Postado em 01/06/1999
Às vésperas dos 500 anos do descobrimento do Brasil, o evento Coração dos Outros resgata a brasilidade de Macunaíma, o herói sem caráter de Mário de Andrade
No ano de 1922 eclodiu em São Paulo um movimento artístico que tinha entre seus principais motivos a redescoberta do Brasil. O Modernismo uniu escritores, artistas plásticos e poetas que esmiuçaram a cultura popular brasileira por meio de seus trabalhos. No centro de toda essa efervescência estava Mário de Andrade. Assim como seus contemporâneos, Mário também tentou compreender o caleidoscópio de culturas regionais e imigrantes que se mesclaram e formaram um só país. E, de fato, descobriu que o Brasil tinha várias caras, ou melhor, nenhum caráter específico. Sintetizou todos esses brasis na figura de um (anti) herói que refletia a miscigenação de várias crenças, costumes e povos. Criou Macunaíma: O Herói Sem Nenhum Caráter.
A saga do menino que nasceu negro, era filho de índios e depois virou branco já inspirou diretores de cinema e teatro. Agora, os elementos utilizados por Mário de Andrade para exprimir o Brasil foram retirados das páginas do livro e dispostos em forma de exposição.
Em cartaz, no Sesc Belenzinho até o dia 11 de julho, o projeto Coração dos Outros - Saravá, Mário de Andrade utilizou a variedade de aspectos da realidade brasileira, ressaltada pelo autor em sua narrativa, como ponto de partida para preencher o espaço do grande galpão da unidade. "Não se trata de recuperar Macunaíma somente como o herói cheio de preguiça", ressalta Ricardo Muniz Fernandes, assessor técnico do Sesc. "Mas como alguém com todas as contradições de um homem qualquer, com alegrias e tristezas, verdades e mentiras". Ricardo explica também que a obra de Mário de Andrade é uma síntese do folclore brasileiro, de uma cultura que não vive sem a imagem. "Foi um desafio muito grande contextualizar Macunaíma", completa Gisela Magalhães, uma das curadoras. "Há pouquíssimos objetos no livro. Porém, uma exposição se faz com espaço e objetos. Por isso, foi preciso dar uma volta muito grande para pensar como poderíamos criar os elementos". Joel Rufino, outro curador, esclarece que, para criar esses elementos, não houve exatamente uma transição da linguagem dos livros. "Simplesmente nos inspiramos na rapsódia de Mário de Andrade e incorporamos na exposição diversos aspectos da obra, como a religiosidade, a sexualidade, a amoralidade, etc." Joel analisa a importância de Macunaíma como "uma das obras que coloca o Brasil na frente do espelho". E das imagens refletidas foi composta Coração dos Outros - Saravá, Mário de Andrade.
Várias Linguagens
Vários artifícios foram utilizados para fazer todo o Brasil caber no Sesc Belenzinho. Quanto mais se percorre a unidade, mais difícil fica definir o formato do evento. Seria simplesmente uma mostra? Não. Afinal, em exposições convencionais não há nem pessoas sussurrando poemas no nosso ouvido, nem atores em cena. Então, seria um espetáculo teatral? Também não, no teatro a platéia raramente divide o cenário com o artista.
O que se conclui é que Coração..., tal como o Brasil e tal como o nosso (anti) herói, não tem caráter. Não tem um caráter, explica-se. Possui-os todos. É exposição, é teatro, é show de música, é miscigenação de diversas culturas traduzida por diversas linguagens.
Logo na entrada do Sesc Belenzinho, na Praça de Eventos, as crianças são as primeiras a entrar no clima de brasilidade ao se depararem com três gigantescos brinquedos em forma de animais: um tatu, um bicho-preguiça que serve de pula-pula e um tamanduá que faz as vezes de escorregador e oca. Há também enormes formigas que, com a comissão de frente, formada por estátuas de personagens brasileiros (Zé Carioca, Nossa Senhora Aparecida, Preto Velho, Lampião e Maria Bonita, entre outros. Todos sob os braços abertos do Cristo Redentor) dão as boas-vindas aos visitantes. Ainda na entrada, a consciência de Macunaíma descansa na ponta de um mastro. Isso porque o nosso herói tinha medo de que, em vingança pelo seu gosto por traseiros de saúva, as formiguinhas se rebelassem e lhe comessem a cabeça.
Dentro da unidade, imagens de São Paulo na época de Mário de Andrade são projetadas em contraponto aos diversos cenários que aludem ao interior do Brasil. Aliás, o contraste é ponto comum em vários ambientes: um teto de igreja católica que abriga imagens de macumba e candomblé; um painel com fotos de operadores da bolsa ao fundo de um monte de cacau; e um shopping cheio de vitrines que expõem o Brasil, o Shopping Vei a Sol. No livro, o astro-rei vira feminino, é "a" Sol, mãe de uma namorada de Macunaíma, por isso, o herói refere-se a ela como a grande mãe. Segundo Gisela Magalhães, a ligação entre essa passagem do livro e o shopping center é o fato de que, hoje, a grande mãe pode ser representada pelos grandes centros de compra: "O shopping nos nutre ou nos frustra. Se consumimos, somos nutridos; se não, saímos frustrados. Por isso, essa ligação com a grande mãe. Aproveitamos e fizemos das vitrines um pouco de cada Brasil. Foi-se inventando coisas". Essas invenções acabaram resultando num grande mosaico com cenas cotidianas de diferentes realidades: a comida do rico e a do pobre, o sapato do operário e o do executivo, exemplares de livros de Machado de Assis e Clarice Lispector e até o pijama de Getúlio Vargas.
Um dos grandes frissons do evento é o Mentira's Bank. A engenhoca parece um caixa eletrônico, só que em vez de sacar dinheiro, o usuário ouve uma grande mentira ou, preferindo, deixa registrada sua própria criação mitômana (como Macunaíma gostaria de ser cliente desse banco!). Na casa do gigante Venceslau Pietro Pietra, outro personagem do livro de Mário de Andrade, o telefone também solta o verbo no ouvido de quem o tira do gancho. Mexa naquele telefone e ouça poucas e boas...
É certo que nosso (anti) herói é a grande estrela do evento, mas, não nos esqueçamos de que sem Mário de Andrade ele não existiria. Por isso, apesar de toda sua esperteza, ele não brilha sozinho no Sesc Belenzinho. Pois, todos os dias, o autor está lá, vestindo pijama e escrevendo dentro de sua banheira. Enquanto isso, os visitantes circulam por sua casa e podem aprender mais sobre sua vida através dos painéis nos quais estão trechos de suas outras obras, assim como a sua biografia.
Brasileiros em Cena
São 50 atores que se revezam, durante todo o dia, na encenação de 52 personagens tipicamente brasileiros. Por isso, não se assuste caso você se depare com o próprio Macunaíma dizendo alguma de suas mentiras ou encostado em algum canto porque está com preguiça de trabalhar. Por lá, também transitam carpideiras (mulheres que acompanham procissões fúnebres, derramando lágrimas por encomenda da família do defunto) em cortejo, a índia Ci, mestres-salas e porta-bandeiras, Bumba-meu-boi e até o Zé Pilintra. "As performances são como um mergulho existencial, de maneira lúdica e poética, no mundo das mais interessantes figuras representantes do pensamento e do cotidiano da cultura brasileira. Integrados ao espaço, os personagens saídos do livro contam as histórias do herói, revelando as diferentes facetas de Macunaíma", declara Beth Lopes, responsável pela direção das intervenções artísticas.
Tem de tudo: o clima de diversidade está em cada um dos cantos da exposição. As performances levam o visitante da passividade de um espectador à interatividade de quem faz parte do show. O público não apenas vê o Brasil, fruto da inspiração da obra de Mário de Andrade, como também participa dele: "As pessoas são atingidas em cheio, envolvem-se com as histórias e contracenam com os personagens. É a situação ideal para quem criou a exposição e para quem a assiste. Os níveis de convenção entre obra de arte e espectador são totalmente rompidos para dar lugar a uma verdadeira interlocução entre as diferentes sensibilidades", observa a diretora.
Além das performances, que acontecem diariamente e durante todo o dia (exceto às segundas-feiras, pois a unidade não funciona nesse dia), Coração... também preparou uma programação especial para os finais de semana, trazendo diversos cantores e grupos teatrais. Já estiveram lá Sandra de Sá, que interpretou sucessos de Tim Maia; o saxofonista Paulo Moura, com um repertório variado de MPB, e a Banda de Pífanos de Caruaru. Aliás, a região Nordeste esteve muito bem representada no Sesc Belenzinho. Além da Banda de Pífanos, o Projeto Malagueta trouxe a música da Paraíba. Também de autoria paraibana, a peça Como Nasce um Cabra da Peste apresentou a história de uma gestação que se passa na planície árida do sertão nordestino.
Ao longo do projeto, 65 cidades do interior de São Paulo abrigarão espetáculos variados, que incluem filmes, dança, performances, shows, entre outras atrações. Algumas dessas programações acontecerão em estações ferroviárias - as mesmas que Mário de Andrade utilizou para conhecer a cultura do estado.
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Vida e Obra
1893: Nascimento de Mário Raul de Moraes Andrade, no dia 9 de outubro, filho de Carlos Augusto de Moraes Andrade e Maria Luísa Leite Moraes Andrade; na rua Aurora, 320, em São Paulo.
1904: Escreve o primeiro poema, cantado com palavras inventadas.
1910: Cursa o primeiro ano na Faculdade de Filosofia e Letras de São Paulo.
1917: Morte do pai. Publica Há Uma Gota de Sangue em Cada Poema, poesia. Primeiro contato com a modernidade na Exposição de Malfatti. Primeira viagem a Minas: encontra o barroco mineiro, visita Alphonsus de Guimarães. Já iniciou sua Marginália.
1918: Escreve contos e poemas. Colabora ocasionalmente em jornais e revistas como crítico de arte e cronista; em A Gazeta, O Echo (São Paulo).
1920: Faz parte do grupo modernista de São Paulo. Colabora em Papel e Tinta (São Paulo), na Revista do Brasil (Rio de Janeiro - até 1926) e na Ilustração Brasileira (Rio de Janeiro - até 1921).
1921: Está presente no lançamento do Modernismo no banquete do Trianon. É apresenado ao público por Oswald de Andrade através do artigo Meu Poeta Futurista. Escreve Mestres do Passado.
1922: Participa da Semana de Arte Moderna em São Paulo, de 13 a 18 de fevereiro, no Teatro Municipal de São Paulo. Faz parte do grupo da revista Klaxon , publicando poemas e críticas de literatura, artes plásticas, música e cinema. Escreve Losângo Cáqui, poesia experimental. Inicia a correspondência com Manuel Bandeira, que dura até o final de sua vida. Publica Paulicéia Desvairada, poesia.
1924: Realiza a histórica "Viagem da Descoberta do Brasil", Semana Santa dos modernistas e seus amigos, visitando as cidades históricas em Minas. Colabora em América Brasileira (contos de Belazarte), Estética e Revista do Brasil (Rio de Janeiro).
1925: Publica A Escrava Que Não é Isaura: discurso sobre algumas tendências da poesia modernista. Adquire a tela de André Lhote, Futebol, através de Tarsila.
1926: Férias em Araraquara, escrevendo Macunaíma. Colabora na Revista de Antropofagia, na Revista do Brasil e em Terra Roxa e Outras Terras.
1927: Publica Amar, Verbo Intransitivo, romance, e Clã do Jabuti, poesia. Realiza a primeira "viagem etnográfica": percorrendo o Amazonas e o Peru, da qual resulta o diário O Turista Aprendiz.
1928: Realiza sua segunda "viagem etnográfica": ao Nordeste do Brasil (dez. 1928 - mar. 1929). Publica Macunaíma, o Herói Sem Nenhum Caráter e Ensaio sobre a Música Brasileira.
1929: "Viagem etnográfica" ao Nordeste, colhendo documentos: música popular e danças dramáticas. Rompimento da amizade com Oswald de Andrade. Publica Compêndio de História da Música.
1930: Defende o nacionalismo musical. Publica Modinhas Imperiais, crítica e antologia, e Remate de Males, poesia.
1935: Publica O Aleijadinho e Álvares de Azevedo.
1938: Publica Namoros com a Medicina, estudos de folclore.
1939: Projeta a criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, SPHAN. Escreve poemas de A Costela do Grão Cão. Publica Samba Rural Paulista, estudo de folclore. Publica A Expressão Musical, nos Estados Unidos.
1941: Volta a viver em São Paulo.
1943: Publica Aspectos da Literatura Brasileira, O Baile das Quatro Artes, crítica, e Os Filhos de Candinha, crônica.
1944: Escreve Lira Paulistana, poesia.
1945: Morre em 25 de fevereiro, de enfarte do miocárdio, em sua casa. É enterrado no Cemitério da Consolação. Publicação de Lira Paulista e Poesias Completas.
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Criador e Criatura
Há algum tempo, um órgão da imprensa perguntou ao poeta e crítico literário Carlos Felipe Moisés quem, na opinião dele, era o escritor do século. Apesar de não simpatizar com esses balanços que acontecem no final de cada ano, década e agora século, respondeu de bate-pronto: "Mário de Andrade". Por quê? "Nosso século 20 literário gira em torno do seu generoso e talentoso experimentalismo, não só estético, mas ético. Além disso, sem teorias nem demagogia, Mário nos ensinou brasilidade, não como um rótulo, mas como um ideal a ser conquistado." Dá para desconfiar qual é a obra do século na opinião do crítico? Abaixo, ele fala sobre Macunaíma:
O Herói Sem Nenhum Caráter
"Macunaíma é uma obra dos anos de 1930, posterior à Semana de Arte Moderna, e dá eco a uma preocupação fundamental daquela geração: a brasilidade, a identidade nacional, a auto-afirmação coletiva. Essa preocupação, entre escritores e artistas, é paralela ao que, na história e na sociologia, vinha sendo feito por Sérgio Buarque de Holanda, com Raízes do Brasil, ou Paulo Prado, com Retrato do Brasil, e também ao desenvolvimento que vinha ocorrendo nas pesquisas folclóricas e antropológicas. Foi como se a geração tomasse a decisão de redescobrir o Brasil. Para a maioria, o país era causa de perplexidade, ninguém sabia dizer direito que país era este. Eles, então, propuseram-se a realizar a sua descoberta, ou redescoberta, e Mário de Andrade estava no centro de tudo isso. Ele não era sociólogo nem antropólogo, mas mergulhou fundo na pesquisa das nossas origens, do folclore, da música, da literatura popular e por aí vai. Macunaíma, entre outras obras suas, estritamente literárias, tem que ver com essa pesquisa. Mário concebia seu trabalho como uma forma de divulgar, tornar mais conhecido o grande acervo da cultura brasileira. De certo modo, toda a obra dele tem essa preocupação. Era um escritor consciente da necessidade de divulgar nossa cultura e buscou fazer isso de todas as formas possíveis, multiplicou-se por várias áreas, além da literatura.
Macunaíma é uma espécie de livro-síntese da obra toda, síntese do que ele pensava do Brasil. É como se ele tivesse resolvido concentrar num livro só, através de uma só narrativa, as múltiplas e contraditórias características do país. Acho que o primeiro passo para entender o livro é este: é uma tentativa artística de definir o Brasil. Macunaíma é só ficção, mas seu intuito é tão ambicioso quanto o de um ensaio interpretativo. Por isso Mário não se baseou apenas na fantasia, na sua capacidade de invenção de situações, enredos e personagens. De algum modo, tudo o que está no livro parte de pesquisas, é aproveitamento de fontes alheias, coletivas. Ele foi, principalmente, ao lendário, ao imaginário primitivo, aos historiadores e cronistas dos séculos 16 e 17. Macunaíma não é um personagem inventado por ele, é uma figura, um nome que aparece em várias lendas, de várias formas.
A classificação que ele próprio dá para a obra é muito esclarecedora, é de uma precisão exemplar: 'rapsódia'. É um termo que vem da nomenclatura musical e designa a recolha e estilização, com vistas à harmonia interna, de uma variedade de manifestações populares, no geral anônimas. Foi o que Mário fez. Reuniu e integrou vários relatos, que estudou Brasil afora, e o resultado é uma 'narrativa rapsódica'.
O subtítulo é mais esclarecedor ainda, com sua dubiedade: 'o herói sem nenhum caráter'. Isso gerou muita polêmica, causou muita discussão. A turma do pessimismo, da catástrofe, da anti-brasilidade, achava que, de acordo com Mário, o brasileiro não tem caráter. Mas, na verdade, o subtítulo é uma grande sacada, e só em parte se refere à questão moral. Macunaíma pode, de fato, ser visto como o anti-herói: é relapso, mentiroso, mulherengo, preguiçoso, inconstante; está sempre aprontando alguma esperteza ou safadeza ou apenas se distraindo. Mas 'caráter' também significa simplesmente 'característica'. Então, outra leitura seria: 'o herói sem nenhuma característica', subentendendo-se aí o complemento 'específico'. Exatamente o contrário de 'sem caráter', ou seja, o herói com tantos caracteres ou características, que não é possível fixar nenhuma. Basta lembrar que Macunaíma é a fusão das três raças: nasce negro, é filho de índios e torna-se branco. Apenas dessa maneira poderia representar a síntese do brasileiro.
Outro aspecto que me parece interessante, na questão da classificação da obra, é que além da afinidade com a rapsódia musical, o livro tem forte parentesco com a epopéia, com a narrativa épica. A característica fundamental da narrativa épica é a presença de um herói, representante não de si mesmo, como indivíduo, mas de todo um povo. A epopéia narra as grandes aventuras, as grandes façanhas desse herói, como forma de exaltar o povo que ele representa. Por isso Macunaíma é 'o coração dos outros': nosso herói não é só ele mesmo, indivíduo, é uma espécie de caixa de ressonância na qual todos se encontram e se reconhecem, dos animais da floresta aos seres e astros da fábula, dos seus irmãos e amigos a todo o povo do país.
A segunda característica é justamente o caráter fabuloso, fantástico, sobrenatural dos acontecimentos narrados. O épico está sempre casado com o mítico. O herói nunca é um ser humano como outro qualquer, porque é dotado de poderes sobrenaturais. Mas o herói está um pouco abaixo dos deuses: supera todos os humanos, em matéria de força e poder, mas não tem o poder absoluto dos deuses. O herói tem as suas limitações, o seu ponto fraco, como o calcanhar de Aquiles.
Em Macunaíma, esse aspecto das limitações, dos pontos fracos, é bem ressaltado, mas ele não deixa de participar do sobrenatural. De repente, resolve dar um 'pulinho' aos Andes e realmente o faz. Para ele, espaço físico e tempo cronológico, história e geografia, não são barreiras, não são obstáculos. Ele convive naturalmente com seres fantásticos, com os astros; tem o dom de transformar objetos ou de transitar por várias épocas, com plena liberdade. Mas, ao mesmo tempo, partilha de um espaço comum aos seres humanos, com suas limitações.
Uma das grandes sacadas de Mário é não reduzir o cenário da sua história ao fantástico ou puramente ficcional. A trama se situa numa espécie de floresta mítica, fora do espaço e do tempo (que, no entanto, nós, brasileiros, reconhecemos como nossa), mas, de repente, os protagonistas vêm parar na cidade de São Paulo, em pleno século 20, como se fosse a coisa mais natural do mundo. Macunaíma e seus irmãos vão caçar no Bosque da Saúde e ele, preguiçoso, ateia fogo na mata, para que toda a bicharada saia correndo. Dá uma paulada numa ratazana qualquer e considera cumprida a sua missão de caçador. Esse é o anti-herói. Mas ele também é herói, no sentido positivo: toda a sua trajetória pode ser descrita como a busca de um ideal supremo, superior, aquilo que está acima de tudo, e que, apesar de todas as aventuras, de todas as idas e vindas, não deixa de ser buscado. No livro, esse ideal é representado pela muiraquitã, a pedra mais-que-preciosa, que ele recupera mas acaba perdendo, por ser meio negligente. Macunaíma, enfim, reúne numa só figura a variedade de contradições que forma o homem brasileiro. Por isso, mais de sessenta anos depois, continua sendo tão atraente, tão rico e estimulante, tão atual."