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Entrevista

Postado em 28/07/2008


Diretora do Museu de Arte Contemporânea analisa o mercado de exposições e os rumos da produção nacional
Fotos: Adriana Vichi
 


A doutora em sociologia pela Universidade de São Paulo (USP) Lisbeth Rebollo Gonçalves atualmente se divide entre a cadeira que ocupa no corpo docente da USP e a diretoria do Museu de Arte Contemporânea (MAC), considerado um dos mais importantes museus de arte moderna e contemporânea da América Latina, com um acervo que reúne cerca de 10 mil obras de nomes como Pablo Picasso, Tarsila do Amaral, Di Cavalcanti, Volpi, Brecheret, Flávio de Carvalho, entre outros. Autora de títulos sobre crítica de arte, arte moderna, contemporânea e museografia – os mais recentes são Os Lugares da Crítica de Arte (Imesp, 2005), em parceria com Annateresa Fabris, e Arte Brasileira no Século XX (Imesp, 2008) – Lisbeth recebeu a reportagem da Revista E em seu gabinete, onde falou, com exclusividade, sobre o mercado nacional e internacional das artes e sobre a imagem dos artistas brasileiros no exterior – sobretudo, na Europa. “Esse entender, esse ver o brasileiro ou ver a cultura brasileira pela lente do exótico, prevalece também [no europeu]”, afirmou. “O Brasil é cor, o Brasil é fantasia, o Brasil é carnaval, o Brasil é barroco. O Brasil arte é a visão do índio, eles [os europeus] têm muito mais forte a importância indígena no nosso contexto que nós próprios.” A seguir trechos da conversa.


É possível observar que a arte brasileira nesses últimos tempos começa a galgar algumas posições no mercado internacional. Você acredita que isso envolve uma questão de ação institucional e política também, ou as pessoas descobriram a qualidade da nossa arte?
Estamos em uma situação nova em termos de contexto internacional. A gente está em um sistema de globalização da cultura. A economia leva junto toda a conjuntura social. A economia é o principal motor. Minha tese, atualmente, é essa. A economia é o principal motor do sistema da arte também. Mais do que uma ação de museus, mais do que uma ação de bienais, ouso dizer. Mais do que as grandes exposições que possam colocar o foco sobre a realidade da produção brasileira, que é de excelente qualidade e sempre foi – nossa arte não é qualitativamente boa só agora. O Brasil sempre teve grandes contribuições que não foram reconhecidas porque a gente era um país antes chamado de Terceiro Mundo, hoje já somos emergentes, mas naqueles momentos estávamos naquela faixa marginal do Terceiro Mundo, e nunca tivemos reconhecimento. Na verdade, esse up grade da presença brasileira no cenário internacional da arte vem muito pela ação do mercado, que move o sistema hoje, não resta dúvida. Hoje, digo para você: a feira de arte, talvez, tenha uma força propulsora maior que a Bienal [Bienal Internacional de São Paulo]. As bienais proliferam pelo mundo todo, as feiras de arte também, mas em termos de dinamização do processo, o que movimenta, o que leva a presença de certos artistas em detrimento de outros, é a ação do mercado que está por trás. Falo isso pensando na arte contemporânea e até mesmo histórica, porque há um resgate intenso de gente como Hélio Oiticica e Lygia Clark, por exemplo. O que moveu esse cenário não foram estudos, pesquisas nem um olhar científico sobre a arte.


Hélio Oiticica e Lygia Clark são dois artistas neoconcretos. Por que você acha que essa revalorização não começou, por exemplo, por Candido Portinari ou João Câmara?

Porque se parte da dimensão do contemporâneo. No momento em que eles [Oiticica e Lygia] fizeram sua produção, estavam na abertura de uma redefinição da arte. Acho que a gente está, nesse momento, dentro da história da arte, muito mergulhado no pensamento sobre a dinâmica do processo contemporâneo, o que é arte contemporânea, a grande questão: quais são as características, quais são as estratégias, qual é a semântica dessa arte. Essas questões nos estão preocupando de uma maneira geral. Por outro lado, há a questão, talvez, de uma disponibilidade de produtos. Há, talvez, certa oferta disponível para essa circulação. Não estamos em um momento do resgate do moderno, o que não quer dizer que as obras do Portinari ou da Tarsila [do Amaral], se entrarem em um leilão, não vão pegar um preço altíssimo. A gente viu o que aconteceu com o Abaporu: foi vendido por um preço alto [US$ 1,3 milhão, em 1996]. As obras do Di Cavalcanti também estouram em termos de valor. Outros grandes artistas do cenário da arte moderna também eclodem, despontam, se destacam nos leilões – e são comprados. Os colecionadores buscam esses produtos. ?Mas, dentro de um circuito de mercado, não há “mercadoria” suficiente. Para usar uma palavra técnica, não há um estoque de obras que possa ser viabilizado. Essas obras [as de arte moderna] já estão em grandes acervos, e a mudança de um acervo para outro é mais lenta. Essa pode ser outra razão. Além disso, do ponto de vista histórico e crítico, talvez seja possível dizer que existe um desejo de entender a arte contemporânea na atualidade. De repente, percebeu-se que havia coisas acontecendo em lugares diferentes. No caso da Lygia, há o cruzamento com a psiquiatria. Já o Hélio esteve nos Estados Unidos, em um núcleo fundamental em que surgiam as novidades, além de ele também fazer parte de uma redimensão do processo comunicativo da arte. A arte envolvendo o receptor, participando da construção do seu significado. São pequenas questões que apareceram com muita clareza na obra dele e nos seus textos, nas teses que ele deixou, e que hoje estão sendo estudadas por quem está tentando teorizar a arte contemporânea.


“Você não pode privatizar tanto assim os espaços institucionais porque eles são públicos. Mesmo que empresas apliquem dinheiro para a produção desses eventos [grandes exposições], esse dinheiro é verba incentivada, portanto, pública”

Dentro dessa reescrita da história, desse conhecimento calcado em teorias, é possível sentir certa perseguição a artistas de cunho figurativo no Brasil. Há uma valorização excessiva do conceitual em detrimento do figurativo. A pintura é muito maltratada por essa nova crítica. Qual a sua opinião?

É porque, na verdade, eles [os críticos] estão interessados nessa dinâmica da linguagem contemporânea. O crítico trabalha em cima dos fatos. Não estou pensando no teórico. Existe uma vertente teórica que considera, inclusive, que a história da arte no Brasil só acontece do Concretismo para frente. Antes seria não uma pré-história, mas uma “pré-alguma coisa”. Um momento anterior da verdadeira emergência de uma arte brasileira. Nessa abordagem, existe um lado bastante ideológico e, como se diz, uma priorização da linguagem. Arte como linguagem estética de circulação internacional. Se você pensar por aí, eu concordo [com a teoria apresentada na pergunta]. Mas, se você pensar a arte como linguagem imbricada na conjuntura histórica do Brasil, não é possível dizer isso. É preciso entender tanto um quanto o outro [tanto o conceitual quanto o figurativo] e observar mudanças e dinâmicas. Qual é a dinâmica da pintura hoje dentro da realidade brasileira? Você tem jovens artistas fazendo pintura? Se existe a produção, existe um sentido? Existe algo que a explique? É esse conteúdo teórico que se tem de buscar e verificar. É preciso buscar, o tempo todo, elementos de conceituação para entender o que está acontecendo. Se eu não trabalhar com conceito, eu vou errar muito.


Hoje a artista contemporânea de maior sucesso no exterior é a Beatriz Milhares, uma pintora. Como você enxerga isso?

Também tem a ideologia de como eles nos vêem, isso é outro fator preponderante. A nossa música é um elemento internacionalizante. Em todo lugar tem música brasileira. Você tem essa questão de um olhar europeu sobre o Brasil, e o olhar europeu move também outros olhares, porque é o núcleo fundante da cultura e da civilização ocidental. O olhar europeu é muito forte. Ele extravasa para outros espaços culturais. Esse entender, esse ver o brasileiro ou ver a cultura brasileira pela lente do exótico, prevalece também. O Brasil é cor, o Brasil é fantasia, o Brasil é carnaval, o Brasil é barroco. O Brasil arte é a visão do índio, eles [os europeus] têm muito mais forte a importância indígena no nosso contexto que nós próprios. Quando se faz uma comemoração sobre o Brasil, inclui-se uma exposição de arte plumária [arte de origem indígena de, como sugere o nome, construir arranjos com penas e plumas]. O principal destaque do Brasil na França [Ano do Brasil na França, em 2005] o que foi? Como era a decoração do guardanapo que se serviu na recepção do ano França-Brasil? Uma coroa plumária. Essa é a visão que eles têm até hoje. Acompanhe um estrangeiro aqui, o que ele quer levar de lembrança para a mulher e para a filha? Brinco de pluma. Isso está impregnado na mentalidade deles.


Qual a sua opinião sobre a polêmica da próxima Bienal, que pretende ter um andar inteiro vazio, segundo revelou o curador Ivo Mesquita?

Não é a primeira vez que a gente vive esse processo. Isso já aconteceu antes, em circunstâncias semelhantes, talvez mais no campo político, a gente sofreu bastante redução, e a Bienal persistiu. Acho que um país que faz a segunda mais importante bienal do mundo – para as Américas, a Bienal de São Paulo é uma referência do mesmo patamar de uma Bienal de Veneza – não deve largar tudo para trás. A gente tem uma história escrita, uma tradição. Precisaríamos, talvez, ter mais profissionais do ramo da cultura e da arte envolvidos na construção desses eventos institucionais. Na minha opinião, ainda que ele seja patrocinado por empresários, não pode ser decidido só por empresários. Acho que a sociedade como um todo tem que ter uma representação maior dentro desses contextos. É isso que o país está percebendo agora, você não pode privatizar tanto assim os espaços institucionais porque eles são espaços públicos, são geridos e construídos com verba pública. Mesmo que empresas apliquem dinheiro para a produção desses eventos, esse dinheiro é verba incentivada, portanto, pública. São os nossos impostos que estão revertendo para a construção do nosso benefício, para a manutenção dessa instituição. Portanto, acho que certas faixas da sociedade deveriam participar mais. A secretaria de cultura dá dinheiro, o Ministério [da Cultura] dá dinheiro. Por que eles não têm um assento nesses conselhos? É legítimo que eles desejem isso. E mais: por que os críticos não têm assento, por que historiadores não têm assento, por que os museus não têm assento? Por que institutos culturais importantes não têm assento? Confrontando opiniões, posições, e mesmo interesses, poderíamos sem dúvida chegar a melhores resultados. Acho muito difícil manter um patamar administrativo de eficiência e de seriedade sem a participação dos vetores que estão nesse sistema de produção. Eles têm que ser ouvidos, é preciso aprender a trabalhar junto. A gente tem que dialogar. Se a gente quer ter uma presença forte, se a gente quer fazer política internacional de cultura com a nossa Bienal e projetar uma presença sólida brasileira, tem que haver diálogo entre as partes.


Como você vê as duas ou três últimas Bienais em termos de conceito e de construção de linguagem?
Na verdade, dos anos 2000 para cá, a Bienal deixou de fazer a parte histórica – o que eu, pessoalmente, não achei uma medida errada. Está correto. A idéia de uma Bienal é trazer arte do nosso tempo, arte atual. O que está acontecendo de novo, quais são as grandes direções, os grandes problemas, as grandes vertentes da produção artística em dimensão global? É isso que se quer mostrar dentro de uma bienal, seja ela temática ou não. O que fundamenta a idéia de uma bienal é essa estratégia de mostrar, ela tem historicamente essa função, como tinham as exposições universais [realizadas na Europa no século 19, reunindo o que de mais moderno se fazia no campo da arte na época]. Bienal nasceu do modelo da exposição universal. Isso é um perfil da sua estratégia expositiva, como um discurso expositivo, é desse jeito que ela funciona. Basta verificar a trajetória da Bienal de Veneza desde a última década do século 19. No Brasil, essa questão do núcleo histórico, do mostrar a história da arte paralelamente à própria exposição, foi uma estratégia utilizada pelos agentes culturais da época em que a Bienal de São Paulo surgiu [a primeira Bienal foi realizada em 20 de outubro de 1951], para dinamizar a aproximação do público com a arte do momento, a arte daquela atualidade. Aqui não tinha museu, os museus eram recém-criados quando a Bienal surgiu. O Masp [Museu de Arte de São Paulo] passou a funcionar em 1947, o MAM [Museu de Arte Moderna], em 1949, ou seja, era tudo muito recente. De repente, surge uma Bienal de São Paulo, uma Bienal que vai trazer gente de ponta. Imagine isso.

“Qual é a dinâmica da pintura hoje dentro da realidade brasileira? Você tem jovens artistas fazendo pintura? Se existe a produção, existe um sentido? É esse conteúdo teórico que se tem de buscar e verificar”

Você acha “radical” a criação da Bienal?

Pense: você sai do mercado de arte – vamos pensar sempre no lado do mercado porque ele mostra o gosto público também – que absorve a produção do século 19, a arte acadêmica, ao passo em que a arte moderna é muito restrita, não tem mercado nenhum, e, de repente, já faz uma Bienal. Foi essa a estratégia, era uma quase dinâmica de mostrar o que foi a história da arte, quais foram os movimentos, quais eram as preocupações da arte moderna – que era o contexto artístico da época.


Ou seja, num dia nós não tínhamos nada em termos de articulação de mercado e no outro trouxemos o Guernica, de Pablo Picasso.

E a gente viu o Guernica na parede, sem vidro. Hoje o painel está enclausurado dentro de um espaço defensivo [no Centro Nacional de Arte Rainha Sofia, em Madri, na Espanha]. Na verdade, essa estratégia [de trazer obras-chave da história da arte] surgiu e traz grande público. Se você pensar nas Bienais dos anos de 1990, algumas pesquisas foram feitas e mostraram que as pessoas são mobilizadas muito pelo interesse de ver essa parte histórica e aí acaba vendo o resto. No momento em que sai essa parte [histórica] da estratégia, a Bienal assume o papel que realmente ela deveria ter: mostrar arte contemporânea. E eu acho que era a hora de sair porque os museus acabaram criando força [com essa saída], entrando no circuito de itinerância de grandes obras e de produção de grandes exposições. Nessa parte de mostrar arte contemporânea, na verdade, ela [a Bienal] se torna bastante ensaística, porque, também com essa mudança, vai mudando a estratégia de organização. Você passa a ter uma figura forte, a do curador, como um gerenciador, um organizador do processo, deixa de ter aquela visão nacional – rompida faz tempo.


Nos últimos 15 anos, vimos um fenômeno muito interessante: os museus se modernizarem, tornarem-se motores de repercussão cultural – no sentido de abrigar grandes exposições, com grande fluxo de público. Ir ao museu se tornou um programa familiar. O que você acha que aconteceu? De fato, o museu brasileiro se modernizou?
Entramos, na verdade, na dinâmica do perfil dos museus no mundo inteiro. A dinâmica do museu como um espaço de lazer está muito ligada à revisão que sofreu a instituição ao longo dos anos de 1970 – e à chamada revolução romântica ocorrida em 1968, na França, e que queria Monalisa [exposta] no metrô. Não é por acaso que logo depois desse episódio surge uma revisão na definição de o que é um museu e qual a sua função na sociedade, daí a questão do lazer. É um espaço de formação, de informação, de lazer e também continuam as velhas funções: guardar, conservar. E, na função de comunicação, o público passa a ser o centro. Claro que a obra de arte e o acervo são centrais também, mas ao lado do acervo você tem que dar respostas ao público. Então vamos pensar novos modelos de comunicação com o público. O perfil das exposições muda também. Elas se tornam não só importantes em conteúdo, mas também atrativas como discurso, como forma comunicativa. E daí vai nascendo a questão cenográfica, por isso as cores nos museus, os espaços, entram estratégias digitais, vai entrando uma nova dinâmica que torna mais agradável o contato com esse produto. O museu passa a ser um centro procurado, não só para ver a exposição, ele é um centro de lazer, e também tem lá o café, o restaurante, tem a loja. Pode ter outros eventos, você pode ter workshops, oficinas. Eventualmente, tem também cinema, há outros campos artísticos interagindo com a prática convencionada dos museus. As grandes exposições são atrativas? São. Em vez de eu pegar um avião para ver uma exposição em Paris, a exposição de lá vem para cá – é claro que é um grande atrativo. Mas estamos ainda muito de lá para cá e menos daqui para lá. Muito dificilmente uma exposição produzida no Brasil vai ter impacto para circular fora.

 
“[o museu] É um espaço de formação, de informação, de lazer e também continuam as velhas funções: guardar, conservar. E, na função de comunicação, o público passa a ser o centro”


Você acha que esse estágio de mandar exposições nossas para circular lá fora tem a ver com questões econômicas ou com qualidade?
Depende. Não é da qualidade, eu acho que qualitativamente a gente sabe fazer, temos gente de ponta trabalhando aqui. Mas não estamos instalados como agentes nesse processo globalizado. Nós somos emergentes agora. Cada vez que você recebe uma proposta de um museu, se você manda uma contraproposta, eles não respondem.

 
Existe o reconhecimento da fotografia brasileira mundo afora, não? É uma coisa silenciosa porque no Brasil ainda se fala muito pouco de fotografia brasileira.

É que também são poucos os especialistas. Nós temos hoje nomes de ponta, a própria Helouise Costa, uma grande especialista em questões de fotografia, como é a Annateresa Fabris, como é Tadeu Chiarelli – e estou cometendo uma injustiça, tenho certeza, ao não incluir outros nomes. Mas de qualquer forma ainda são poucos. Essa produção é pouco conhecida aqui. Uma visão histórica, um trabalho mais articulado, ele é pouco mostrado no Brasil. Há muita coisa nas Bienais, mas não há uma ação sistematizada como em outras áreas. Além disso, talvez a gente não tivesse um grande acervo. Agora, se essa coleção que pertenceu ao Banco Santos ficar com o MAC, haverá como trabalhar historicamente essa dimensão e até colocando interface com coisas que não estão nem na coleção nem no MAC, mas que podem estar no sistema de produção mais atual. Não existe um olhar muito especializado para a fotografia. Esse trabalho não ganha tanto espaço, tanto interesse, nem da imprensa, acredito, nem dos estudiosos que se especializam no campo.


“Não existe um olhar muito atento para a fotografia. Esse trabalho não ganha tanto espaço, tanto interesse, nem da imprensa, acredito, nem dos estudiosos que se especializam no campo”

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