Postado em 01/06/1999
Durante 350 anos, a Europa se tingiu com o extrato do pau-brasil: o rubro, o encarnado, o carmim, o amarante significavam luxo e poder. O evento Pau-brasil - 500 Anos de Brasilidade conta a saga da árvore que deu nome a este país-continente
Não foi um grande navegador quem descobriu esta terra. Foi o vento. De acordo com a História oficial, Cabral aportou na Bahia por um acaso, guiado pela travessura dos alísios oceânicos que o desviaram do alvo inicial, a rota de Vasco da Gama para as Índias, e apontaram as proas das treze caravelas na direção das latitudes brasileiras.
Na verdade, as praias que receberam a flotilha portuguesa ainda não eram de fato brasileiras. Antes do batismo atual, aos rincões orientais da linha de Tordesilha, os conquistadores denominaram Ilha de Santa Cruz e Terra de Vera Cruz. Só mais tarde, ante a força econômica de uma árvore, o Brasil tornou-se Brasil. É esse vegetal leguminoso, de onde se extrai um pigmento de cor vermelha vivíssima, assemelhado ao fragor da brasa, que o Sesc Interlagos homenageia com o projeto Pau Brasil - 500 Anos de Brasilidade. "O objetivo do evento é envolver as pessoas, principalmente os escolares, na trajetória do pau-brasil. Despertar um sentimento em torno da valorização desse símbolo nacional e da importância da preservação da natureza", explica Maria Alice Oieno de Oliveira, técnica do Sesc Interlagos.
A trajetória do pau-brasil é realmente emblemática. Sua exploração determinou o primeiro ciclo econômico brasileiro. Na Europa renascentista, a tintura emprestada da madeira coloriu os desejos de uma época. Os múltiplos tons de escarlate instigaram os sentimentos mais vaidosos: tingindo a túnica da nobreza, os veludos das damas galantes, as telas de Rembrand e os palácios de Henrique VIII. O poder e o status reluziam o vermelho. O jornalista francês Gilles Lapouge, em recente texto sobre o Brasil, ainda inédito no país, lançou um dilema: "Pode-se dizer que o Brasil foi uma invenção da Renascença da mesma forma que a perspectiva, a circulação do sangue, as guerras de religião, as leis da gravidade [...] Suponha-se que Cabral não tivesse descoberto as florestas de brasa, será que a Renascença teria tido a mesma figura, a mesma beleza, o mesmo gênio?".
A madeira vermelha inebriava a Europa com sua ganância mercantil. Sem cessar, os navios aportavam na costa brasileira e extirpavam do solo os troncos rubicundos. Uma trajetória nociva que permanece atual no desrespeito ecológico e na endêmica falta de consciência cidadã. Recobrar os erros passados é uma forma de evitá-los no presente, por isso a importância de recuperar o percurso do pau-brasil, a partir da costa americana até o fausto europeu. "Para isso, dividimos o projeto em três núcleos. Primeiro, criamos uma ação externa junto a 500 instituições, principalmente escolas. Lá, os monitores levavam mudas, faziam o plantio e explicavam a importância que a árvore teve no passado do país."
Junto às crianças, demonstrou-se como foi hostil a extração da madeira, sem planejamento nem racionalidade. A revelação desse processo danoso serviu para desenvolver nos estudantes a consciência da importância da preservação, mesmo quando caminha lado a lado com o progresso. Ibirapitanga
No segundo núcleo, uma enorme instalação representa a própria orbe. O espaço está decorado com um imenso mapa mundi da maneira como ele era visto no século 16. Mais à frente, uma caravela de 12 metros, rodeada por "monstros marinhos", faz a festa das crianças. Fechando o "mundo", as florestas brasileiras em forma de labirinto e, no meio, ocas onde são ministradas oficinas de artefatos por índios que vivem na região de Parelheiros.
Nesse ambiente estão dispostos vitrines e painéis que descrevem com detalhes o pau-brasil, sua utilização ao longo dos séculos e sua situação atual, além de apresentações com marionetes, que retratam a saga da madeira de tinta.
Ao percorrer a exposição, os visitantes aprendem que o nome científico da árvore é Caesalpinia echinata Lam. e que os nativos a chamavam ibirapitanga, ibirairanga, orabutã, entre outras denominações. Aprendem também que o pau-brasil possui madeira muito dura, nobre, pesada e compacta. Atinge uma altura de 8 a 30 metros, com tronco de 40 a 70 centímetros e sua madeira é uniformemente laranja ou vermelho-alaranjado, tornando-se vermelho-violáceo com reflexo dourado após o corte. E que as flores amarelas exalam um suave perfume. Antes da completa destruição, a área de ocorrência da ibirapitanga (afinal, a árvore era inédita para os europeus) estendia-se do Rio Grande do Norte até São Paulo, na faixa que abrange a floresta pluvial atlântica.
No princípio, o uso da madeira de brasa restringia-se à produção de tintura rubra: o cerne do pau-brasil era uma das únicas fontes disponíveis para o fabrico da cor vermelha, já que até o começo deste século os pigmentos eram oriundos de recursos naturais. Eles só foram substituídos a partir da invenção das fontes sintéticas.
Mas os exploradores europeus logo descobriram outras serventias para aquelas tábuas resistentes. Além de satisfazer desejos consumistas, do pau-brasil construíam-se navios e a mobília da nobreza. Hoje, depois de 350 anos, a madeira é utilizada unicamente para fabricar arcos de violino, devido à sua maleabilidade e à capacidade de condução do som. Cada arco chega a custar cinco mil dólares na Europa e nos EUA. De uma maneira indireta, a excelência da madeira ainda alcança preços exorbitantes no mercado internacional.
Desde o século 9 da nossa era, o valor comercial de árvores da espécie da Caesalpinia é conhecido. Os mercadores medievais buscavam a madeira de brasa nas Índias Orientais e nas ilhas do atual arquipélago da Maláisia. Na língua local eram chamadas de sappan, que também significa "vermelho". Levados à Europa, os lenhos recebiam o nome de brecilis, brezil, brazily ou brasil, derivações do original latino brasilia (vermelho). Outros estudiosos afirmam que o vocábulo é originário do francês, brésil, cuja origem está relacionada à palavra italiana verzino, que batizava a madeira de tinta encarnada.
Seja qual for a origem, a terra recém-descoberta tomou o nome de seu fruto mais importante. Apesar de existirem controvérsias, ou melhor, versões disparatadas (ver box), a historiografia e o senso comum associaram o vergão brasílico da madeira com este nosso país-continente. Durante os 500 anos de vida oficial, o costume tratou de asseverar nossa incerta origem.
A Consciência da Cidadania
A sanha mercantilista arrasou indistintamente grande parte das florestas brasileiras e, de roldão, eliminou quase todo o pau-brasil. Durante o período colonial, a coroa lançou inúmeras normas para regularizar o extrativismo, mas nenhuma delas visava a proteção específica dos bens naturais. Pelo contrário, todas as portarias régias pretenderam afastar inoportunos contrabandistas e garantir o lucro para o Estado. Houve, é certo, arremedos legislativos que nunca obstaram a prática predatória. Só em 1934, um Código Florestal foi outorgado pelo Governo Federal.
Porém, infelizmente, a regulação federal foi intempestiva e não veio acompanhada de um sistema eficiente de fiscalização, que permanece debilitada até nossos dias. A atitude indiscriminada perante a árvore levou a acreditar que ela estaria irremediavelmente extinta. Esse fato foi desmentido, quando dois biólogos encontraram um exemplar selvagem no interior de Pernambuco, em 1928. A partir de meados deste século, alguns órgãos ligados ao meio ambiente lutam para reproduzir as árvores em estufas e plantá-las em locais públicos. O Sesc Interlagos distribui gratuitamente mudas para serem semeadas pela cidade. Afim de garantir o sucesso do projeto, o terceiro núcleo de atividades, a partir da Internet, traz textos informativos sobre o pau-brasil e sobre o contexto que cercava o descobrimento e os primeiros anos de vida culta brasileira. A idéia de fornecer subsídios através de um site evitou que os professores envolvidos no programa se sentissem desamparados com o fim do evento.
Foi desenvolvida uma estrutura paralela para que a brasa da consciência não se apague. Recobrar a exuberância antepassada torna-se impossível, claro. Para se ter uma idéia, a madeira vermelha leva cem anos para atingir seu tamanho definitivo. Mas isso não impede que sejam promovidos esforços para restaurar a grandeza de um símbolo nacional com tanta tradição. O respeito à Caesalpinia vai além de seu significado imediato, ele representa uma tentativa no resgate do sentido mais amplo de cidadania.
Que Nome é Esse?
Há diferentes versões que explicam a origem do nome do nosso país. A mais corrente relaciona Brasil à madeira de cor vermelha que foi extraída copiosamente daqui. Outra explicação remete à mitologia celta-irlandesa. Os povos pagãos que habitavam as atuais ilhas britânicas criam na existência de uma ilha mirífica encravada em algum ponto do Atlântico.
A partir das versões da Navigatio Sancti Brandani, um inram (gênero literário que floresceu na Irlanda) latinizado por volta do século 10, a existência de um sítio bem-aventurado exerceu larga influência fora de suas terras de origem. Dessa data até o século 16, a réplica do Paraíso Terrestre vagueia pelo mapa mundi à medida que os conhecimentos geográficos progridem.
"Em alguns desses casos, transforma-se a ilha de São Brandão em um arquipélago, que pode incluir, como sucede no mapa de André Benincasa, datado de 1467, a do Brasil, ou Braçile, que no século anterior, em 1367, a carta de Pizzigano colocava, por sua vez, com o nome de Ysola de Braçir, entre as chamadas 'Benaventuras'. Essa fantástica ilha do Brasil pertence à antiga tradição célica preservada até o dia de hoje", escreveu Sérgio Buarque de Holanda, em Visão do Paraíso. O nome da fantástica ilha, segundo o autor, aparentemente não tem nada a ver com a denominação dada ao produto tintorial presente nas árvores asiáticas. Os topônimos aproximam-se antes dos vocábulos irlandeses Hy Bressail e O'Brazil, que significam "ilha afortunada". Essas expressões estão presentes no célebre Finnegans Wake, de James Joyce, e aparecem na forma alternativa de O brasil e Obrasil, em vários mapas portugueses até o fim do século 16. Será que a Terra de Vera Cruz foi confundida com o Paraíso Terrestre?