Postado em 03/12/2008
Doutor em história moderna e contemporânea pela Universidade de São Paulo (USP), o professor e historiador Carlos Guilherme Mota debruça-se sobre a revisão dos acontecimentos que formaram o Brasil. Em um momento de reinterpretação da história brasileira, diversos fatos e personagens revelam-se um pouco diferentes do que foi ensinado na escola – sobretudo quando se fala das gerações mais velhas ou mesmo daqueles que hoje têm mais de 30 anos. “O [José] Bonifácio foi cristalizado como um velho patriarca ranheta e não era assim”, exemplifica, se referindo ao político considerado peça-chave no processo de independência do país. “Ele era um velho exigente, muito bem informado e até divertido.” Professor na USP, na Universidade Presbiteriana Mackenzie e na Fundação Getulio Vargas (FGV), o entrevistado deste mês já foi professor visitante no Centro de Estudos Brasileños da Universidad de Salamanca, na Espanha, nas universidades de Londres e do Texas, e na Escola de Altos Estudos de Paris. Mota é autor de diversos livros sobre a história do Brasil, sendo um dos mais recentes e conhecidos o Ideologia da Cultura Brasileira (Editora 34, 2008), no qual faz um estudo das idéias brasileiras num período que vai de 1933 a 1974. Na conversa exclusiva que teve com a Revista E, o especialista derrubou alguns mitos, analisou a estrutura política do país, sobretudo no campo da cultura, e ainda revelou: “Do ponto de vista de ser um grande negociador, complexo, sofisticado, [a grande figura do Brasil] é dom João VI”. Resposta surpreendente principalmente para aqueles que imaginavam o monarca apenas um fugitivo de Napoleão. A seguir, trechos.
Que cultura brasileira foi passada para nós? Que cultura brasileira é essa que tentam nos passar e você acaba contestando no seu livro?
Se você tomar a abolição [da escravatura], em 1888, uma abolição relativa e seletiva, para começo de conversa, você vê que não houve uma integração dos negros em uma sociedade moderna de fato. Eles continuaram muito marginalizados, como estudou Florestan Fernandes em um livro clássico A Integração do Negro na Sociedade de Classes [Ática, 1978]. Monta-se uma sociedade de classes, mas excluindo as minorias, os negros etc. Formulam-se alguns projetos, do final do século 19 e início do século 20, em que a Semana de Arte Moderna é só um episódio, importante, mas, na verdade, um acontecimento no bojo das oligarquias, com grandes figuras, sobretudo Mário de Andrade, a meu ver. É uma tentativa de redescobrir o Brasil, que vai se acentuar com a crise de 1929. A crise foi muito salutar, a grande crise internacional do Capitalismo. Ela abriu brechas naquele modelo que estava se definindo com a Primeira República, uma república oligárquica, com valores ainda dos heróis da raça branca do instituto histórico geográfico. Claro que havia movimentos sociais, operários, anarco-sindicalistas, que se alteraram bastante com a imigração. O Partido Comunista (PC) passa a existir a partir de 1922. Mas um grupo, uma geração muito importante, emerge, surge historicamente nos anos de 1920. Muitos deles vão estudar nos Estados Unidos: Monteiro Lobato, Gilberto Freyre, Anísio Teixeira. Eles vão para os Estados Unidos e percebem o grande atraso do Brasil. Gilberto Freyre vai, inclusive, em Weckl, uma cidade na qual eu pretendo nunca pisar, no Texas do Bush, ele [Freyre] se lembra do cheiro de pessoas queimadas – negros – que lhe impregnou as narinas, cheiro de carne queimada. E ele se lembra, então, que o Brasil estava em ebulição também. O Nordeste estava em ebulição. Em 1955 e 1956, trinta e poucos anos depois, já teríamos as Ligas Camponesas, por exemplo. É bom lembrar que esse tempo é muito próximo e o Nordeste não é o mundo do atraso, o mundo do Dorival Caymmi apenas. Há uma violência no campo. Você tem [na década de 1920] um grupo de pessoas preocupadas em redescobrir o Brasil, em reconceituá-lo, em redescobrir a pobreza. Dizia o Gilberto Freyre: “Era como se tudo dependesse de mim, da minha geração. Parecíamos aqueles estudantes russos do fim do século 19 que tinham que recriar e reconstruir toda a Rússia, descobrir o atraso”.
Você acha que isso tudo se articula dentro de uma idéia, de algo já “encomendado”, ou seja, deseja-se colocar uma nova imagem do país?
Algumas coisas são encomendadas. O Ministério da Educação e Cultura, aliás, cria uma brecha para entrar o projeto do Lucio Costa [autor do Plano Piloto de Brasília], aquela coisa dos concursos, tira o concursado e põe o Lucio Costa, há encomendas para o [Candido] Portinari. Na biblioteca nacional você vai encontrar Sérgio Buarque, vão chamar o [historiador] Zé Honório Rodrigues, arquivista. Há uma montagem do Estado, todos estão mais ou menos ligados, como Mário de Andrade, que quis aqui montar o departamento de cultura. O Estado tem esse papel importante. A criação da Biblioteca Municipal Mário de Andrade, que é a Biblioteca Municipal de São Paulo, enfim, há um esforço de criação, sim – ou de atualização, como dizia o Anísio Teixeira, o verbo dele era atualizar.
“Você tem [na década de 1920] um grupo de pessoas preocupadas em redescobrir o Brasil, em reconceituá-lo, em redescobrir a pobreza. Dizia o Gilberto Freyre: ‘Era como se tudo dependesse de mim, da minha geração (...)’” |
E por que o Brasil tem?
Porque fica sempre essa idéia de que tem que haver patrocínios, tem que haver mecenato... Associe-se a isso a ausência de um empresariado que, de fato, banque grandes universidades, como as 7, 8, 10 universidades de primeira linha no mundo: Stanford, Yale, Princeton, Columbia, Harvard [todas norte-americanas]. Elas são mantidas por capitais privados, ou seja, a elite [norte-americana, no caso] tem uma preocupação em formar quadros. E mais: durante a guerra civil, a lei de Harvard foi lutar pelo Estado democrático, pela abolição da escravatura. Imagine isso aqui, onde a elite se instalou na universidade, que depois foi apropriada por uma classe média que também não é particularmente mobilizadora. A universidade brasileira está desmobilizada. Agora, como explicar tudo isso? Eu acho que essa sociedade civil e esse empresariado são expressões de um capitalismo senzaleiro, que não tem a menor preocupação em levar seus filhos para estudar nas grandes universidades, ou mesmo menores universidades, ou ainda fazer um MBA com qualquer escola de terceira categoria nos Estados Unidos, em vez de dar dinheiro para criar instituições de alto nível aqui no país.
Durante o modernismo brasileiro você tem umas figuras como o Altino Arantes, que estava interessado em aparato cultural mais moderno para São Paulo, e com o dinheiro público, ou seja, por meio Estado – embora ele, e outros envolvidos, fossem riquíssimos. Enfim, um mecenato que se dá pelo Estado. Você acha que essa é uma das razões para que se tenha criado uma visão ideologizada do Estado no campo da cultura?
Eu acho que essa é uma história de equívocos de ponta a ponta. Se durante o Estado Novo essa iniciativa tinha um certo sentido – porque nós estávamos em um contexto internacional em que era preciso montar o Estado brasileiro?(era preciso atualizá-lo, tirá-lo das mãos das oligarquias locais e criar o serviço de patrimônio histórico, criar conservatórios, formar quadros) –, ao longo do tempo isso foi se misturando. A questão da escola pública foi importante naquele período, até 1964, depois esse empresariado de terceira categoria que se criou com esses cursinhos, isso é uma massificação. O grande equívoco é chegar no Ministério da Cultura. Celso Furtado entrou em um engodo desse. Esperar dessa burguesia atual alguma coisa dá no que deu: essa Bienal que está acontecendo [28ª Bienal Internacional de São Paulo]. A Bienal do vazio completo, no sentido de idéias, de teses, isso não tem o menor cheiro de contracultura. Poderia ser uma manifestação contracultural, mas não é isso, é o que os franceses chamam de a misère. A misère cultural. A miséria cultural. Não é o miserável debaixo da ponte, é a miséria do oco, do vazio, da pobreza cultural e intelectual. Eu acho que isso é o mais grave.
“Se você tomar a abolição [da escravatura], em 1888, uma abolição relativa e seletiva, para começo de conversa, não houve uma integração dos negros em uma sociedade moderna de fato” |
Por que essa necessidade tão grande, no Brasil, dessa coisa de identidade brasileira? De onde vem isso?
Eu acho que vem da condição periférica estrutural. Nós perdemos o bonde da história. Nós perdemos o próprio capitalismo, como diz o Caio Prado Jr. em uma de suas entrevistas. O Michel Debrun certa vez me disse, em uma banca: “Mas claro que existe conciliação, Carlos Guilherme. Não existe cultura brasileira? E a feijoada? E essa maneira deferente que as pessoas têm de se relacionar?” Só que essa relação deferente reflete uma visão ainda senhorial. Dependendo da corporação em que eu esteja, eu me relaciono de um jeito. Mas vai tentar romper a sociedade de castas. Cadê os negros? Parece que já passaram de 51% da população. E eu pergunto: cadê os negros? Branquearam-se? Houve a miscigenação ?que diria o Gilberto Freyre? Houve tanta miscigenação que não existem mais negros?
Na sua reinterpretação da história do Brasil, você apurou informações novas sobre alguns personagens brasileiros interessantes, como o estadista José Bonifácio, por exemplo?
O Bonifácio foi cristalizado como um velho patriarca ranheta e não era assim. Ele era um velho exigente, muito bem informado e até divertido. Ele queria a abolição da escravatura em cinco anos. E isso significa, naquela época, você querer dar educação e emprego para toda a população em cinco anos, e no Brasil. Ele queria também a integração dos índios – sua tese foi apropriada por Rondon e aplicada em 1910. E mais: é um homem casado com uma mulher divertidíssima, uma irlandesa. Eles fumavam, bebiam cachaça toda hora, dançavam muito bem, ele tinha um cabelo que nem o do Mozart e, fato conhecido internacionalmente, no fim de festa dançava em cima da mesa.
E você tinha essa visão de José Bonifácio?
A minha não era. E isso é uma loucura. Um homem diferente do que a historiografia consagrou. Outro grande nome: Teófilo Antonio. Um mineiro, participou da revolução de 1842, tinha uma visão republicanista forte, foi um homem muito perseguido, encarcerado, de andar para cima e para baixo em julgamentos, encarcerado para ser julgado em Ouro Preto. Figuras notabilíssimas, bem formadas. Eu vou descobrindo gente de muita qualidade. Eu descobri alguém, o Alberto da Costa e Silva, ele fala de todo o Brasil, fala de cariocas, só que ele é uma grande figura intelectual, um articulador de altíssimo nível.
Qual é a grande figura, dom Pedro I ou dom Pedro II?
Dom Pedro I. Agora, do ponto de vista de ser um grande negociador, complexo,?sofisticado, é dom João VI, que tem uma grande biografia escrita pelo Oliveira Lima, é um livro imbatível, insuperado até hoje [Dom João VI no Brasil – Topbooks, 2006]
“O que o Pedro I tem é a virtude, e ele é mais sofisticado do que parece. Normalmente ele parece como um poltrão, como uma figura menor, mas não, ele tinha as leituras dele. É uma figura romântica, inclusive nos seus amores, nas suas paixões” |
A reconquista do trono...
E consegue fazer essa obra de dois reinos, Portugal lá e aqui. Mas não é só isso não. Como personagem ?romântico.
Mas na história brasileira é ele o grande personagem em que sentido?
Ele conseguiu botar para fora as tropas portuguesas. Isso não era óbvio naquele momento. Ele peitou. Há vários momentos, nós apontamos aqui no livro, em que ele vai e manda brasa. O que o Pedro I tem é a virtude, e ele é mais sofisticado do que parece. Normalmente ele parece como um poltrão, como uma figura menor, mas não, ele tinha as leituras dele, e um biógrafo como Octávio Tarquínio de Souza deixou três volumes memoráveis sobre ele. É uma figura romântica, inclusive nos seus amores, nas suas paixões.
Por que a abolição demorou tanto no Brasil? Qual é a explicação que se dá para isso?
Em primeiro lugar porque tínhamos um sistema escravocrata muito sólido. Há uma distinção de colonização. A portuguesa foi montada com uma ordem escravocrata muito sólida e rentável. E mais, quando houve a Independência do Brasil, uma das hipóteses era a independência, abolição e República. Só que a independência não resultou nem em República nem em abolição. Ao contrário, houve uma revitalização do senhorado, dos senhores de grossa fortuna, uma retomada da escravidão. Tanto que quando José Bonifácio propõe a abolição em cinco anos, a integração dos escravos, ele se torna o principal inimigo desses senhores, e você tem que pensar todo o sistema atlântico. E, mesmo depois de um primeiro momento, tem o apoio dos ingleses para manter a escravidão. É depois disso que começam os movimentos ingleses pela abolição, porque já começavam a aparecer os primeiros sinais da industrialização. Então eles vêm aqui, jogam os escravos pelo mar... Porque existe uma lei extremamente racista montada em bons negócios, negócios muito sólidos, e que criou quadros mentais que são prisões de longa duração. Esses quadros mentais vêm até hoje. Posso te falar de alguns conglomerados de lojas, de supermercados, que ainda mantem a meninada lá embaixo, dentro de um sistema semi-escravista. É um contratinho, mas que você não encontra em países como França, Alemanha ou Estados Unidos. A criançada, a meninada, tendo de andar com os carrinhos [de compras] na rua porque praticamente não existem calçadas – a calçada é usada como cais de container. Então você tem um mundo que ainda é tradição estamental escravocrata. Não houve uma ordem burguesa que falou “não pode contratar criança, tem que dar calçado para as crianças, tem que dar horas certas de almoço e dar contrato de trabalho”. Eu falo de crianças porque o fato é que podia ampliar para alguns escritórios de advocacia... Esse fenômeno do motoboy: o que é isso senão o reflexo de sociedade que não assume a sua responsabilidade?
Como o Estado deixa esses motoboys morrerem desse jeito? Permitir que eles andem entre os carros...
O Estado e sociedade civil também.
“Quando houve a Independência do Brasil, uma das hipóteses era a independência, abolição e República. Só que a independência não resultou nem em República nem em abolição” |