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Raízes da violência - Debate

Postado em 05/07/1999

Nota do Editor: as colocações dirigidas à palestrante foram algumas vezes reunidas em blocos, para serem respondidas de forma concentrada.

MOACYR VAZ GUIMARÃES – Sensibilizaram-me muito o problema dos valores políticos e os resultados advindos do trabalho de pesquisa. Eu me lembro perfeitamente de que quando a lei 5.692/71 foi editada, a Lei de Diretrizes e Bases do antigo ensino de primeiro e segundo graus (na ocasião eu era presidente do Conselho Estadual de Educação), causou uma agradabilíssima surpresa o artigo 1º, em que se dizia que o ensino de segundo grau se destinava, entre outras coisas, ao preparo do jovem para o exercício consciente da cidadania. Chamou-me a atenção a utilização da palavra "consciente". Uma coisa é o exercício rotineiro da cidadania, por exemplo, quando vou votar porque sou obrigado. Nesse momento, estou cumprindo meu dever de cidadão. Já o exercício consciente é outra coisa, que me lembra o resultado de um dos quesitos da pesquisa em que se dava pouca importância ao fato de um dos candidatos ter sido eleito porque gastou mais dinheiro ou talvez até por ter usado de alguma manobra fraudulenta. Então, puxando um pouco a sardinha para a minha brasa de educador, entendo que o grande problema é a questão da educação lato sensu considerada. Seria preciso que fosse desenvolvido um trabalho para ensinar o jovem de hoje e adulto de amanhã a ser um cidadão. A escola não pode ser uma agência de ensino, ela tem que ser sobretudo uma agência de formação. Acho que esse aspecto de sua palestra é de suma importância, e todos os responsáveis no Brasil pelo ensino da juventude deveriam talvez pensar um pouco mais e com mais seriedade nisso. Seria bom se nossos congressistas – o que me parece quase impossível – pensassem um pouco mais na grande reforma política, que a meu ver é a maior de todas as reformas, uma nova lei partidária, a lei da fidelidade e outros aspectos que deveriam ser considerados.
Mas voltando a outros pontos de sua pesquisa, aqui data venia vai uma pequena crítica. Ouvi que no quesito em que se perguntou e se aferiram as respostas sobre as mortes provocadas pela polícia havia certa valorização dessas ocorrências. Entretanto, não vi a explicação para o fato de que, ao perguntar ao pesquisado se ele era contra ou se acusava a polícia por essas mortes, não se mencionou a identificação da vítima. Não posso tratar igualmente, por exemplo, o assassinato levado a cabo pela polícia na Favela Naval e o caso de um meliante que está roubando um banco ou um seqüestrador que está trocando tiros com a polícia e é morto por ela. São duas situações absolutamente diferentes. E acredito que o entrevistado, no caso do seqüestrador ou do assaltante, não acusaria a polícia de assassinato. Ao contrário, diria que a polícia cumpriu seu dever em defesa do cidadão. Parece, portanto, que esse aspecto conceitual era de suma importância para que se entendesse o quesito.
Gostaria também de dizer que não vi até hoje uma pesquisa cientificamente elaborada em que pudéssemos ter dados concretos sobre o número de mortes ocasionadas pela polícia e pelos bandidos. Acredito que as últimas superariam em muito as que a polícia provocou. Curiosamente, pelo próprio trabalho indicado, verifico que os mesmos que acusam a polícia de violenta reclamam por maior segurança. Trata-se de uma incoerência aparente, pois quero mais segurança, mas não desejo que haja exageros. É claro que todos somos contra o exagero, a morte imotivada ou o abuso de poder. Mas ninguém pode ser contra o fato de que no exercício de suas funções o policial garanta a segurança a qualquer preço.
Quanto aos direitos humanos, confesso que a mim me preocupa muito, porque trata-se de um problema que não se restringe ao Brasil, mas inclui o mundo inteiro. A verdadeira distorção político-ideológica que se faz em torno do assunto é geral. Não é exagero dizer que hoje a grande preocupação é com os direitos humanos do agressor e não com os da vítima. Se o policial mata alguém imotivadamente ou por abuso de poder, esse alguém vai ter uma missa na catedral, sua família vai receber visitas de todas as autoridades governamentais e eclesiásticas. Mas quando um policial é morto no cumprimento do dever, não vejo missa, não vejo ninguém consolando sua família. Então, na realidade, essa também é uma distorção do próprio conceito de direitos humanos. E o exemplo mais frisante e mais chocante disso nós vivemos com o problema dos seqüestradores do empresário Abílio Diniz. São bandidos comuns, assim definidos pela mais alta corte de Justiça deste país. Fantasiaram-se de presos políticos sem nenhum argumento que amparasse essa fantasia. Entretanto, vejo que cardeais e ministros vão visitá-los, e até o presidente, num ato falho, intervém desastradamente no assunto. Portanto, direitos humanos para eles. E por que não vamos visitar aquele preso que está apodrecendo nos nossos cárceres e que cometeu um crime, talvez por estado de necessidade, pela miséria sua e de sua família? Esse não tem uma palavra de simpatia. Bandidos, seqüestradores, não há outro rótulo, "comovem" as autoridades brasileiras, que procuraram uma solução porque eles fizeram greve de fome. Oh, Deus, então este é um recado extraordinário: que todos os presos brasileiros que tenham cometido quaisquer crimes façam greve de fome, porque ao fazê-lo vão ter as autoridades ao seu lado, pedindo que se lhes comute a pena ou que os soltem das cadeias. Acho que há nos direitos humanos uma exploração político-ideológica que não se sustenta e cuja visão é preciso mudar enquanto é tempo. Em resumo, esses são os aspectos principais sobre os quais gostaria de ouvir sua opinião.

JOSUÉ MUSSALÉM – Antes de mais nada quero dizer a Moacyr que vejo essa greve de fome como mais uma forma de economia ao gasto público no Brasil. Que façam greve de fome, e gastamos menos com esses prisioneiros. A primeira questão que quero colocar é a seguinte: será que existe uma correlação entre o aumento da violência no Brasil e a falência do setor público? O setor público falha na questão da educação, da saúde pública, na administração da justiça e na própria segurança pública; quem sabe não seria esse um vetor de aumento da violência? A segunda questão é a seguinte: será que existe uma correlação entre o aumento da violência no Brasil e o crescimento do desemprego? Atualmente a violência é uma realidade mundial. Ela existe também nos Estados Unidos, onde o desemprego ainda está baixo. Mas no Brasil ela tem aumentado substancialmente, inclusive no nordeste. A senhora não tem dados, mas a imprensa nordestina mostra diariamente casos de violência muito sérios na região. Terceira questão, a senhora falou em violência rural, e vou me permitir gastar um minuto para falar de violência rural no nordeste. Historicamente temos o caso do cangaço. Um companheiro da Fundação Joaquim Nabuco, o professor Frederico Pernambucano, é um estudioso do fenômeno do cangaço, e tem um livro publicado inclusive fora do Brasil, na Alemanha, chamado Guerreiros do sol. Ele faz uma análise da atuação de Lampião – um homem que era um cangaceiro, um assassino – como uma reação à violência. Ele representava uma forma de reagir à violência pela qual sua família tinha passado. É interessante porque no nordeste temos outros tipos de violência, a violência da pobreza, a violência histórica causada pelo senhor de engenho, a violência do barracão da usina – não sei se a senhora conhece o barracão da usina, uma forma de o usineiro explorar o seu próprio trabalhador fazendo com que ele compre obrigatoriamente dele, ficando sempre dependente do patrão –, essa violência do status quo político nordestino, que ainda continua e trouxe uma outra reação, que foram as Ligas Camponesas, de Francisco Julião, inspiradas em Fidel Castro e Che Guevara, e agora a violência do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra). O MST de Pernambuco tem uma atividade parecida com a do Pontal do Paranapanema.
O comandante do MST de Pernambuco, Jaime Amorim, foi "importado" do Paraná, e tem prestígio nacional. Ele realmente comanda invasões, saques, etc. E isso tudo é tolerado pelo governo de Miguel Arraes. A violência rural no nordeste é muito interessante porque não é nova, é antiga, em minha opinião.
Finalmente, uma pergunta para a psicóloga. A violência que existe hoje no Brasil de certa forma tem um poder de mobilização social. Nos morros do Rio de Janeiro, por exemplo, os líderes do tráfico de drogas desenvolvem uma ação social de proteção daquela comunidade, onde falta autoridade pública. E aqui entra uma questão de psicologia social. Será que se conseguíssemos sensibilizar algumas dessas lideranças, tirando evidentemente o tráfico e a violência, para um projeto de mobilização social, de geração de emprego e renda, para que ajudassem o Estado brasileiro nesta fase tão crítica, será que seríamos capazes de convencê-las a deixar a violência e a entrar para um programa de recuperação das pessoas, como faz a Igreja Universal do Reino de Deus?

IRANY NOVAH MORAES – Professora Nancy, como médico-cirurgião estou habituado a fazer microanálises e, quando vejo problemas serem enfocados sob o ponto de vista macro, eu me encanto. No entanto, alguns pontos que a senhora tocou me feriram muito. Um deles foi sobre ser cidadão. Eu não aceito a idéia de ter que perguntar, no pronto-socorro, se o paciente já fez algum bem para a sociedade. Porque muitas vezes é preciso decidir que um deve morrer para que o outro não morra. Hoje os prontos-socorros dos hospitais públicos estão assim. "Ah, eu tenho sangue para um só. Quem fez mais para a sociedade?" Acho que a contabilidade não pode chegar a esse ponto. Também não aceito a idéia de que um cidadão que nasce nos Estados Unidos já tenha uma porção de prerrogativas, enquanto aquele que nasce no Brasil só tem uma porção de negativas.
Outra coisa: a senhora deu a entender que a polícia militar é mais perigosa que a civil para o cidadão comum. Eu não acredito que seja assim. A polícia civil mascara mais o comportamento violento que a outra ostenta, por sua natureza.
Moacyr falou de o direito do agressor ser muito maior do que o da vítima. Sou testemunha de um caso ocorrido há algum tempo na Praça Pan-Americana. Houve um tiroteio, e uma mulher grávida que estava na porta de um banco levou um tiro, que matou a criança em seu útero. E ela quase foi processada porque pôs a barriga no meio do caminho da bala. Não faltaram padres e outros "meias vermelhas" para carregar a família daquele que levou um tiro assaltando banco, mas essa coitadinha quase foi processada.
Seria também muito interessante para a sua pesquisa retirar dados com o ombudsman da polícia. Tive problemas familiares, recentemente, procurei o ombudsman, fui muito bem recebido e as coisas realmente aconteceram. Por quê? Porque alguém estava lá dentro, e com a autoridade que tinha fez acontecer retificações de erros, de crimes dentro da polícia, em que eu e minha família éramos as vítimas. Não entendo muito bem seu conceito de igualdade em relação a classes sociais A, B e C. Acho isso arbitrário. Penso que temos que procurar a igualdade das diferenças. Porque há gente honesta que, por mais humilde que seja, não precisa ser bandido, não tem que ser um criminoso. E nos grupos minoritários há pessoas de excelente padrão, às vezes muito melhores do que nos grupos superiores. Eu chamaria isso de igualdade das diferenças. Não é só a polícia que erra, não é só a polícia que assassina, não é só a polícia que tem comportamento distorcido. Eu me pergunto se o que estão fazendo com Pinochet, por exemplo, tem sentido. Ele até merece muito mais que isso, mas não queria ver um tribunal de Nuremberg agora. Gostaria também de saber se vão pegar Fidel Castro, que matou tanta gente quanto Pinochet, e colocá-lo no tribunal.

NANCY – Concordo plenamente com o professor Moacyr que há no país um problema profundo de educação ou de falta de educação no sentido de educação política. Em nossas pesquisas temos observado que existe uma enorme ignorância em todas as classes a respeito do sistema de governo no país. As pessoas, mesmo alunos de escolas de elite de São Paulo, têm dificuldade para entender qual é a diferença entre a função de um vereador, de um deputado estadual, de um deputado federal e de um senador. Ou seja, a maioria da população brasileira, eu ousaria dizer, vota sem saber exatamente quais são as responsabilidades que estão delegando para aquelas pessoas e que se encontram atreladas ao cargo que vão ter que desempenhar. Em tons muito ligeiros as pessoas sabem que há uma diferença entre prefeito e governador, o resto é uma nebulosa.

ROBERTO PENTEADO – É o voto do analfabeto.

NANCY – Não, não é só do analfabeto. É o voto do alfabetizado e dos jovens que não conhecem o assunto. A divisão de poderes entre o Executivo, o Legislativo e o Judiciário é desconhecida. As instâncias do Judiciário são desconhecidas por uma parte da população educada. Uma parcela muito pequena da população conhece a diferença entre o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e o Supremo Tribunal Federal (STF), por exemplo. Não podemos usar essas expressões quando queremos levantar a imagem do Judiciário entre a população. Incorremos inclusive num problema de linguagem, porque, se alguém falar em tribunal, em júri, em Judiciário, estará usando palavras que não são entendidas por uma grande parcela da população, que não consegue saber do que se trata; então é preciso colocar tudo de forma muito mais concreta. Lembro-me de uma história que aconteceu com o ex-secretário de Justiça do estado de São Paulo, Manuel Afonso Ferreira, quando estava escrevendo um artigo sobre a Constituição de 88. Ele estava no Guarujá e foi a uma livraria comprar um exemplar da Constituição de 88, falou com a vendedora e ela perguntou se era algum grupo de rock. Isso não é uma piada, foi contado por ele. Quando perguntamos à população o que mudou em seu cotidiano, a partir da Constituição de 88, não temos resposta, porque as pessoas não têm noção do que seja isso. Realmente a questão da educação para a cidadania é importante para que as pessoas tenham minimamente um mapa da mina que explique como se estrutura o governo, qual é a divisão de poderes, quais são as responsabilidades e atribuições dos políticos, como é o sistema judiciário, como defender os próprios direitos, enfim, pontos básicos. Sem isso vamos continuar patinando onde estamos e sem poder defender, por exemplo, a mudança partidária mencionada, a alteração na estrutura dos partidos, tipo de voto, de representação, voto distrital ou não. Não vamos conseguir um apoio maciço da população em torno desses temas porque ela nem sequer entende o que eles significam, qual é a repercussão que têm ou por que são importantes para o seu cotidiano.

JULIAN CHACEL – Aliás, eu gostaria de fazer um pequeno aparte que dá razão inteiramente a essas suas considerações. Durante uma aula que dava na USP, de pós-graduação, sobre estrutura e organização do Estado, fiquei pasmo com o que vi. Num grupo de 25, 30 alunos nenhum deles sabia qual é a estruturação dos poderes, quais são as suas competências, qual a interligação entre eles e para que existem. Essas noções não faziam parte de suas respectivas culturas.

NANCY – Quanto à questão da não-qualificação das mortes provocadas pela polícia, realmente é um problema da pesquisa. Quando se está aplicando um questionário maciçamente a um volume grande de pessoas, algum tipo de problema ocorre, e esse, concordo, é sério. Mesmo assim, continuo enfatizando, embora não tenha certeza, que, se a pesquisa incluísse uma qualificação clara da pessoa morta pela polícia como um trabalhador sem nenhuma ficha criminal, etc., se houvesse um esclarecimento sobre a inocência dessa pessoa, mesmo assim o apoio à polícia por esse tipo de ação permaneceria, a despeito da desconfiança e do descrédito que a população deposita nela.
Aproveito para responder a uma das questões colocadas pelo professor Irany a respeito da polícia civil e da militar. Na cabeça das pessoas não há diferença entre as duas polícias, mas elas se sentem profundamente diferentes. Para a população existe a polícia, não as polícias, inclusive elas não percebem qual é o papel constitucional da polícia militar ou da civil. A população não tem informação sobre isso. A diferença existente é que a polícia sem uniforme é unanimemente considerada corrupta, enquanto a que usa uniforme é vista como violenta, que humilha a população em geral quando faz revistas, etc. A polícia uniformizada do estado de São Paulo, que até alguns anos atrás tinha muito orgulho de não apresentar nenhuma nódoa de corrupção atrelada a sua imagem, hoje também é vista na periferia do município de São Paulo e na região da Grande São Paulo como corrupta. E essa corrupção liga-se ao fato de que não existem controles sobre essas polícias em termos de como elas agem e abusam de sua força.
Então, quando criticamos a polícia em relação ao uso exagerado da força, nós o fazemos por dois motivos. Primeiro porque numa democracia o agente do Estado que mais tem contato com a população é o policial. E o agente que mais educa ou deseduca a população quanto ao respeito às leis também é o policial. Se ele viola a lei na hora em que deveria estar aplicando-a, acaba dando um péssimo exemplo. Isso não pode ocorrer. E é isso o que acontece com a população o tempo todo. A maior parte das pessoas tem os seus direitos violados. As revistas que a polícia faz, sob a justificativa de que está protegendo a população, não são realizadas com o respeito aos direitos do indivíduo. Ela pode fazer as revistas, dar a segurança que a população deseja, mas não de maneira a humilhar as pessoas. Quando humilha, está desrespeitando os direitos dos outros.
No imaginário da população não há diferença, as duas polícias têm má imagem. Quanto à questão do número de mortes provocadas pela polícia e pelos delinqüentes, é muito difícil obter esse percentual claramente, mesmo porque a maioria dos homicídios não são esclarecidos. No estado de São Paulo, onde há um desempenho um pouco melhor da polícia judiciária, estimamos que cerca de 40% dos homicídios são esclarecidos. Isso não significa que o tipo de inquérito policial que foi produzido seja de qualidade suficiente para levar a julgamento e à condenação as pessoas que foram identificadas como responsáveis. Pelo contrário, os números que temos indicam que apenas 12% dos homicídios que ocorrem chegam a julgamento; e são sentenciados mais ou menos 8%. Ou seja, há um grau de impunidade brutal, o que representa um outro fator que vai alimentar a violência, porque, se a polícia não resolve, abre-se espaço para que se faça literalmente justiça com as próprias mãos, o que também acontece. Houve um momento em São Paulo em que, do total de homicídios no município, 30% eram atribuídos à polícia. Trata-se de um número exagerado. Em nenhuma sociedade se admite isso. Para os padrões internacionais, aceita-se que, do total de homicídios que ocorrem num determinado local, as mortes provocadas pela polícia somem no máximo de 5% a 8%; esse é o número considerado razoavelmente aceitável; 30% certamente não é. Atualmente estima-se que as mortes provocadas pela polícia no município de São Paulo estejam em torno de 12%, mas o índice já esteve mais baixo em outros momentos.
Há ambigüidade por parte da população? Sim. A população quer mais segurança e ao mesmo tempo aprova a violência praticada pela polícia, e, portanto, dá recados ambíguos a ela. Muitos casos de violência que a polícia perpetra, ela os faz sentindo que é respaldada pela população. E aqui vamos cair no velho problema da educação. A própria população que sofre essa violência não percebe que ela é a vítima preferencial. E então adota saídas individuais para se proteger. Ela acha que sendo uma boa cidadã, não estando no lugar errado, na hora errada, fechando-se em casa a partir das 6, 7 horas da noite, dando todos os sinais de que não pertence à classe delinqüente, vestindo-se e falando de determinada maneira estará protegida. Em alguns lugares mais violentos da periferia, a religião chega a ser adotada como uma forma de proteção contra os delinqüentes e a própria polícia. Por isso, ser crente, ser visto com a bíblia debaixo do braço, etc., é um jeito de passar uma mensagem a respeito da própria integridade e correção. E a população sente necessidade disso. Inclusive ocorre muito clamor e indignação quando uma dessas pessoas é agredida. Recentemente pudemos acompanhar pelo noticiário uma reconstituição do que aconteceu em Vigário Geral, com depoimentos da população local; alguns dos moradores enfatizavam casos em que famílias inteiras de crentes haviam sido executadas naquele episódio. Aquilo lhes parecia impossível, pois as pessoas estavam com a bíblia.
Quanto à questão dos direitos humanos, acho que nós, como defensores desses direitos, temos um problema de marketing a enfrentar. O Programa Nacional de Direitos Humanos teve que contemplar artigos básicos, como o fornecimento de certidão de nascimento gratuita universal no país, coisa que não existia e que está sendo de difícil implantação. Moramos num país onde as crianças recém-nascidas, até recentemente, não tinham acesso irrestrito ao reconhecimento pelo Estado como cidadãs deste país. Havia um obstáculo que variava entre R$ 17 e R$ 43 para garantir esse reconhecimento. E a implantação da certidão gratuita de nascimento está sendo uma luta feroz. Nesse programa, há vários itens referentes aos policiais. Fazemos uma fortíssima defesa da melhoria de suas condições de trabalho, defendendo a manutenção de condições minimamente dignas para que eles possam exercer sua profissão. Consideramos que o fato de os policiais serem forçados a fazer bico já é uma distorção profunda que vai nos levar sempre a um estado de segurança muito precária, porque o policial que faz bico certamente vai se envolver em algum tipo de conflito de interesses entre o público e o privado, em algum momento. Fizemos uma defesa veemente da implantação do seguro de vida coletivo para os policiais no estado de São Paulo, algo que o governo Covas implantou logo no seu início. O policial, tanto civil como militar, não tinha seguro de vida. Se ocorresse qualquer acidente de trabalho com ele, a família ficaria na maior penúria. Esse seguro foi uma maneira de reconhecer sua necessidade de contar com essas garantias. Uma das outras lutas foi para garantir o fornecimento de coletes à prova de balas para os policiais. Eles trabalhavam sem esse equipamento, pois tinham que comprá-lo com o próprio salário. Como o colete chega a custar R$ 700, o policial precisava gastar praticamente um salário integral na sua compra. Foi uma luta importante. Nós nos manifestamos, sim, cada vez que um policial morre em serviço, nos comunicamos com a família, mandamos telegrama, nos colocamos à sua disposição para ajudá-la a ter acesso à previdência e a todos os benefícios sociais a que tem direito. Tudo isso é feito por uma entidade que trabalha conosco no Núcleo de Estudos da Violência, que é a Comissão Teotônio Vilela, e é financiada por nossos próprios meios. Não existem recursos da sociedade para isso.
Quanto à questão que foi levantada sobre a situação dos seqüestradores de Abílio Diniz, preferimos não nos manifestar. Não consideramos que se trate de um crime político, mas de um delito comum. Os juristas têm visões diferenciadas para afirmar se eles têm ou não direito aos benefícios aplicados aos outros prisioneiros. Mas quero deixar bem claro que as visitas aos presídios, a identificação da situação dos prisioneiros portadores do vírus da Aids que já têm a manifestação da doença ou de todos aqueles que apresentam restrições físicas, como os paraplégicos, os tetraplégicos, a verificação de suas condições de saúde e a denúncia das pobres condições carcerárias são feitas rotineiramente por nós. Vários relatórios são produzidos, fazemos denúncias à imprensa, infelizmente, sem forte repercussão. Concordo plenamente que é muito difícil provocar algum impacto na opinião pública se não fizermos ampla defesa dos direitos humanos, tal como os entendemos, incorporando direitos econômicos, sociais, políticos e trabalhistas. É praticamente impossível mudar a imagem dos defensores dos direitos humanos se essa defesa não for feita de maneira abrangente. Esse é um problema razoavelmente complexo e se refere à questão de saber como levar essa defesa avante.
Em relação ao senhor Mussalém, eu diria que a falência do setor público, obviamente, está ajudando o crescimento da violência. Há uma correlação brutal entre as duas coisas. É impossível separar o rápido processo de urbanização que o país sofreu do crescimento da violência. O Brasil passou de 70% de população rural e 30% de urbana, na década de 40, para exatamente o oposto: atualmente temos 70% de população urbana e 30% de rural. No intervalo de cerca de 50 anos, não se passa por uma transformação dessa magnitude, com um Estado que não teve condições de criar infra-estrutura básica para que essa população rural se tornasse urbana com o mínimo de dignidade, sem criar situações que são facilitadoras da violência. Agregamos a isso o desinvestimento do Estado na área da educação, da saúde e da segurança pública. O sistema de segurança pública não consegue mais dar conta dos problemas. Isso ocorre porque temos um círculo vicioso: aumenta a violência, cresce a incapacidade do Estado de lidar com ela. O número de processos arquivados, de furtos e roubos é enorme, não há investigação. Só há investigação sobre alguns homicídios e alguns latrocínios que têm maior repercussão na imprensa, mas fica tudo por aí. O sistema judiciário não consegue dar conta daquilo que recebe, e o que observamos é que o poder discricionário da polícia sobre o que ela vai investigar ou não, o que vai ser arquivado, se amplia à medida que vão aumentando as ocorrências. A impunidade cresce, e sabemos que esse crescimento faz aumentar as ocorrências. Estamos num círculo vicioso perverso.
Sobre o desemprego, a Fundação Seade tem gráficos que mostram uma correlação – apesar de que correlação não nos dá certeza alguma – entre os picos de desemprego em São Paulo e o aumento dos crimes violentos que seriam o roubo, o latrocínio e o homicídio. Mas teriam que ser feitos estudos muito mais refinados em termos estatísticos para provar essa correlação. Ainda assim, duvido de uma coisa tão linear. O desemprego seria um dos fatores estressantes que facilitariam... mas facilitariam o quê? A violência doméstica, por exemplo. O desemprego leva a um rebaixamento da auto-estima do indivíduo. Na periferia existem regras muito claras sobre o que um homem deve fazer durante a semana, no horário de trabalho: ele deve estar trabalhando. Aquele que fica circulando pelo bairro, jogando nos bares, nas mesas de sinuca ou bebendo nas esquinas é malvisto pela população, e sabe disso. Em função disso tudo, há uma redução da auto-estima que é um incentivo para o consumo de álcool. O consumo de álcool e a falta de dinheiro em casa são dois fatores que vão facilitar a violência doméstica. E sabemos que a violência entre o marido e a mulher terá repercussão sobre as crianças. É muito difícil existir violência doméstica entre o casal que não atinja os filhos. Esses são alguns elementos que levam as crianças a aprender uma linguagem de violência. E o desemprego é um dos fatores que se junta a vários outros.
É interessante notar uma diferença que está relacionada com a infra-estrutura, a rede de proteção social que uma sociedade consegue constituir para lidar com esses problemas. Enquanto nos Estados Unidos os grandes períodos de violência corresponderam também a momentos de forte desemprego, principalmente entre os grupos de negros moradores dos centros urbanos precários, na Europa, em países onde se tem uma altíssima taxa de desemprego já crônica entre os jovens, não há um crescimento da violência, apesar de existir também consumo de drogas, e drogas que levam à violência. A diferença está na existência de um estado de bem-estar social mínimo em curso. Essa condição, que provê acesso à saúde, à educação, a treinamento para o mercado de trabalho, certamente é um dos fatores que segura a violência. Há um potencial, mas esse potencial não se realiza porque existe certa proteção dentro da sociedade, certo cuidado. Já a violência rural tem características tão específicas que prefiro não me colocar a esse respeito. Mas ela é muito antiga, é muito difícil identificar quem é do bem e quem é do mal. Pelo que observamos em nosso banco de dados, a violência rural ocorre em todos os sentidos. Fazendeiros mandam matar e fazendeiros são mortos. Administradores de fazenda mandam matar e são mortos. Em resumo, não existe mocinho e bandido nessa história, na área rural a violência é generalizada, como é generalizada também a impunidade, pelo que detectamos até agora.

MUSSALÉM – Mas o que quis dizer com a pobreza absoluta no nordeste é que ela também é uma forma de violência.

NANCY – Ah, sim. Estamos aqui nos dedicando apenas a um aspecto da violência, à violência física. Em termos de mobilização social, é uma questão muito interessante. É óbvio que mobilizar as lideranças e criar alternativas de geração de renda dentro das favelas é básico para que se possam criar pelo menos alternativas para a população jovem, que está mal preparada para o mercado, cujas características aliás ninguém sabe quais serão – o mercado de trabalho também é uma grande interrogação. Seria básico criar algum tipo de perspectiva. O que observamos é que a ausência de perspectiva – a impossibilidade de poder pensar no futuro, ter alternativas para constituir legalmente uma família, realizar-se dentro dos preceitos legais da sociedade – é um dos motivos que levam o jovem a entrar na criminalidade. Muitas vezes, nas favelas, quando a violência é muito forte e há o domínio da região pelos traficantes, praticamente não existe opção para o jovem, porque, se não for violento, ele perece, é uma questão de sobrevivência mesmo. Existe inclusive um grau de perversidade muito grande nesse caso, porque a esse jovem não é dada nenhuma escolha. Em São Paulo a situação ainda é diferente, mas ninguém sabe por quanto tempo, pois, enquanto o crime organizado é muito menos visível aqui do que no Rio de Janeiro, é também muito mais fragmentado, e seu poderio ainda não está estabelecido. Mas o que nos preocupa muitíssimo é o fato de ele ter se infiltrado nas forças policiais da maneira como o fez e o tipo de corrupção que está gerando, porque esse é o primeiro passo para que se concretize e se enraíze nessas comunidades; ele não está enraizado ainda, mas está a caminho.
Quanto à questão de ser cidadão, depende da percepção da população. Quando a população sente que o direito não existe para todos, começa a separar quem tem direito ou não tem. Um dos critérios para isso é o de merecimento. Concordo que é uma grave violação dos direitos humanos o médico ter que decidir quem vai viver e quem vai morrer. Isso é um absurdo total. Quando nos referimos à igualdade, estamos falando de valores que precisam ser mantidos. Não podemos aceitar, por exemplo, que desigualdade econômica se transforme em desigualdade no acesso à lei. Porque queremos que todas as pessoas sejam julgadas da mesma maneira. Seria terrível aceitar que pessoas com mais recursos tivessem direito a uma lei diferente daquela aplicada às pessoas que têm menos recursos. Um dos problemas que existe em relação à questão da igualdade em nosso país é que certas desigualdades são consideradas naturais, e essas desigualdades na verdade são constrangedoras. Por exemplo, o fato de uma mulher com o mesmo nível educacional e que exerce o mesmo tipo de ocupação ganhar a metade do salário de um homem não provoca indignação na população. É por isso que hoje o IBGE revela que a mulher, exercendo a mesma ocupação que o homem, recebe 56% do salário do homem.

IRANY – Você conhece alguma mulher que tenha passado por isso? Eu não conheço nenhuma em lugar nenhum.

CECÍLIA PRADA – Eu sou uma. Já tive até um processo trabalhista, e acabei perdendo. Eu trabalhava na revista "Visão", em São Paulo, era jornalista como os meus colegas, mas ganhava um terço do meu paradigma. Quando saí da "Visão", tive um processo trabalhista, ganhei na primeira instância, na segunda perdi. Fizeram-me elogios, mas já estou saturada de elogios na vida; quero justiça, mas isso não tem. Alegaram que eu era editora de cultura e que o outro era editor de economia. Portanto, economia era mais importante que cultura, o que não é verdade, porque sabemos que o editor de cultura deve conhecer inclusive economia.

MALCOLM FOREST – Estamos numa era pós-qualidade total, que já é tomada aprioristicamente em muitas áreas, com normas e mesmo metanormas. No entanto, a polícia brasileira parece que não está ainda na era da qualidade total. Não faz muito tempo vi numa estatística que a cada cem mortes causadas pelo aparato policial, 37 pessoas inocentes morriam, pessoas que não tinham nenhuma passagem pela polícia, nenhuma ficha e nada a ver com o caso. Acho que estamos realmente num estado de beligerância permanente no Brasil. Essa história de que este é um país de paz é muito relativa, porque somadas as mortes nas zonas oeste, leste, enfim, na periferia, na Baixada Fluminense, no campo, no nordeste, vamos encontrar um número de mortos maior até do que em algumas guerras ou ataques terroristas.
Quero fazer um apelo aqui para a mudança do Carandiru de São Paulo. Todos já devem ter acompanhado a movimentação do governo do estado para criar novas penitenciárias, descentralizando o presídio de São Paulo. Mas tenho ouvido falar de uma tese de que essa mudança vai ser muito difícil por causa do crime organizado que está sediado ali. Algumas quadrilhas como essa que assaltou o ex-prefeito Paulo Maluf são formadas e comandadas a partir do quartel-general principal, que é o Carandiru, mancomunado com a polícia corrupta. Um dos assaltantes que atacou Maluf na Alameda Lorena com a Avenida Nove de Julho – aliás no dia seguinte Miguel Reale Júnior também foi assaltado – era egresso do Carandiru, havia saído no dia 26 de novembro e já estava voltando à prática com um assecla. O perímetro dos Jardins, em São Paulo, está totalmente despoliciado, o índice de assaltos e seqüestros relâmpagos está aumentando muito, e o narcotráfico também. Será que o problema raiz dessa alienação toda, dessa apatia que parece ser contagiante – uma vez que quanto mais se vê triunfar a nulidade, mais se desacreditam o Estado e a cidadania – não estaria localizado na educação? Por falar nisso, como anda a informação e a promoção da cidadania nas classes mais baixas? Gostaria de saber sua opinião em relação ao papel da mídia na violência; claro que todos nós estamos traçando nossas conclusões, nossos planos, nossa ação futura, consciente ou inconscientemente, a partir desse conhecimento que adquirimos hoje. Mas que papel os cidadãos, os empresários, as empresas e as organizações poderão exercer para melhorar essa realidade tão cruel que temos?

SAMUEL PFROMM NETTO – Gostaria de acrescentar às ponderações de Malcolm Forest, que subscrevo, algumas que me parecem importantes. Venho trabalhando num modelo psicológico para a compreensão do comportamento violento, cujas linhas gerais foram divulgadas na edição de julho/agosto de 97 de Problemas Brasileiros, que insiste na existência de muitas causas para a violência e não numa relação linear simples de causa e efeito. É uma constelação de fatores que envolve desde genética e componentes neurais até a aprendizagem da violência, mídia e contextos socioculturais. Margaret Mead realizou trabalhos que são clássicos hoje sobre povos pré-letrados violentos e povos pré-letrados pacíficos. Portanto, o problema é extremamente complexo e envolve muitas variáveis. Toda e qualquer tentativa de resumir as coisas em três palavras acaba sendo frágil e não resolve problema nenhum.
O que me preocupa presentemente, e é a base da minha intervenção, é a nossa fragilidade acadêmica em relação ao ensino e à pesquisa, pois, apesar das múltiplas manifestações da imprensa, de pessoas na mídia e em contextos como reuniões, congressos, etc., parece que estão ignorando a psicologia científica da violação de normas, a psicologia científica do crime, da agressão, da violência e do ódio em crianças, em adolescentes e em adultos. Agravando ainda mais esse quadro e talvez corroborando a necessidade que temos de um trabalho muito intenso e extenso nessa área, em relação à qual o acadêmico brasileiro parece estar alheio, o Brasil é o único país do mundo em que a educação moral e cívica foi proibida pelo governo federal. Um decreto do então presidente Itamar Franco de fato proíbe em todo o Brasil e em todos os níveis e modalidades de escolarização o ensino moral e cívico. Moral e civismo, a partir de Itamar Franco, passaram a ser palavrões nas escolas brasileiras, e estão proibidos. Não é de estranhar que, a médio e a longo prazo, medidas estapafúrdias como essa tenham concorrido para agravar ainda mais o clima de quase anomia em que estamos vivendo e em que se fala tanto de direitos e pouco ou nada de deveres. Pior ainda, faz-se uma clivagem segundo a qual o que no passado se defendia como direitos e deveres de todos converteu-se em direitos de uns e não de outros, deveres de uns e não de outros. Uma clivagem perigosíssima, segundo a qual certos direitos podem ser tranqüilamente violados, eu diria até violentados, com a certeza da impunidade porque há interesses político-partidários, ideológicos, etc., em jogo. Inclusive o recurso à violência física, ao latrocínio, à desobediência às leis que regem o país seria uma versão popularesca de uma frase que é tradicionalmente atribuída a Getúlio Vargas: "A lei, ora a lei".
Nossas crianças e nossos jovens, talvez por estarem crescendo em escolas nas quais é proibido ensinar moral e civismo, sofrem de um dano educacional irreparável e muito sério e, como se essa aberração não bastasse, há certo sociologismo de fachada, que tem pouca ou nenhuma relação com a teorização e a pesquisa empírica da sociologia contemporânea verdadeiramente científica. E não estaria aí um outro problema brasileiro, que é um certo pendor para uma visão lírica, sentimentalóide e simplista de problemas sociais extremamente complexos, como se a humanidade fosse composta apenas de anjos, ou a partir de uma ótica que defende a impunidade para uns e a punição para outros, na dependência de seu posicionamento político-ideológico ou de seu nível socioeconômico, da cor da pele, da religião professada ou do local de residência? Daí, por exemplo, essa preocupante tendência de proclamação dos direitos dos criminosos, como foi mencionado aqui, e do silêncio a respeito dos direitos da vítima. Como se isso tudo não bastasse, jovens e crianças no país estão crescendo em meio a um clima de menosprezo à instituição familiar, de desagregação, de deterioração desses valores. A família no Brasil está em crise, e é uma crise muito mais grave do que se tem pensado e do que tem ocorrido em diferentes contextos. Refiro-me é claro à família segundo um conceito e uma realidade que vem acompanhando a trajetória humana ao longo de tempos muito mais remotos do que se supõe, com o sentido de uma ligação permanente, e não esporádica, entre um ser do sexo feminino e um do sexo masculino, que têm filhos e que cuidam de fato deles, dando-lhes proteção, carinho, orientação para que vivam bem e convivam em paz com os demais, ensinando-lhes desde o berço as lições essenciais, que são nucleares no cristianismo e em todas as outras grandes religiões da humanidade.
A visão que tenho denunciado reiteradamente como sentimentalóide, unicausal e oportunista da violência, e que ressalto entre outras limitações extremamente sérias, pode nos fazer esquecer que agressão e violência são conceitos "guarda-chuva", muito amplos e gerais, que nos levam a misturar idéias e problemas que não deveriam ser confundidos. Para citar apenas um exemplo, junta-se o ato violento esporádico de alguém que antes não teve, não tem ou não terá uma história de prática de atos dessa natureza com o caso de um ofensor violento que pertence ao âmbito da psicopatologia – casos de sérios distúrbios mentais, casos clínicos, que precisam ser considerados a partir de um quadro de referência totalmente distinto daquele relativo ao comportamento violento esporádico de pessoas não-agressivas.
Essas considerações têm a ver com o problema central da sua exposição: a pesquisa sobre agressão e violência no Brasil. Meu ponto de vista, com todo o respeito a quem pense de outro modo, é de que vamos muito mal nesse território. É bem sabido que uma só andorinha não faz verão e uma só pesquisa faz aflorar apenas um dos múltiplos aspectos e das variáveis, dos desafios e problemas que se acotovelam em relação a itens extremamente complexos e multicausais, como é o caso da agressão e da violência. A pesquisa relatada é do máximo interesse e indica um caminho que, oxalá, outros pesquisadores trilhem, desenvolvam, investiguem, porque esse é o rumo, o trabalho sério e responsável, com pesquisas de laboratório, uma das fragilidades da psicologia no Brasil. A psicologia em nosso país geralmente é do tipo não-laboratorial; não temos pesquisas científicas experimentais sobre violência, pesquisas de campo, investigações de outra espécie, mas sempre com uma preocupação, que por certo é a sua como pesquisadora, de oferecer provas e não apenas conjecturas ou "acho quês" a respeito de um problema como esse.
Parece-me que no terreno da violência predomina entre nós muito mais uma espécie de palpitologia de discurso apaixonado e faccioso, uma elucubração sem base de sustentação empírica sólida. E, de modo geral, tanto nossos acadêmicos nas universidades como a população e os que a governam têm pouco ou nenhum conhecimento desse verdadeiro oceano de pesquisas, livros, investigações, papers, etc., de laboratório e de campo, que possibilitam um conhecimento fundamental melhor e mais sério do problema, dos programas bem-sucedidos de redução da violência em comunidades, em países, dos trabalhos nas escolas para que as crianças aprendam a controlar a violência. Tudo isso existe e não é divulgado ou não há material disponível em língua portuguesa. Além disso, não me parece que tenha havido pouca preocupação entre nós com os fatores ligados à escalada da violência na televisão, no vídeo, nos videogames, ou seja, com essa que é uma condição trágica do mundo em que vivemos: a violência na mídia. Na verdade, o que temos é um currículo televisual que ensina a pessoa a ser violenta desde o berço, sugere que a violência compensa, que o sadismo é saudável. O marquês de Sade renasce nos anos 90, às vésperas do ano 2000, como um modelo inspirador do comportamento humano. E a TV propõe melifluamente a seu público a tenebrosa inversão da lei maior do cristianismo, pois está ensinando escancaradamente às crianças e também aos adultos: "Odiemo-nos uns aos outros".

PENTEADO – Acompanhamos seu diagnóstico da violência desaglutinadora da sociedade, que envolve inclusive a polícia. Em termos analíticos, observamos que a parcela da população com alta e média rendas e alta escolaridade procura manter direitos estabelecidos de cidadania, fato que não ocorre com o segmento de baixa renda e baixa escolaridade. Associando-se isso ao fato de que, pela distribuição de renda no Brasil, aproximadamente 10% da população detém 50% ou mais da riqueza, penso que cabe aqui um questionamento: será que a violência não decorre também dos exemplos de corrupção e deslizes administrativos que vêm sendo apresentados pela imprensa? A riqueza fácil e ilícita poderia ser um foco de revolta.

JACOB KLINTOWITZ – Fiquei em dúvida quanto à composição do universo pesquisado. Talvez pudéssemos saber um pouco mais sobre isso. Tenho uma questão teórica em relação à sua afirmação de que é consensual na psicologia que a violência seja um aprendizado. Sou leigo na matéria, mas li Melanie Klein e Freud e parece-me que, pelo menos na opinião de Melanie Klein, a violência, a raiva, o ódio têm outro tipo de origem, além do aprendizado.
Noto em todas as reuniões deste tipo que há muitas ressalvas quanto aos direitos do homem. Eu penso que ou os direitos são para todas as pessoas ou não vivemos num Estado legal. Não há, como dizem os políticos demagogos, os direitos do bandido ou os direitos da vítima ou os direitos de quem quer que seja; os direitos são de todos.
Tenho também a impressão de que emerge dessa e de outras pesquisas a sensação de que, para a população, há um complô que domina o país, e esse complô é constituído pelo governo, pelos grandes empresários, pelas multinacionais e pelos vários sistemas de poder. Penso que essa descrença que a população tem nos direitos do homem, ou na possibilidade de que esses direitos sejam aplicados a sua vida, a seu país, resulta da idéia de que vivemos uma situação de violência organizada e de que o país é dirigido, na verdade, desde sempre, desde a chegada do europeu, por uma quadrilha organizada. Talvez nesse tão reclamado processo educativo tenhamos que explicar essas possíveis diferenças.
Tenho um trabalho de contato muito grande com o público, e me parece que para a população não há diferença alguma entre a presidência da República e a TV Globo. Não há diferença alguma entre os grandes veículos de comunicação e o Ministério da Saúde. Não há diferença entre uma quadrilha que ele observa nos relatos da máfia, uma quadrilha de drogas no Brasil e a atividade de um ministro de Estado. Penso que desse tipo de pesquisa emerge a convicção de que a população se sente vítima de um complô e que ela inclusive hesita em reclamar seus possíveis direitos porque teme ser punida pela quadrilha que está no poder.

NANCY – Em termos de normas e padrões de desempenho, estrutura organizacional, modo de operar, etc., nossas polícias devem estar no princípio do século 19, mais ou menos. Nada do que se aprendeu ao longo deste século sobre organização, fatores que levam os indivíduos a apresentar melhor desempenho dentro das organizações, inovações gerenciais, etc., foi incorporado por nossos policiais. Eles dizem que têm avaliação de desempenho, mas na verdade isso não existe. O crescimento do indivíduo na carreira ocorre com base em dois critérios: mérito ou antiguidade. Mérito ninguém sabe medir, e então eles vão evoluindo pela antiguidade, ou seja, pelo tempo de serviço.
E aprendem rapidamente que, se não pisarem nos dedos errados, podem subir. Então, para que se preocupar? Aquilo que o indivíduo faz no cotidiano jamais é computado para sua carreira, portanto, não interessa se ele faz bem ou se faz mal sua tarefa. Também não há uma visão de conjunto do que ele faz, porque as tarefas são picadinhas.
Estamos terminando uma pesquisa no Núcleo de Estudos da Violência que consistiu na reconstrução de casos exemplares de graves violações de direitos humanos que ocorreram na década de 80. Recuperamos os processos, pegamos o inquérito policial, o processo judicial, entrevistamos as pessoas que participaram, juízes, delegados, promotores, voltamos às comunidades onde os casos ocorreram e fizemos uma reconstituição sob o ângulo de todos os atores envolvidos. Pudemos observar que por um único inquérito policial passam em média oito delegados, dez promotores, 15 juízes. É como se fosse uma linha de montagem em que cada um carimba uma página, com freqüência não lê o que estava nas páginas anteriores e ninguém assume a responsabilidade. Para os casos que chegam ao tribunal de júri, os policiais não vão apresentar evidência em público. Então nunca se vê um epílogo do caso, ou seja, não há mecanismos institucionais nem individuais para que as pessoas possam se avaliar e saber o que estão fazendo e se estão fazendo bem ou não. Isso significa que temos que fazer uma espécie de revolução na administração desses recursos. Não é surpresa então que a sistemática de funcionamento de uma delegacia de polícia seja o mais conturbada possível, com o maior desperdício de tempo possível. São perpetradas verdadeiras aberrações administrativas, e não podemos nem responsabilizá-los. O mais interessante é que se discute muito a reforma do Estado, mas não vi nenhuma discussão que considere as questões relacionadas com o exercício das funções administrativas.
Quanto à educação, que é o princípio básico, voltamos sempre ao mesmo ponto: é um dos fatores que podem nos ajudar a construir uma cidadania sólida e a evitar a violência. É por intermédio da educação que se começa a criar pelo menos um terreno mais propício para isso. É o que a sociedade pode fazer, e Fernando Figueiredo, que dirige o Instituto São Paulo contra a Violência, pode confirmar, pois o instituto é uma tentativa conjunta com a universidade, empresas, sindicatos, TV Globo, etc., de produzir mudanças na sociedade.
Voltando ao que o professor Pfromm colocou, vou me dedicar um pouquinho à questão da pesquisa sobre a violência, que me parece ser o ponto principal. No Brasil, os estudos vêm de várias fontes. Há a vertente sociológica, que trata, por exemplo, do funcionamento do sistema de justiça criminal e penitenciário, que tenta estudar as questões ligadas ao crime organizado, etc., e que sempre desemboca nos problemas estruturais. Existem muitos trabalhos bons produzidos na área da antropologia, principalmente no Rio de Janeiro, e que têm sido muito bem-feitos, com rigor acadêmico e levantamento de dados muito interessantes. Mas um dos problemas que temos com relação à violência é que ela é contextualizada, tem variáveis locais que lhe dão uma feição própria. Estou falando sempre da violência delituosa, da violência física.
Em termos de violência fatal, os melhores trabalhos têm sido produzidos pelos epidemiólogos na área de saúde pública. Há duas linhagens. Temos a Faculdade de Saúde Pública, em São Paulo, que tem feito trabalhos na mesma linha da Organização Pan-Americana de Saúde e do Center for Disease Control, com um grupo de prevenção de violência e de acidentes, que busca identificar os perfis da mortalidade por homicídio: quem é que está morrendo, como e por quê. No Rio de Janeiro, já existe uma linha um pouco mais sofisticada, desenvolvida pelas equipes da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), que busca aprofundar esses estudos. Há, por exemplo, uma pesquisa maravilhosa, que acabou de ser concluída, financiada pelo Ministério da Justiça, sobre irmãos que matam e irmãos que não matam. Essa é uma pesquisa muito mais na linha americana, que tenta entender quais são as variáveis familiares da comunidade. Essa pesquisa vai até as condições em que essas crianças foram geradas, se foram resultado de gravidez desejada ou não desejada. Nos Estados Unidos, existem pesquisas que mostram que os filhos de gravidez não desejada são mais passíveis de se tornar vítimas da violência doméstica, e a possibilidade de se tornarem vítimas da violência fora de casa também é maior, incluindo as chances de virem a ser vitimadores posteriormente.
Essa pesquisa é muito interessante e até me ajuda a responder a uma questão que foi colocada por Roberto Penteado a respeito da revolta. Ela destaca o fato de que os irmãos que matam e que estão cumprindo pena ou estão em liberdade vigiada são justamente aqueles que não vêem carências na comunidade da qual provêm, embora ela de fato seja carente. Eles aceitam tudo normalmente. Não há precariedade na comunidade, não há precariedade na escola. São esses que caem no delito. Os irmãos que não matam são os mais críticos, são aqueles que vêem uma discrepância entre o que deveriam ter e o que têm, o que sugere que estamos falando de contraste. Isso quer dizer que não é aquele que se revolta que cai na criminalidade, mas o que não se revolta. Teríamos que aprofundar as explicações para isso porque é algo que nos deixa perplexos, pois seria de se esperar justamente que a revolta e a frustração fossem motivo para essa violência. Mas parece que não é assim que funciona.
Esses dados vão de encontro a outros que temos de que a maioria daqueles que foram pegos pela polícia e estão cumprindo pena são os mais perigosos, o que não é verdade; trata-se dos delitos menores e dos criminosos menos ameaçadores, porque eles são mais primários, mais precários. Existem pesquisas feitas dentro do sistema penitenciário que mostram que os de menor escolaridade, os de QI mais rebaixado, são pegos, e por isso seus delitos também são mais primitivos. A própria polícia reconhece isso. "O nosso delinqüente é primitivo", é assim que ela fala. Os delitos não são sofisticados, com alto grau de elaboração, e é bom que o público não saiba disso. Quanto ao crime do colarinho branco, se isso tem um impacto ou não sobre a população, o que observamos é que a maior parte das pessoas não tem acesso às informações a respeito desse tipo de crime, porque ele tende a ser muito mais divulgado na imprensa, e quando sai nos meios eletrônicos não é muito registrado porque não está muito próximo do cotidiano das pessoas.
Voltando à questão da pesquisa, na área da psicologia há muito menos estudos sobre as causas da violência. Se ela é um aprendizado ou não, o que se aceita hoje em dia – e essa é a posição que estou defendendo e que é oficialmente aceita pela American Psychological Association, uma das fontes do mundo no assunto, pelo Center for Disease Control, pela Organização Pan-Americana de Saúde e pela Organização Mundial de Saúde – é que a violência é aprendida. A agressão e a raiva podem ter componentes inatos, mas a violência em si resulta de comportamentos aprendidos. Então as pesquisas tentam entender qual é o impacto desse aprendizado, como ele se dá, quem são os agentes socializadores preferenciais nesse processo. Também se sabe, justamente porque é um aprendizado, que para prevenir a violência é necessário desenvolver um trabalho com as famílias, com as comunidades, com as escolas, que constituem o tripé básico para enfrentar a questão da prevenção da violência.

 

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