Postado em 01/06/1999
Até Boris Fausto escrever Revolução de 30, no fim dos anos 60, o movimento que arredou paulistas e mineiros do poder tinha uma interpretação equivocada, ou melhor, simplificada. Após a retificação histórica, esse fenômeno crucial no desenvolvimento da vida brasileira tornou-se mais fidedigno. Às vésperas da maior efeméride nacional, a historiografia vê-se rediviva. Atrás do pretexto comemorativo, obras, análises e documentos vêm à luz portando outros viéses sobre fatos pretensamente sedimentados. Sob esse prisma, em entrevista exclusiva, o historiador Boris Fausto discorre sobre o Brasil dos 500 anos e sobre os elementos fundamentais que construíram nossa trajetória ao longo desses séculos. Aos 70 anos, ele é escudado pela formação multidisciplinar. Foi assessor jurídico da reitoria da USP, até se aposentar no final da década passada. Como a carreira legal lhe era insuficiente, dedicou-se a outro curso de graduação e formou-se em História no começo da década de 60. Hoje é um dos intelectuais mais respeitados do país. Escreveu, entre outras obras, Trabalho Urbano e Conflito Social, Crime e Cotidiano e História do Brasil. Em 1997, publicou Negócios e Ócios, que relata memórias de família e da imigração.
Efemérides, como o aniversário do descobrimento do Brasil, estimulam as pessoas a refletir. Nessas ocasiões, também, surgem teorias revisionistas da História. O senhor concorda que nesse momento a História brasileira está sendo repensada?
Eu concordo com você. Não é só a questão do descobrimento, das comemorações oficiais. A revisão da história brasileira já vem de longe. É muito difícil pensar no processo histórico sem pensar uma contínua revisão.
No entanto, essas "novidades" ficam um pouco escondidas do grande público. As pessoas e muitos meios de comunicação insistem no simplismo histórico de todo o processo, algo como "Cabral descobriu o Brasil e só".
Acredito que o problema é mais complicado que isso. No fundo, é um problema de fundo educacional, muito deficiente no seu nível mais baixo. Embora a situação geral tenha melhorado, o que se aprende na escola não propicia nem facilita uma reflexão mais crítica dos problemas da História do Brasil. De modo que, quando se diz que a Revolução de 30 foi a revolução da burguesia industrial é um simplismo. Mas, mesmo esse conhecimento já demonstra um avanço. Se você perguntar para a população brasileira o que foi a Revolução de 30, a imensa maioria não sabe o que ela representou. Nesse aspecto, há um dado inicial para um público mais amplo, que é uma aproximação do passado histórico. Aí sim, para um público mais especializado, letrado, formado nas universidades, há a necessidade de aproximação da controvérsia que existe. E eles estão abertos para esse processo, pois sempre que se publica qualquer coisa que vai por esse caminho, eles recebem muito bem.
Pelos seus artigos recentes, publicados na imprensa, parece-me que o senhor é um otimista.
Há muita gente que diz isso, você não está sozinho. Eu não sou uma pessoa otimista por definição, mas não gosto de gente que não tem humor. O Brasil está resumido numa frase: ele é muito mais complexo do que geralmente se tem idéia. É um país que possui aspectos muito negativos, mas que tem coisas positivas também. Houve, de fato, avanços positivos. Mas as pessoas têm dificuldade em enxergá-los, ou não querem. Por isso, às vezes, eu insisto mais nesse ponto, o que não quer dizer eu seja um eterno otimista, não dá para ser otimista o tempo todo.
Diante dessa opinião geral, como o senhor analisa as perspectivas do Brasil?
Depende do que se chama de boas perspectivas. Se você pegar, em tese, o fato deste país ser cheio de problemas, ser desigual, ter uma vida cotidiana complicada, realmente, a situação torna-se difícil. Agora, se você pensar de uma forma diferente, eu diria que o país tem uma chance. O que aconteceu com a catástrofe anunciada no final do ano passado? Todo mundo acreditou, os otimistas acreditaram que havia uma saída. Depois vimos que foi um total colapso. Ora, mas tudo isso não se confirmou. Pode até ser que a gente tenha uma surpresa e que as coisas piorem de novo. Mas, no momento, as coisas estão melhores do que se imaginava. A partir daí, abrem-se chances de retomar a questão do emprego, do crescimento, etc.
É possível fazer um levantamento e dizer quais foram os grandes equívocos da nossa História? Ou melhor, onde poderia ter-se tomado um rumo e, na verdade, o caminho escolhido foi errado?
Boa pergunta. Muitas vezes se tomou rumos que se revelaram equivocados, simplesmente porque existem resistências tão fortes na sociedade brasileira que fazem com que certos momentos, que poderiam ser cheios de virtude, acabam não se revelando. Por exemplo, a Abolição. Se a Abolição tivesse representado efetivamente um programa não só de abolição mas, além disso, uma perspectiva de inserção dos ex-escravos na sociedade de uma forma menos discriminatória, nós teríamos dado um passo importante. Há um grave problema na História brasileira que subsiste até hoje. Há momentos em que você perguntaria: flexibilizar o câmbio ou não. Eu acho que foi um erro não flexibilizar, ou seja, houve um custo muito grande. Mas, por que isso não foi feito? Havia um impedimento? É só uma opção que pode estar mais certa ou mais errada. Em um processo social como o da Abolição, se você considerar as forças que acabaram a controlando e como foi encaminhada essa questão, perceberá os interesses que existiam e verá que é difícil imaginar uma outra condição conduzindo o fato.
Qual seria o período mais notável da nossa História?
Existe uma coisa curiosa que é o seguinte: o Brasil não parou de crescer desde o fim do século 19 até 1980. Nesse sentido, todo esse período foi de avanço e de mudanças muito grandes.
No seu livro Negócios e Ócios (Cia. das Letras), o senhor refaz a história da sua família, abrangendo o panorama dos imigrantes em geral. Esse novo contingente, somado às origens primeiras do Brasil, criou uma unidade nacional? Em outras palavras, há uma identidade do povo brasileiro?
Quando se fala em identidade, fala-se em algo que tangencia a subjetividade, pelo não-tangível, que foge ao material. Essa percepção do que é ser brasileiro acontece desse modo: se você for ao Amazonas ou ao Rio Grande do Sul, você tem a percepção de ser brasileiro. Qual a diferença entre o amazonense e o gaúcho? Aparentemente, pouca. Primeiro, tem a língua comum, que é muito importante. Depois, existe uma certa percepção comum, um certo modo de ser. E há, sobretudo, uma consciência de que se pertence ao país. Você percebe que não é membro de uma tribo. E esse discurso proferido de uma maneira sofisticada, como um intelectual, ou de uma maneira simples, representa um traço de unidade. Não se pode dizer que esse país está todo conciliado, que isso aqui é uma beleza, que todos estamos juntos, unidos. Não. Mas, de todo modo, existe essa identidade.
E onde a pessoa apreende essa noção?
Você vive isso na família, na escola, no dia-a-dia, sentado na arquibancada de um campo de futebol, você vive isso nesses lugares todos.
O senhor acha que, nesses últimos anos, a historiografia vem captando o interesse que existia nas décadas anteriores pela sociologia e antropologia? Tem aumentado o interesse pela História do país?
O interesse sempre aumentou. Eu acho que isso é muito importante. Se você comparar a história de um país com a história de um indivíduo, pode-se perceber como é importante essa percepção do passado. O que faz um analista com seu paciente senão retomar esse passado? Para que a pessoa possa se reencontrar e entender o que ficou lá atrás. Às vezes, eu converso com motoristas de táxi, me dá um pouco a impressão de que as pessoas estão fazendo um vôo cego e que têm muita curiosidade.
Por que esse interesse pela história se o senhor vem de uma carreira jurídica?
A carreira jurídica sempre foi para mim uma coisa profissional, ou seja, uma maneira central que eu tive de ganhar a vida. Eu não tenho nada contra o Direito, mas também nunca tive encanto por ele. Eu sempre fui muito atraído por Sociologia e História, daí eu comecei a mexer com isso.
Como profissional do ramo, como o senhor enxerga a situação atual do Poder Judiciário?
Indiscutivelmente, o Judiciário, como qualquer outra instituição desse país, deve ser reformulado e tem de se apurar as irregularidades que foram praticadas. É mais um exemplo de como é difícil as coisas caminharem, pois as deficiências são muito grandes. Há certas instituições no país que pensam ser intocáveis. Não acredito que se deva demolir tudo e começar do zero. A vantagem das CPIs não é tanto o que elas apuram e nem a eficácia, mas sim, levantar o problema. Nem o BC, nem o Judiciário etc., por si próprios, movimentar-se-iam para alterar a situação vigente.
Segundo os modelos históricos tradicionais, aprendidos na escola, a Revolução de 30 teria sido a transição do Brasil arcaico para o moderno. Isso é verdade?
Não posso dizer se é ou não verdade. O ano de 1930 é um momento importante dessa passagem. Na época, eu estava interessado em desmentir uma visão classista do processo. A visão classista revelava que havia uma burguesia agrária derrotada pela revolução. Foi essa seqüência que procurei desmontar.
O senhor disse que esse momento pode ser de transição. O Governo atual, o de Fernando Henrique, em particular, diz que destrói o Brasil arcaico em prol de um país moderno. Um dos reflexos disso seria a desnacionalização das nossas empresas e a afinidade com políticas internacionais, como o FMI. Qual seria o limite entre a credibilidade internacional angariada por essa política e a subserviência?
Não é fácil traçar uma linha limite de até onde se pode ir nesse processo de abertura. Eu acho que ele é inevitável. É um dado real do mundo contemporâneo. Não é só no Brasil que isso acontece. Agora, como preservar esse limite? Na medida em que se encontra uma situação de estabilidade na qual se defenda menos o ingresso de determinados capitais. Na medida em que haja alguns limites a importações. Pode existir um programa que barre grandes interesses, mas que funcione como uma espécie de ponto limite da manutenção de uma certa autonomia nacional que hoje ninguém tem.
O senhor é considerado um intelectual de esquerda. Mas, apesar disso, ultimamente não coaduna com a oposição. Por quê?
Não há, além da retórica, qualquer programa claro que se contraponha ao programa atual do governo. A oposição diz que é necessário acabar com a fome, com a miséria etc. Todos nós estamos de acordo. Ninguém é tão mau a ponto de querer a coisa do jeito que está. O problema é saber como operar a realidade. Como compatibilizar estabilidade com crescimento e mais emprego. Para isso, a oposição não tem proposta nenhuma. Nunca teve. No caso atual, a oposição tem apenas proposto a ruptura e a renúncia. As minhas críticas ao governo são muito abrandadas pelo tipo de oposição que nós temos no Brasil.
Eu gostaria de falar um pouco da cidade de São Paulo. O senhor tem uma história muito íntima com a cidade e aprecia as coisas que restaram mais ou menos intactas de épocas passadas. Qual o sentimento que a situação atual de São Paulo causa no senhor?
Veja como eu posso ser pessimista: no tocante a São Paulo, sou muito pessimista. A situação atual me causa uma impressão muito difícil. Por outro lado, venho de uma outra época,, e meus lamentos podem soar um pouco saudosistas. Antigamente, a cidade tinha um outro perfil, um outro tamanho, uma outra comunicação. É muito difícil viver numa cidade como São Paulo.
Qual o papel que os imigrantes tiveram na história da construção de São Paulo e, por conseqüência, na construção do Brasil atual?
Em São Paulo, eles tiveram um impacto enorme. Até o começo dos anos 30, quando houve um afluxo muito grande das imigrações internas, foi um momento de crescimento muito grande.
Por que nós, os brasileiros, somos tão inertes a comemorações cívicas?
Eu acho que há um lado negativo e um positivo nisso: o positivo é que brasileiro desconfia de comemoração oficial, chapa branca. Porém, pelo fato de as pessoas não terem um conhecimento maior sobre a História, as datas não são algo que se viva mais de perto. Essas comemorações acabam ficando um pouco vazias. O 7 de Setembro já foi uma comemoração, digamos, popular. As pessoas iam para as ruas, levavam bandeirinhas e tal. O Descobrimento, por exemplo, é significativo, mas está um pouco distante das pessoas. Já para os portugueses, esse fato é muito importante, pois representa um marco na expansão portuguesa, coisa que eles levam muito a sério.
Como o senhor vê pessoalmente essas comemorações?
Para o meu gosto, eu acho que deveria haver "mais seriedade". Dentro do meu recorte, que não é do espetáculo, eu ficaria mais contente com o lançamento de trabalhos, livros e documentos. Eu não acho que está errado. Certamente um teatrólogo está mais interessado na montagem de uma peça, mas não me atrai.