Fechar X

O Poeta do Morro

Postado em 29/07/2008


Ao longo de uma vida cheia de altos e baixos, Cartola garantiu lugar de destaque na história da MPB, com sambas magistrais, repletos de lirismo
 


Seu senso poético foi enaltecido em texto do poeta Carlos Drummond de Andrade; suas melodias, elogiadas pelo maestro Heitor Villa-Lobos. Considerado por Paulinho da Viola e Nélson Cavaquinho, entre outros nomes, o maior sambista de todos os tempos, participou da criação da escola de samba Estação Primeira de Mangueira e compôs canções que estão entre as obras-primas da história da MPB, como As Rosas Não Falam e O Mundo É Um Moinho. Ainda assim, Angenor de Oliveira, mais conhecido como Cartola, o mestre Cartola, passou décadas na miséria, ignorado pelo grande público e pela indústria musical, e só ganhou dinheiro e fama com sua música depois dos 60 anos de idade. Carioca nascido no bairro do Catete, em 11 de outubro de 1908, era o terceiro filho de Aida Gomes de Oliveira e Sebastião Joaquim de Oliveira.

O primeiro menino da família travou contato com o samba, pode-se dizer, ainda na barriga da mãe, foliona de carteirinha dos desfiles de Carnaval da cidade. O pai também participava dos blocos, e, quando a família mudou-se para Laranjeiras (perto da sede do Fluminense Futebol Clube, fato que influenciou Cartola a tornar-se torcedor do tricolor carioca), passou a freqüentar desfiles do Rancho dos Arrepiados, que tinha como cores o verde e o rosa. “Saíamos eu, papai, que tocava cavaquinho profissionalmente no bando, minha mãe e minhas irmãs”, lembrou Cartola em entrevista a Ronaldo Bôscoli na revista Manchete em 1977. Foi com as quatro cordas desse instrumento que o sambista deu seus primeiros passos como músico, antes de adotar o violão.

Aos 11 anos, o compositor mudou radicalmente de vida. A morte do avô, Luís Cipriano Gomes, deteriorou as condições econômicas da família. Os autores Marília Trindade Barboza e Arthur de Oliveira Filho relatam no livro Cartola, Os Tempos Idos (Editora Gryphus, 2ª ed., 2003) que “a vidinha folgada de pequeno-burgueses acomodados transformou-se numa áspera e darwiniana luta pela existência”. Foi quando toda a família trocou o bairro de Laranjeiras pela favela, em formação, no morro da Mangueira.

A chegada ao morro colocou Angenor, ainda pré-adolescente, em contato com a cultura do candomblé e com a malandragem do início do século 20. Para se dedicar mais a essas “atividades”, abandonou a escola. “Desde cedo, começou a andar nas bocas”, relata o amigo e parceiro musical Carlos Cachaça em Cartola, Os Tempos Idos. “Das bocas para o samba, foi um pulo.” No entanto, a vida não era só batuques. O pai forçou-o a trabalhar para colaborar com a renda da família: labutou como funcionário de uma gráfica e, aos 15 anos de idade, como pedreiro. Redigida pelo escritor e letrista Carlos Rennó, a biografia presente no site oficial do compositor (www2.uol.com.br/cartola) conta que, nessa profissão, “para não sujar a cabeça de cimento, passou a usar um chapéu-coco que, para os seus colegas, lembrava uma cartola”. Está explicado o apelido.

O compositor ladeado pelos também sambistas Beth Carvalho e Rildo Hora

Ascensão e queda

Impulsionada pelos recém-criados desfiles de escolas de samba e pela difusão do rádio como veículo de massa, a popularização do samba no Rio de Janeiro, entre as décadas de 1920 e 1930, levou os cantores mais conhecidos da época a gravarem as composições de artistas do morro. Conhecido pelos temas que elaborava para a então jovem Estação Primeira de Mangueira (veja boxe Cartola verde e rosa) – entre elas, Beijos (1929) e Jardim da Mangueira (1931) –, Cartola foi procurado por Mário Reis, que comprou, em 1931, Infeliz Sorte. O samba acabou sendo gravado por Francisco Alves, que também deu voz ao primeiro grande sucesso do sambista, Divina Dama. Assim, o compositor ganhou uma fonte de renda e aumentou a fama no meio musical carioca, o que lhe rendeu também amizade com outro ícone do samba, Noel Rosa.

Em 1940, Cartola ganhou o título de Cidadão Samba, mas a boa fase chegou ao fim nos últimos anos dessa década: contraiu meningite e, quando ficou curado, sua esposa, Deolinda, morreu. Além disso, viu a Mangueira perder para a Portela os títulos do Carnaval carioca de 1941 a 1947. Dois anos mais tarde, brigou com a diretoria e abandonou a escola. “Sem mais a atenção de Deolinda e o prestígio na Mangueira, resolveu afastar-se do morro”, escreve Carlos Rennó no site oficial do compositor. “Foi morar numa favela no bairro do Caju, com uma mulher chamada Donária. Por um período de cerca de sete anos, andou desaparecido dos seus conhecidos; chegou a ser dado como morto. Entregue à bebida, Cartola retornou à Mangueira pelas mãos de Zica, velha conhecida do morro, com quem assumiu relacionamento amoroso. Por iniciativa dela, arrumou um emprego de vigia e lavador de carros num edifício em Ipanema. ‘Em uma madrugada, acabei de lavar meus carros, fechei a garagem e fui tomar um café em um bar (...). Lá, encontrei Sérgio Porto [jornalista conhecido como Stanislaw Ponte Preta]. Ele me viu de macacão e tamanco, todo molhado, e ficou horrorizado’”, lembra o sambista no documentário Cartola: Música para os Olhos, de 2007, de Lírio Ferreira e Hilton Lacerda. Comovido com sua situação, o colunista tentou recolocá-lo na cena musical da época, sem sucesso.

Após mais alguns empregos temporários, incluindo a participação no filme Orfeu do Carnaval (1958), Cartola virou zelador da Associação das Escolas de Samba, no centro do Rio. Lá promovia animados encontros com Elton Medeiros, Zé Kéti e outros sambistas, regados aos deliciosos pratos feitos por Dona Zica. As festas ficaram tão animadas que deram origem ao mítico bar Zicartola, de propriedade dela e de outros três sócios. Inaugurado em 1963, o estabelecimento atingiu forte sucesso em seus dois primeiros anos, transformando-se na principal casa noturna do Rio de Janeiro. “[o bar] Era freqüentado pela fina flor de Copacabana e pelo mais humilde sambista do morro, pois o Zicartola conseguiu integrar os compositores da bossa nova com aqueles que fizeram os inesquecíveis sambas cantados até hoje”, disse a mulher do compositor ao Jornal do Brasil, em 1988.

Nova queda e ascensão definitiva

O fim da “febre Zicartola”, um pouco decorrente da falta de habilidade do casal para os negócios, culminou na venda da casa noturna em 1965. Afogado em dívidas, o casal teve que morar na casa do pai do sambista, com quem havia voltado às boas depois de um período de rusgas. “Os amigos (...) não se conformaram com o retrocesso econômico vivido pelo compositor nem com a mudança para Bento Ribeiro [bairro onde morava seu pai]”, escrevem Marília e Oliveira Filho em Cartola, os Tempos Idos. “Lugar de Cartola era a Mangueira”. Aos 60 anos, o compositor ganhou um terreno do governo do estado e construiu sozinho uma casa no morro, fazendo uso de sua experiência como pedreiro.

Apesar de não ter durado muito, a antiga casa noturna rendeu a Cartola a admiração da jovem burguesia carioca. “O Zicartola fez recuperar, na mídia e na classe média da Zona Sul do Rio, o gosto pelo velho samba e seus poetas/músicos negros e mais ligados às escolas”, explica o pesquisador Ricardo Cravo Albin. O sucesso da versão de Nara Leão para O Sol Nascerá, dele e de Elton Medeiros, também contribuiu para que fosse convidado pela União Nacional dos Estudantes para liderar apresentações chamadas Cartola Convida, em 1970. O evento despertou ainda mais o interesse pela obra do sambista, o que resultou na gravação de seu primeiro LP, em 1974. “Só aos 65 anos, o compositor gravaria, numa iniciativa do pesquisador musical, produtor de discos e publicitário Marcus Pereira, um disco inteiro com suas composições”, afirma o jornalista Douglas Cometti em texto do banco de dados do jornal Folha de S.Paulo. Lançado pelo selo de Marcus Pereira, Cartola teve produção de J. C. Botezelli, o Pelão, e ganhou elogios da crítica. “Esse disco, que só a perspectiva histórica permitirá compreender sua verdadeira importância no futuro, é o primeiro long-play de um dos poucos verdadeiros gênios da música popular brasileira (...)”, escreveu José Ramos Tinhorão para o Jornal do Brasil naquele ano. Dois anos após a estréia em vinil, Cartola lançou seu segundo disco, As Rosas Não Falam. O terceiro álbum, Verde que te Quero Rosa, foi lançado em 1977. Em 1978 veio o primeiro show, Acontece, e no ano seguinte o quarto álbum, Cartola 70 Anos.

A carreira ia bem, mas a saúde nem tanto: além do diagnóstico de câncer, Cartola teve um derrame. Em 1979, sofreu uma intervenção cirúrgica e, no início do ano seguinte, uma forte hemorragia digestiva. “Mesmo com muitas dores no estômago, ainda conseguiu entrar em um estúdio e gravar pela última vez”, escreveu o jornalista Arley Pereira no livro Cartola 90 Anos – Semente de Amor Sei Que Sou, Desde Nascença, lançado pelo Sesc São Paulo, em 1998, e relançado este ano (veja boxe Forte presença). “Em dupla com Alcione, registrou (...) o samba Eu Sei, naturalmente de sua autoria.”

Cartola morreu em 30 de novembro de 1980 na Casa de Saúde São Carlos, no Rio de Janeiro. À sua morte, seguiram-se um disco póstumo, Ao Vivo, de 1982, biografias, regravações por vários artistas – de Dona Ivone Lara a Gal Costa, passando por Cazuza – e várias homenagens, que devem se intensificar este ano, quando se comemora o centenário de seu nascimento.


Forte presença
Sesc São Paulo relembra vida e obra do sambista

O Sesc São Paulo participa das atividades em comemoração ao centenário de nascimento de Cartola com o relançamento de duas obras fundamentais para quem deseja conhecer melhor a trajetória de um dos ícones da música brasileira: o CD Cartola 90 Anos, de Elton Medeiros e Márcia, e o livro Cartola – Semente de Amor Sei Que Sou, Desde Nascença, escrito pelo jornalista Arley Pereira. Produzido por J. C. Botezelli, o Pelão, também responsável pela gravação do primeiro disco do sambista (Cartola, de 1974), o CD registra um show realizado em outubro de 1998 no teatro no Sesc Pompéia, no qual Elton Medeiros (amigo e parceiro de Cartola em composições como O Sol Nascerá) e a cantora Márcia interpretaram 15 músicas do repertório do sambista, desde clássicos como O Mundo é um Moinho, As Rosas Não Falam e Autonomia a composições menos conhecidas.
Já o livro narra a vida profissional e pessoal do sambista em 80 páginas, ilustradas com fotos e cópias originais de letras escritas por Cartola. “É uma biografia, mas com um ponto de vista bem pessoal, já que Arley foi amigo próximo de Cartola”, explica Henrique Rubin, animador cultural do Sesc São Paulo. Uma das principais curiosidades da obra é a reprodução de uma crônica de Carlos Drummond de Andrade repleta de elogios a Cartola, publicada em 27 de novembro de 1980, cuja leitura teria sido, talvez, a última alegria do sambista antes de sua morte.
Também como parte das celebrações, a unidade Santana apresentou, no dia 10 de julho, o espetáculo de dança Esperando Cartola. No palco, 15 bailarinos da Companhia Espaço Clássico São Paulo interpretam coreografias elaboradas com base em 19 músicas do sambista.“As danças têm toda a influência do ritmo [samba]”, afirma a bailarina Ellen Cara, diretora e coreógrafa do espetáculo. “Fizemos diversas pesquisas de movimentação, já que precisávamos fazer parte daquele universo. Mas as músicas e as letras dele são muito ricas, o que facilitou bastante o nosso trabalho.”

 

 


Cartola verde e rosa
O músico foi peça-chave na criação de uma das maiores escolas de Samba do Rio de Janeiro, a Estação Primeira de Mangueira


Na segunda metade dos anos de 1920, mesmo casado, o jovem Angenor de Oliveira não se furtava de farrear Rio de Janeiro afora. Integrante da turma “barra-pesada” da Mangueira, Cartola tinha como diversão fazer samba e armar confusões ao lado dos amigos Carlos Cachaça, Arturzinho e Zé Espinguela, com quem formou o Bloco dos Arengueiros. O primeiro samba, Chega de Demanda, já avisava: “Com esse time temos que ganhar / Somos a Estação Primeira / Salve o Morro da Mangueira”.
Em 28 de abril de 1928, seis amigos estavam reunidos na casa de um dos membros do “time”, Euclides, e a Mangueira foi criada. A Cartola, que escolheu o nome e as cores, coube o cargo de diretor de harmonia da agremiação. “O verde e o rosa, lembrando os Arrepiados de sua infância [o bloco Rancho dos Arrepiados, com o qual saía quando menino]”, narra o jornalista Arley Pereira no livro Cartola 90 Anos – Semente de Amor Sei Que Sou, Desde Nascença, lançado pelo Sesc São Paulo, em 1998, e a ser relançado este ano. “Estação Primeira de Mangueira, ele gostava de contar o porquê: ‘A partir da Central do Brasil, era a primeira estação de trem onde havia samba’.” Em pouco tempo, a escola agregou os outros blocos do morro. E foi lá que surgiu a iniciativa de organizar um embate entre as escolas de samba cariocas – o que resultou nos majestosos desfiles que conhecemos hoje. Em Cartola, Os Tempos Idos (Editora Gryphus, 2ª ed., 2003), no depoimento de Zé Espinguela descobre-se que o músico foi o primeiro organizador desse tipo de concurso, que aconteceu em 1929, no Engenho de Dentro. A Portela ganhou o primeiro lugar da disputa, da qual participou também a Estácio de Sá. Cartola escreveu sambas para a Mangueira até 1948, quando criou, com Carlos Cachaça, o samba Vale do São Francisco. Hoje um clássico, o samba-enredo ficou em quarto lugar na época. “Ele [Cartola] se afastou da Mangueira porque a direção da escola achava que seus sambas estavam superados”, escreve Pereira. Segundo o jornalista e pesquisador de MPB Rodrigo Faour, o músico compôs ainda um samba para a Mangueira no Carnaval de 1961, Tempos Idos, com Carlos Cachaça, que ficou em terceiro lugar, mas só voltou à escola de fato em 1977 e, dessa vez, desfilando na comissão de frente.

 

 

Escolha uma rede social

  • E-mail
  • Facebook
  • Twitter

adicionar Separe os e-mails com vírgula (,).

    VocĂȘ tem 400 caracteres. (Limite: 400)