Fechar X

Entrevista

Postado em 07/02/2008

REVISTA E - MARÇO 2008



O sambista analisa o atual momento da música brasileira e explica por que acredita que o racismo está diminuindo
fotos: Adriana Vichi


Martinho José Ferreira, o inconfundível Martinho da Vila, nasceu em 12 de fevereiro de 1938, na cidade de Duas Barras, no estado do Rio de Janeiro, mas aos 4 anos se mudou para a capital. Anos mais tarde, quando já fazia sucesso, voltou à cidade natal para ser homenageado pela prefeitura e descobriu que a fazenda na qual os pais haviam trabalhado como lavradores estava à venda. Não teve dúvidas, comprou-a. Hoje o local chama-se Meu Off-Rio e é o refúgio do sambista e também escritor. A carreira artística teve início no Terceiro Festival de Música Popular da TV Record, em 1967, no qual concorreu com Menina Moça, mas Martinho prefere contar a partir do ano em que gravou o primeiro disco, 1969. O fato é que há quase 40 anos o compositor vem sendo um dos grandes defensores do samba. "Houve um período em que o samba estava alijado, e quando você está alijado você é mais combativo. E tem que ser", afirma o entrevistado desta edição com a calma e o sorriso largo que se tornaram sua marca registrada. Na conversa, Martinho falou ainda de racismo, da relação com as gravadoras e dos problemas que teve com a censura durante a ditadura militar. A seguir, trechos.



Você escreve poesia e livros infantis. Qual figura surgiu primeiro?

Eu não posso me classificar como um poeta "muito assim", porque alguns críticos dizem que existe uma diferença grande entre poesia e letra de música.


Então vamos dizer que você é um poeta da música popular.

Foi o compositor que surgiu primeiro. Muito primeiro. Se bem que... pensando bem, não. Porque quando eu era miudinho, eu gostava de escrever textinhos, treinava redação. Então eu estava sempre treinando fazer uma redação e outra, e desenvolver um tema, tentar adivinhar o que poderia cair como redação.

Então já escrevia antes. E também comecei logo a fazer versinhos. Muitas crianças fazem versinhos infantis, bobinhos. Depois fui desenvolvendo, fazia brincadeiras com o nome das pessoas, dos coleguinhas de turma. Pensando bem, o poeta começou primeiro.


Você está com sete livros publicados. Como você se organiza? Como é o seu processo de trabalho?

Para eu fazer tanto uma música como um livro, o básico é surgir um tema que me motive a escrever. Preciso de uma motivação. Tendo a idéia básica, começo a me organizar, faço um texto com aquela idéia, pensando no início e no final. Isso é o básico.


Como um esboço.

É, um rascunhão. Depois aquilo vai mudando e vou escrevendo. Agora, para se organizar para escrever ou para ler, precisa de um pouco de disciplina. Muita gente nunca terminou um livro, na verdade. Porque ele lê, deixa para lá, vai ler na outra semana, depois tem outras coisas, acaba que para retomar ele tem que recomeçar a leitura. Então quem quer ler tem que ter uma disciplina: vou ler este livro.

Tem que ler todo dia, nem que seja uma página. Quando alguém termina de ler um livro, mesmo para aqueles que têm o hábito da leitura, é uma vitória. Tem uma sensação de vitória, terminei uma coisa. Tudo que você acaba dá uma sensação de vitória. Tudo que se conclui dá uma satisfação. É legal. Precisa fazer uma certa disciplina, ler uma página por dia, um pouquinho de noite. Escrever é a mesma coisa. Muitos colegas escritores têm seis, oito, dez livros começados e não terminados, porque têm uma idéia, depois têm outra, depois param. Se você pára de escrever uma coisa que começou hoje, daqui a uns meses você já está pensando diferente.


É como um relacionamento, tem que cultivar...

Tem que cultivar, tem que manter. Você não pode ter uma namorada e ficar um mês sem falar com ela. Mesmo se estiver viajando, telefona, manda um e-mail...


Quando surge uma idéia, ela geralmente vira música ou livro?

Mais ou menos.


Não é isso?

Eu surgi em 1967, no Festival da Record. Foi nos festivais que surgiu uma porção de gente.


Mas você só começou a gravar em 1969, não?

Eu considero o início da minha carreira em 1969 porque aqueles dois anos eu estava tirando uma onda de artista.


Desses 39 anos, como modificou a sua maneira de fazer música?


Não mudou. Sou que nem antigamente. Surge uma idéia... Você talvez já tenha acordado ou tomado banho assoviando uma coisa, cantarolando um negócio que não existe. Um negócio qualquer que dá vontade de cantar e você canta qualquer coisa. Cantarolar. Só que quem é compositor diz: "Opa, isso dá para desenvolver". Você começa a desenvolver esse canto. É assim que surgem as coisas.


No seu caso, música e letra sempre saem juntas?

O compositor, de uma maneira geral, faz letra e música juntas. Depois de um tempo, com a prática, o desenvolvimento da atividade, a gente consegue fazer coisas separadas. Eu já fiz várias melodias para outras pessoas botarem letras, alguns parceiros. Já fiz só letra, como se estivesse fazendo uma poesia, e dei a alguém pra musicar. Mas na maioria das vezes, quase sempre, as duas coisas vêm mais ou menos juntas: letra e música. Um som que vem na cabeça, eu começo a cantarolar, já falando alguma coisa.


É natural. Tenho amigos músicos que com o passar do tempo dizem compor menos. Como é para você a freqüência?

Componho menos livremente. No início da carreira de um compositor, ele vai fazendo porque gosta de escrever, gosta de criar. Não faz aquilo como um compromisso. Isso se faz hoje muito menos, porque a gente tem muita atividade. Sempre que tenho de fazer alguma coisa, já me ocorre que alguém pediu uma música, a toda hora me pedem, outros dizem que querem fazer uma composição comigo, têm uma letra para eu botar música... Essas coisas. A gente trabalha mais sob pressão depois de um tempo, depois de virar profissional da música.

Assim como o escritor também. Eu escrevo porque escrevo, não sou escritor. Escritor é aquele que vive de literatura. Então ele é contratado pelas editoras, as editoras encomendam livros a eles. Esse é um escritor. Eu escrevo porque quero escrever. É diferente. Mas hoje dificilmente eu faço uma música por fazer.


Sempre está pensando em alguém...

É. Muita gente já pediu: "Me faz uma música?". E eu: "Caramba, fulano de tal me pediu uma música". Alguns colegas ficam chateados comigo porque pensam que eu não quis dar música para eles gravarem, que eu não quis fazer. Mas é difícil, não é assim. E meu processo em tudo é muito lento. Que nem o "devagar, devagarinho" da minha música.


Você falou uma coisa importante: essa questão de se transformar em um profissional. Até que ponto as obrigatoriedades de contrato, entre outras, acabam comprometendo a criatividade ou a espontaneidade? Por exemplo, ter que gravar um disco por ano.

É mais fácil um artista gravar um disco por ano do que passar um ano sem gravar. Porque a gente está sempre querendo fazer coisas, sempre com idéias. Por exemplo, neste período todo, de vez em quando, eu falava: "Vou passar uns dois anos aí sem gravar". Aí surge a idéia do disco. Eu fazia contrato com as gravadoras por obra e não por ano. Contrato de três discos. Podia ser agora, podia ser daqui a dez anos.

Mas eu acabava fazendo todo ano. Porque surge uma idéia e fica difícil não querer fazer uma coisa. É isso. A não ser quando há um sucesso demasiado grande e o artista começa a viajar e fazer muitos shows, coisa e tal, aí dá para segurar um pouco. Mas, mesmo assim, chega uma hora, dá vontade de fazer um outro lance.


Você sente falta?

O criador está sempre querendo criar. O cara que começa a escrever está sempre querendo escrever. O cara que pinta está sempre querendo pintar. Então, é uma coisa que não pára. Eu, por exemplo, tenho que fazer força, senão acabo fazendo música todo dia. Escrevendo todo dia.


Você teve vários problemas com a censura, não?

Todo mundo teve.


Mas há um caso seu interessante...

Havia uns autores com a bandeira de lutar contra a censura. Eu não tinha essa bandeira. Não preciso ficar entrando em todas as frentes, combatendo em todos os lados. É a minha forma de fazer. Quando uma música minha era censurada, ia lá na censura e dizia: "Preciso conversar porque minha música foi censurada".

Sempre fui muito simpático, e, mesmo as pessoas que estavam lá [os censores], muitas eram fãs, muitas gostavam. Eu ia lá e acho que era uma coisa que nenhum artista fazia. Eu ia lá na boa. "Quem é o chefe da censura?" Aí que dizia: "Poxa, censurar uma composição minha? Isso não é possível, vai estragar meu disco". E os caras falavam: "Ô, Martinho, não pode isso aqui....", mas consegui liberar algumas coisas..


É engraçado porque você nunca teve uma posição de querer fazer música de protesto.

Todo mundo que fala da censura e pensa que era só pelo caminho político, e não era. Todo mundo que criou naquele período sofreu alguma censura. Creio que sim. Todo mundo. Mesmo pessoas não engajadas.


Você, de certa maneira, esteve à frente de uma questão sobre o samba mais autêntico, uma ligação com a criação do samba. Isso, hoje em dia, tem valia?

Não. Quando fiz é porque havia uma invasão de música americana no Brasil. Música estrangeira aqui era o que tocava, música brasileira quase não tocava no rádio. Essas músicas black que hoje se fazem aí, de que eu sou a favor, eram uma enxurrada. Até os blacks da época ficaram aborrecidos comigo.

Alguns ficaram um pouco bravos. Diziam: "Martinho, é tudo música negra". Mas era por causa da forma e do excesso. Hoje já não. Hoje está tudo mais legal. Hoje se ouve de tudo no rádio. Era um período em que o samba estava alijado, e quando você está alijado você é mais combativo. E tem que ser.


Quando o samba representado por você e por outros artistas, como o Paulinho da Viola - o dito samba da periferia, do morro -, ainda não tinha se firmado, havia um preconceito em relação ao gênero e aos sambistas. Depois surgiu o interesse de uma classe média branca. O que você acha disso?

Hoje os preconceitos estão todos diminuindo. Os preconceitos de maneira geral. O tempo vai, a informação vai, a evolução das pessoas, a instrução maior. Isso vai diminuindo o preconceito, vai melhorando a cabeça das pessoas. Mas o preconceito era muito grande no passado. Contra tudo e contra o samba também. Os intelectuais eram preconceituosos. Alguns amantes da música erudita abominavam o folclore, o samba, qualquer coisa popular, por pura falta de informação.

A ópera surgiu de temas populares. Alguns intelectuais gostavam de alguns sambistas, mas no seu gueto. Por exemplo, costumo citar um fato que me acontecia algumas vezes: a Nara Leão me chamava para fazer um show na Sucata - uma boate da elite e da intelectualidade carioca -, e muita gente não ia porque eu estava no show. Porque eu era de outra área. Eu era da Zona Norte e a Sucata ficava na Zona Sul. Depois eu fiz o show lá sozinho, sem a Nara, e um crítico escreveu um texto pedindo desculpas e me chamou e disse: "Eu era tão burro, tão preconceituoso". Não vou falar quem foi porque ele já morreu. Além disso, ele ficou meu amigo.


Havia o preconceito com o samba por ser um gênero feito por negros e por ser popular, não?

O samba era uma atividade marginal. Era proibido fazer samba. A polícia proibia qualquer ajuntamento de samba. Se o cara fizesse uma roda de samba em casa, a polícia ia lá e acabava com ela. O samba era perseguido. Depois ele foi cativando, foi ganhando adeptos... Surgiram os primeiros blocos que saíram pelas ruas, já conseguiam fazer isso graças a alguns jornalistas, que escreviam sobre aquilo. E no início era uma coisa feita por negros. Hoje já não é mais. A escola de samba ajudou muito a quebrar os preconceitos. Recebeu muito bem as pessoas que iam lá. E todos os que foram se apaixonaram. Você tem gente de todas as classes sociais dentro de uma escola de samba.


Você sempre foi um dos artistas mais ligados a essa questão de afirmação do negro, da cultura afro-brasileira. Você falou que os preconceitos diminuíram. Mas como você vê o preconceito contra o negro?

Já avançou bastante. Tanto é que os primeiros ativistas dos segmentos do movimento negro eram muito malvistos, e a atividade era reclamar. O movimento negro no início reclamava que a gente precisava disso e daquilo. Depois foi o período de contestação, o cara já brigava mais. Era Abdias do Nascimento [militante do movimento negro e ex-político]. Depois passou uma época da afirmação da negritude. Essa época é quando eu participei. Afirmação dos valores, da música, da cultura, da história.

Fiz um concerto chamado Concerto Negro, que falava do negro na música erudita. Essa foi a minha participação.


Mas você acha que o racismo diminuiu mesmo no Brasil ou só se atenuou, ficou mais ladino?

Diminuiu sensivelmente. O racismo existe no mundo inteiro, não existe sociedade que não tenha. Racismo é uma doença. Curável, mas é uma doença. Não gosto de falar isso, mas é verdade: aquele cara decadente que era de uma casta na qual a família dominava, a família mandava, e que hoje está decadente, ele é racista. Ele continua racista. Só não fala hoje porque ser racista é até crime. Mas, entre os mais velhos e decadentes, muitos são racistas. Não estou dizendo todos. Porque não estão acostumados a ter negros morando no condomínio de luxo deles. No prédio deles, no clube. Foram formados daquela maneira, nem culpa têm. Além disso, ainda estão decadentes, são uns coitados. Esses coitados ainda são racistas.


Como você vê a questão de cotas raciais nas universidades?

Às vezes eu até brinco que sou contra as cotas na universidade. Mas sou contra serem só na universidade. Tinha que ser geral. A começar pelos poderes. Deveria haver ministros [negros], pela primeira vez nós tivemos aí no governo Lula. Primeira vez na história que nós tivemos um número de ministros assim, antes nunca tivemos. Os governadores, no secretariado, não têm negros. Não têm secretários do primeiro escalão. Os partidos deviam ser obrigados a ter um número de deputados negros, a não ser que não tivessem candidatos. Ou seja, as cotas tinham que ser gerais. Elas começaram na universidade, causaram um espanto. Porque sempre tem gente nas universidades com a cabeça à frente, é gente que estuda mais, pensa mais. Começou por ali, e causou e ainda causa hoje um grande problema. A maioria das pessoas que são contra ainda têm um pouco de racismo no seu subconsciente e não sabem. Nessa hora, ele aflora um pouco.


Você fez aquele livro no qual você encarna a sua mãe. Como foi escrever alguma coisa com a cabeça de uma mulher?

Isso é difícil. Muito difícil. Tive essa idéia porque tenho uma filha de 8 anos, Alegria. A Alegria não conheceu a avó. A minha mãe era uma pessoa admirável, eu achava que todo mundo devia ter conhecido ela. Todas as pessoas que conheceram minha mãe e que conviveram com ela ficaram encantadas. Ela era de uma sabedoria incrível, um analfabetismo sábio. Incrível. E eu falei: "Poxa, a Alegria não vai ter conhecimento da minha mãe, daqui a pouco passa o tempo e ninguém fala mais nela". A gente não se lembra dos avós, bisavós, não sabe quem foram, como foram.

A maioria dos brasileiros não sabe. Tive a idéia de escrever a história da família. Escrevi a história da família com a minha mãe contando, como se fosse ela falando. É legal porque muitas pessoas falaram: "Martinho, é mesmo, a gente precisa escrever sobre a família porque a gente acaba não sabendo nada". A maioria não sabe nada sobre a própria família, não tem uma memória importante. Aquele livro foi muito difícil porque eu tinha de ter um compromisso com a verdade. Estou falando da minha mãe, sou a minha mãe falando. Não podia pegar uma mentira, uma fantasia demasiada. O mais difícil foi pesquisar, ter que falar com as minhas irmãs. Até fatos eu tinha que perguntar para um ou outro porque de alguns eu já tinha me esquecido.

A pessoa falar como uma mulher é difícil. Como no Vermelho 17 [sétimo livro de Martinho, lançado em 2007, pela ZFM Editora, é uma ficção com referências autobiográficas que conta a vida e as preocupações de Vermelho, um adolescente carioca de 17 anos], falar como um jovem é difícil. O mais difícil de fazer em literatura é isso mesmo. E você se apaixona pelos personagens. Tem um cara a quem você quer dar um fim terrível, mas você vai escrevendo, é você. Nas novelas, o cara escreve de acordo com o público. "Esse cara vai ser o marginal que vai morrer." O ator ganha prestígio, o cara vai mudando a personalidade dele.


Você tem uma ligação com outros países de língua portuguesa. Como começou isso?

Foi das viagens. É um público grande em Angola, Moçambique, em Cabo Verde, Portugal. Eu me senti na obrigação de passar informações desses países para nós, que sabemos pouco sobre eles. Muita gente não sabe de Guiné-Bissau, Cabo Verde, se é África, se não é, se fala português, se não fala. Tem gente que me pergunta na rua: "Você vai para onde?" "Eu vou para Moçambique." "Lá fala português, né?" Então tem isso, a informação não é muita. E eu gosto desses países, das coisas, tudo por que passo gosto de compartillhar, gosto de dividir as alegrias. O CD Lusofonia é isso. •


Escolha uma rede social

  • E-mail
  • Facebook
  • Twitter

adicionar Separe os e-mails com vírgula (,).

    Você tem 400 caracteres. (Limite: 400)