, imagem de paraíso para sempre perdido. Por causa disso, quando se obtém aquilo que se deseja, o obtido imediatamente tende a se desvalorizar e a procura recomeça. De certa forma, a propaganda intui isso, bem como a indústria, pois, quando esta planeja a obsolescência de seus produtos, visa atender não a critérios objetivos e racionais que deveriam reger a aquisição de bens necessários, mas à economia do desejo, da fantasia, criando sucessivas versões de um mesmo objeto por definição inalcançável.
De qualquer forma, seja pela própria estrutura do desejo que faz impossível sua satisfação, seja pelas promessas ilusórias da propaganda, o que ocorre após a compra é que, passada a euforia da aquisição, o consumidor se depara com uma grande decepção. Ele constata então que o objeto de fetiche que adquirira não o deixa imune ao sofrimento, à dor e à angústia, elementos afetivos inalienáveis da condição humana.
Tal frustração pode descambar numa “depressão”. As aspas vão por conta do excessivo uso desse diagnóstico por parte de leigos e profissionais da saúde, a ponto de torná-lo o atual mal du siècle. Essa “depressão” difere da efetiva depressão decorrente de perdas e dificuldades de elaborar o luto. Essa “depressão”, tão difundida hoje em dia, decorre do penoso reencontro do consumidor com a realidade (interna e externa), que se mantém inalterada, ao contrário do afirmavam as vãs promessas da publicidade.
“A propaganda cria um mundo completamente distante da realidade. Nele não existe dor e sofrimento, não existe a morte. Existe apenas a possibilidade imediata de alcançar a felicidade, entendida como a posse de um determinado bem de consumo”