Postado em 29/07/2008
O poder da música
Maestro Silvio Baccarelli conta a história do projeto de ensino de música que vem mudando a vida de 900 crianças e jovens da comunidade de Heliópolis
Tudo começou com um incêndio ocorrido na favela de Heliópolis, Zona Sul de São Paulo, em 1996. De casa, o maestro Silvio Baccarelli acompanhou o desenrolar dos fatos pela TV e tomou uma decisão: arregaçar as mangas e tentar reger uma mudança na vida das crianças do local. Nascia assim uma ação que inicialmente se chamou Projeto Heliópolis de Ensino de Música. “Eu esperava apenas conseguir ensinar música para 30 crianças”, conta. “Jamais imaginei que a coisa fosse chegar até onde chegou.” E a iniciativa foi longe. Atualmente, o Instituto Baccarelli congrega diversas ações: o Coral da Gente, por onde as crianças começam a trajetória musical no projeto; o Encantar na Escola, cujo objetivo é proporcionar a alunos de escolas públicas a oportunidade do contato com o mundo da música; a Orquestra do Amanhã, que reúne crianças a partir de 7 anos; e a menina dos olhos do maestro: a Sinfônica Heliópolis, formada por músicos entre 15 e 25 anos. Entre os grandes momentos, apresentações para o papa Bento XVI, para o maestro italiano Enio Moriconi e para o lendário Zubin Mehta, regente indiano e atual diretor artístico da Orquestra Filarmônica de Israel. “Quando os meninos começaram a tocar a Quinta Sinfonia de Beethoven, não demorou dois minutos e o maestro [Mehta] tirou o paletó e me pediu licença para reger”, orgulha-se Baccarelli. “Na hora que terminou, parecia que ele tinha acordado de um sonho.” Em depoimento à Revista E em seu escritório na Vila Clementino, Zona Sul da capital – decorado com fotos de seu pai, o também músico Pedro Baccarelli, e do maestro e compositor Heitor Villa-Lobos –, o convidado da seção Depoimento deste mês conta a história do “poder transformador da música”, uma das razões apresentadas pelo maestro para levar adiante seu projeto.
Fiquei muito emocionado vendo aquele desastre numa comunidade tão pobre e carente de todos os recursos. Então resolvi entrar em contato com alguma entidade da comunidade que congregasse crianças. E isso só foi possível numa escola municipal, a escola Gonzaguinha – até nisso a coisa funcionou –, mas o primeiro contato não foi muito animador. Pedi uma conversa com a diretora, queria que ela desse apoio à minha iniciativa, eu não poderia pegar as crianças da escola por minha conta. Ela me recebeu muito descrente e me disse: “Maestro, o senhor quer ensinar música neste lugar?” Eu perguntei qual era o problema e ela me respondeu: “Olhe para as janelas desta escola, não tem uma inteira, as crianças são muito rebeldes”. Aí eu falei para ela: “Pois é, mas é aí que a senhora se engana, porque o poder da música é transformador, a música amansa o coração das pessoas”. Enfim, ela ficou de conversar com a diretoria da escola e me dar uma resposta. Eu esperei por quatro meses. Como não obtive retorno, voltei lá. Quando ela me viu disse: “O senhor aqui de novo? O senhor é muito teimoso...” Só que a questão não era minha teimosia, a causa era justa, eu disse isso para ela, aquelas crianças não tinham oportunidade alguma no campo da música na escola. E me refiro à oportunidade de estudar seriamente música, canto e instrumentos. Consegui convencê-la. Contratei um ônibus – porque a escola não tinha dependências para reunir as crianças numa aula coletiva de música – que as trazia de Heliópolis até aqui [bairro da Vila Clementino], onde nós temos a empresa que presta serviços de música para casamentos e festas.
Um cavaquinho diferente
O maestro Silvio Baccarelli, criador da Sinfônica da Heliópolis, que se apresentou com a cantora Leira Pinheiro, no dia 1º de maio deste ano, no Sesc Itaquera
No primeiro dia, eu conversei com eles durante um tempão sobre a música e sua importância, depois peguei um violino e um menino logo gritou: “Ô, maestro, que cavaquinho esquisito é esse aí...”. Aí eu falei que era “mais ou menos” um cavaquinho, mas que tinha uma sonoridade diferente etc. Enfim, a primeira aula foi de contato, de conversa. Na segunda vez, já propus a eles que escolhessem o instrumento de cordas que quisessem – violino, viola, violoncelo, contrabaixo. Outra coisa importante: a gente dá sempre um pouquinho de canto coletivo porque isso ajuda a educar o ouvido e a voz. É importante que um músico saiba cantar, ou entoar aquilo que está lendo. Depois de uns seis meses eu disse para eles que iríamos fazer a primeira apresentação da orquestra. Eles se espantaram: “Que é isso, maestro?!”. Eu disse: “Vamos fazer, vocês vão chamar os pais de vocês, os professores, e vamos mostrar o que vocês estão fazendo aqui”. Porque todo mundo via um ônibus saindo de lá cheio de crianças, mas ninguém sabia para onde elas iam. Aí eu disse: “vocês vão matar a curiosidade das pessoas”. E foi feito. Aqui no palco. Minha esposa, Nair, comprou as roupinhas e sapatinhos para eles, e eles subiram ao palco alinhados. E sérios, como se fossem mesmo músicos profissionais. Eles tocaram umas seis músicas bem fáceis e foi um sucesso. Os pais já começaram a chorar quando viram as crianças entrando, bem vestidas, com o instrumento na mão. Já foi uma choradeira. Nunca tinham visto seus filhos numa sala de teatro, ainda mais no palco. Enfim, eles tocaram e foi uma festa, uma alegria imensa. A diretora da escola que eu procurei estava lá no fundo. Quando terminou a apresentação, ela me abraçou e disse: “Maestro, o senhor me provou que a música transforma as pessoas, e eu sou muito grata ao senhor por isso”.
Música para o Papa
Quando o papa Bento XVI veio ao Brasil, em maio de 2007, teve vários encontros em São Paulo, com diversas comunidades. Houve aquele [encontro] no Pacaembu que reuniu um mundaréu de gente [cerca de 40 mil jovens segundo publicou o jornal Folha de S.Paulo na época] e depois houve um com os bispos brasileiros, na Catedral da Sé. Então, o Dom Cláudio Hummes me chamou e disse: “Baccarelli, você precisa fazer música para o papa (risos)... E tem que ser coisa boa porque o homem é músico também...” Eu disse a ele que não se preocupasse. Peguei a orquestra dos meninos [a Sinfônica Heliópolis], preparamos umas oito peças. A prefeitura cedeu os dois corais do Theatro Municipal, o Lírico e o Paulistano, demos uma passada nas músicas escolhidas e fomos para a catedral. Quem pensa que os meninos ficaram nervosos se engana. Que nada! Na hora que o papa entrou tocamos Ecce Sacerdos Magnus – eis o grande sacerdote –, com coro e orquestra. E ele foi entrando, solenemente, acompanhado por uma porção de bispos – a maior partes deles já estava lá e nós já tínhamos executado umas três ou quatro músicas para eles. A ocasião foi boa para mostrar também que existe música sacra boa, não só aquela musiquinha de violão e reco-reco das missas. Enfim, o papa entrou, subiu no altar e fez os discursos de praxe. Mas na hora de sair, ele quebrou o protocolo, largou os bispos e veio abraçar as crianças da orquestra.
No palco com Zubin Mehta
Tocamos no Festival de Inverno, em Campos de Jordão [39º Festival de Inverno de Campos de Jordão], e foi uma hora e meia de Tchaikovsky [1840-1943, compositor erudito russo]. Dificílimo. Mas eles passam para outro mundo quando estão tocando. É uma coisa fantástica. Eu não podia recusar a apresentação da orquestra em Campos. Ali se apresentam as grandes orquestras do país e do mundo. E o próprio diretor do festival, Roberto Minczuk, ficou encantado. Ele disse que jamais poderia imaginar que essa juventude tocasse tão bem. E, de fato. A cada seis meses as crianças passam por um teste, um por um, para ver a forma como estão trabalhando. Recentemente [meados de julho, quando foi feita a entrevista] chegou dos Estados Unidos um menininho que o maestro Arnaldo Cohen, grande pianista também, levou para passar um mês na Universidade de Indiana. E, a partir do ano que vem, o Mozarteum [Faculdade Mozarteum de São Paulo] vai doar um ano de estudo para um dos nossos alunos na mesma universidade. O maestro Zubin Mehta esteve no Brasil há uns três anos e foi assistir a um ensaio, e os meninos começaram a tocar a Quinta Sinfonia de Beethoven [1770-1827, compositor erudito alemão]. Não demorou dois minutos e o maestro tirou o paletó e me pediu licença para reger os meninos. E começou a reger a orquestra como se fosse a Filarmônica de Israel [da qual Metha é regente]. A mesma exigência, a mesma “violência”. Na hora que terminou, parecia que ele tinha acordado de um sonho. E isso há três anos, quando os meninos tinham muito que aprender musicalmente. Hoje, se o Zubin Mehta vir os meninos, ele pinta o diabo com eles (risos).
“Os pais já começaram a chorar quando viram as crianças entrando, bem vestidas, com o instrumento na mão. (...) Nunca tinham visto seus filhos numa sala de teatro (...) Enfim, eles tocaram e foi uma festa, uma alegria imensa”