Postado em 01/10/2008
Celebrado autor da literatura brasileira contemporânea, Waly Salomão buscou integrar o ímpeto libertário de sua poesia a formas variadas de expressão
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Herança dos escritos de Oswald de Andrade, pai da antropofagia brasileira, gerada durante o movimento modernista, no final da década de 1920. Na fonte, também beberam 40 anos depois Caetano Veloso, Gilberto Gil, Hélio Oiticica e Torquato Neto – todos tropicalistas, todos amigos de Waly.
O poeta, nascido em 3 de setembro de 1943, na cidade de Jequié, interior da Bahia, descobriu a paixão pela literatura na infância, influenciado pela família. “Desde que me entendo por gente, o livro tem uma posição central, como se fosse um ícone dentro de casa”, declarou em entrevista ao Jornal do Brasil (JB), do Rio de Janeiro, em 2003. “Lembro-me de minha mãe discutindo com meus irmãos e irmãs os dois volumes (...) de Guerra e Paz, de Tolstoi.” Freqüentador assíduo da biblioteca da cidade, tinha interesse tão grande pelas letras que, na escola primária, pediu à mãe um bolo de aniversário em forma de livro. Na adolescência, deu seqüência aos estudos em Salvador – no Colégio Estadual da Bahia –, e logo tomou contato com a efervescência cultural da capital baiana. Foi lá que conheceu Gilberto Gil e também o cineasta Glauber Rocha. Ingressou em direito na Universidade Federal da Bahia e não demorou muito para ser visto “articulando” no Centro Popular de Cultura (CPC) e na militância política. Advogado de formação, mas nunca de profissão, Waly foi morar no Rio de Janeiro.
Lá “pintou” a forte amizade com Caetano, com Jards Macalé, Oiticica, Torquato Neto e outras figuras que fizeram daquela época um capítulo especial na história das artes no Brasil. Na mesma época, década de 1960, iniciou como redator de publicações e colaborador de alguns jornais. Naqueles anos, em todos os trabalhos, Waly conseguia assinar com o pseudônimo Sailormoon (marinheiro da lua).
Me Segura Qu’eu Vou Dar um Troço
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Em 1970, o chumbo da ditadura militar pesava sobre o país. Sailormoon foi parado em uma blitz policial na Avenida São Luís, Centro de São Paulo, e não deu outra: cadeia. Motivo: portava um cigarro de maconha. Foram 18 dias no Carandiru que o impeliram a erigir sua obra. “Ali [na cadeia] representou um momento de deflagração da aventura de escrever”, afirmou o autor ainda na entrevista ao JB. “Foi ali que eu me concentrei e me liberei como escritor.” A prisão o libertou. Assim era o poeta. De volta à liberdade de fato, o baiano começou a investir no talento para a literatura, mostrando seus textos a personalidades do meio cultural da época. “O feedback era nenhum”, disse no documentário Pan-Cinema Permanente (finalizado em 2007), de Carlos Nader (veja boxe Onde está Waly?). Mesmo com um início não muito animador, as tentativas prosseguiram. No Rio de Janeiro, Waly mostrou seu trabalho para Hélio Oiticica. “Certo tempo depois, ele já estava diagramando [o texto] Apontamentos do Pav 2”, explicou o poeta no filme de Nader. “Aquilo me serviu como impulso a fazer outros textos.” Apontamentos, um daqueles feitos na cadeia, juntou-se a outros originados da mesma experiência, resultando no primeiro livro – todo diagramado por Oiticica: Me Segura Qu’eu Vou Dar um Troço, lançado em 1972 pela José Álvaro Editora (a Aeroplano tem uma edição de 2004). A obra é considerada hoje um dos clássicos da poesia contemporânea brasileira.
Mergulho nas cançõesAo mesmo tempo em que investia no primeiro livro, Waly enveredou por outros caminhos da arte – o que faz dele um “artista multimídia”, no jargão atual. “Ele fazia uma poesia entremeada com várias outras linguagens”, explica Solange Farkas, amiga do poeta, curadora e diretora da Associação Cultural Videobrasil. “Daí, a aproximação com as artes visuais, o cinema, os trabalhos na música popular brasileira.”
O namoro com a música se manifestou de várias formas. Em 1972, Waly aparecia como diretor de espetáculos no célebre FA-TAL, Gal a Todo Vapor, de Gal Costa. A estréia ocorreu em novembro daquele ano no Rio de Janeiro e rendeu um álbum homônimo, lançado no ano seguinte. O poeta trabalhou com a cantora também no show Índia, de 1973, e seguiu dirigindo espetáculos. Entre os “dirigidos”, ecletismo: Roberta Miranda, Marina Lima, Maria Bethânia e Cássia Eller.
Foi também produtor de discos. Com a roqueira Cássia Eller, criou Veneno Antimonotonia (1997), com a parceira Gal Costa foram Bem-Bom (1985) e Gal Plural (1989). Entrou no estúdio ainda com João Bosco – Zona de Fronteira (1991) – e com Jards Macalé, para realizar Aprender a Nadar (1974).
O artista agregou a literatura à composição de várias letras. A famosa Vapor Barato (1968), conhecida na interpretação de Gal Gosta, é dele em parceria com Macalé. Nos anos de 1990, a canção ganhou regravações, como a do grupo O Rappa, e homenagens, como a que o cantor e compositor Zeca Baleiro fez em Flor da Pele. “[Vapor Barato] Foi o grande hino hippie brasileiro”, definiu o letrista Waly no Jornal do Commercio, em 1999. Versos seus também viraram música. É o caso de Mel e Talismã, com Caetano Veloso, Anjo Exterminador e Mal Secreto, com Macalé, e Assaltaram a Gramática, com os Paralamas do Sucesso em parceria com Lulu Santos. A incursão pela sétima arte se deu com a autoria da trilha do filme Quilombo (1984), de Cacá Diegues.
Cinema e política
No campo das artes visuais, realizou trabalhos de videomaker com o cineasta Carlos Nader – entre eles, a performance Bestiário Masculino-Feminino, realizada em 1998 no 12º Festival Internacional de Arte Eletrônica Videobrasil, em São Paulo. A dupla produziu ainda a série Babilaques [palavra que tem o mesmo significado que badulaque, o termo foi descoberto por Waly na cadeia em 1970], formada por poemas visuais, em cartaz no Sesc Pinheiros (veja boxe Onde está Waly?). Na frente das câmeras, como ator, Waly fez o papel do poeta Gregório de Mattos no filme homônimo, da diretora Ana Carolina, lançado em 2003.
A política cultural foi outro interesse do poeta. Entre junho de 1988 e maio de 1989, trabalhou como administrador da Fundação Gregório de Mattos, órgão cultural ligado à prefeitura de Salvador, e coordenador do carnaval da Bahia. Anos mais tarde, tornou-se diretor de comunicação da ONG AfroReggae, da favela de Vigário Geral, no Rio de Janeiro. Em janeiro de 2003, a convite de seu amigo, e já ministro da Cultura, Gilberto Gil, assumiu o cargo de secretário nacional do livro e da leitura. No entanto, desse posto Waly não conseguiu alçar vôo para um próximo – que certamente viria. Na manhã do dia 5 de maio de 2003, o artista faleceu no Rio de Janeiro em virtude de um câncer no intestino. Deixou a esposa, Marta, e dois filhos, Khalid e Omar – este, também poeta. Em 2004, a Editora Rocco lançou o livro Pescados Vivos, escrito dois anos antes, e relançou algumas outras obras – além da já citada Me Segura Qu’eu Vou Dar um Troço, estão disponíveis também Algaravias e Qual É o Parangolé?, ambas de 1996. Outra homenagem póstuma foi feita pelo amigo e parceiro Jards Macalé, que gravou Real Grandeza (Biscoito Fino, 2005), álbum com regravações de músicas feitas pela dupla. Entre elas, Mal Secreto, Negra Melodia e, claro, Vapor Barato.
Waly Salomão escreveu oito livros em vida, sem contar as inúmeras colaborações e compilações das quais participou. Depois da estréia com Me Segura Qu’eu Vou Dar um Troço (1972), vieram Gigolô de Bibelôs (1983) e Armarinho de Miudezas (1993). Em 1996, o poeta lançou Algaravias: Câmara de Ecos – Prêmio Jabuti de poesia – e Qual é o Parangolé?, biografia do artista plástico e amigo Hélio Oiticica. Dois anos depois, publicou Lábia, e em seguida Tarifa de Embarque (2000) e O Mel do Melhor (2001). Boa parte das obras mais antigas ganhou edições novinhas em folha. Confira:
• Me Segura Qu’eu Vou Dar um Troço
(Aeroplano, 2004)
• Gigolô de Bibelôs (Rocco, 2008)
• Armarinho de Miudezas (Rocco, 2005)
• Algaravias (Rocco, 2007)
• Hélio Oiticica – Qual é o Parangolé?
(Rocco, 2004)
Durante o mês de setembro, em que Waly Salomão completaria 65 anos de idade, a obra do artista pôde ser conhecida e relembrada por meio de uma grade especial nas unidades do Sesc São Paulo. A unidade Pinheiros montou a exposição Babilaques: Alguns Cristais Clivados (fotos), composta de 22 séries de slides, totalizando cerca de 90 imagens, mais os cadernos utilizados por Waly para a confecção de cada poema visual exposto. Idealizado por ele para ser exibido nos circuitos nacionais de arte, o material permaneceu inédito até o ano passado, quando foi exposto no Espaço Cultural Oi Futuro, no Rio de Janeiro, por iniciativa de Omar Salomão, assistente de curadoria e filho do poeta. “A produção de poemas visuais de Waly circulou muito pouco no meio das artes plásticas”, explica o curador da mostra, Luciano Figueiredo, um dos muitos parceiros artísticos de Waly. “Ele não estava interessado em ser visto como artista plástico, mas sua expressão representa uma grande contribuição para a produção visual brasileira.” Babilaques segue em cartaz até o dia 21 deste mês. No mesmo local, em setembro, Tom Zé declamou, no dia 24, poemas do conterrâneo em uma roda de leitura e, nos dias 27 e 28, Jards Macalé apresentou o show Real Grandeza, com participações especiais de Adriana Calcanhoto e Luiz Melodia.
Na unidade provisória Avenida Paulista, a parceria entre o Sesc e a Associação Cultural Videobrasil resultou em uma edição especial dos mensais Encontros Sesc Videobrasil, com palestras e vídeos sobre o artista. A programação da unidade, iniciada em agosto, abriu com um bate-papo com o cineasta Carlos Nader, amigo de Waly e autor do filme Pan-Cinema Permanente, vencedor do 13º Festival Internacional de Documentários É Tudo Verdade e previsto para entrar em cartaz no circuito paulistano em 7 de novembro.