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À moda antiga

Postado em 01/05/1999

Meneghetti, um dos maiores criminosos que já agiram no país, não recorria à violência (matéria publicada na edição 318, de novembro/dezembro de 1996)

MIGUEL ROBERTO NÍTOLO

Uma pesquisa recente do Instituto Gallup revelou que 63% dos habitantes de São Paulo gostariam de abandonar a cidade. Incomodadas com a falta de segurança, a maioria das pessoas consultadas disseram que sonham com a vida em lugares menores, bem longe da capital. Não é para menos. Hoje em dia, a violência nos grandes centros urbanos atingiu tal ponto que mortes resultantes de latrocínio (roubo ou extorsão violenta, à mão armada) podem ser causadas por um relógio ou um simples par de tênis. O pior é que esse tipo de notícia já se tornou tão cotidiano que não causa mais espanto. Dados da Secretaria da Segurança Pública paulista dão conta de que no período de um ano entre agosto de 95 e julho de 96, só na Grande São Paulo, foram registradas 358 mortes por latrocínio. Quase uma por dia.

Esse estado de coisas torna inevitável lembrar que um dos maiores ladrões de todos os tempos, que passou parte de seus 98 anos de vida trancafiado no xadrez, nunca feriu as pessoas que roubou, segundo garantem os mais velhos e informa a parca literatura disponível. Na verdade, não via razão para isso. Ele era astuto, isso sim, e por essa razão a polícia o odiava. E não media esforços para tê-lo sempre atrás das grades.

Gino Amleto Meneghetti era o nome do "bom ladrão", conforme rótulo criado por alguns jornais das primeiras décadas do século. Apesar de desconhecido de parcela ponderável da população, ele continua ocupando certamente o primeiro lugar no ranking dos grandes gatunos historiados pela crônica policial brasileira. "Comecei roubando frutas quando garoto", contou ele à finada revista "Cruzeiro", em 1952, então aos 74 anos de idade. "Prenderam-me e passei alguns meses na cadeia de Pisa, na Itália. Ao ser posto em liberdade, tive que fazer do roubo a minha profissão."

Gato dos telhados

A professora Célia de Bernardi, em sua tese de mestrado "O lendário Meneghetti: imprensa, memória e poder", registra os vários apelidos que Meneghetti recebeu da imprensa: ora era chamado de "o maior gatuno da América Latina", ora de "o homem de borracha", ora de "o gato dos telhados", pela facilidade com que se locomovia sobre a cobertura das residências para fugir dos cercos da polícia.

O delinqüente de Pisa tocou o solo brasileiro em 1913, com 35 anos de idade, e montou residência na capital paulista. Já era dono de uma extensa ficha policial e seu nome constava dos arquivos da Interpol. Em 1914, a polícia de São Paulo recebeu das autoridades italianas um comunicado que recomendava a captura de um sujeito chamado Amleto Meneghetti, nascido em 1o de julho de 1878, vidreiro de profissão e considerado um delinqüente. A polícia da Itália informava que se tratava de "um elemento perigoso, condenado numerosas vezes por crime contra a propriedade e por violência contra agentes da força pública".

O documento dizia que em 1912 ele fora condenado a 18 meses de reclusão por tentativa de violência carnal. "Cumprida a pena, emigrou para o exterior", finalizava. "Naquele tempo, todo italiano era mal encarado aqui", disse Meneghetti alguns anos mais tarde. "Mesmo do Matarazzo diziam que tinha roubado. Tinham-nos como ladrões e criminosos."

De fato, havia um forte preconceito contra os imigrantes. Os conterrâneos de Meneghetti, por exemplo, foram apelidados nos primeiros anos deste século de "carcamanos" e eram tomados por muitos como vândalos e desordeiros. Um relatório da Secretaria de Justiça e Segurança Pública de São Paulo, datado de 1912, revela que a população carcerária falava várias línguas. Os brasileiros presos somaram naquele ano 5.238 pessoas; os italianos, 3.483; os portugueses, 1.213; os espanhóis, 608; os turco-árabes, 368; os alemães, 187; os austríacos, 160; os ingleses, 143; os franceses, 137; os hispano-americanos, 109, além de mais 149 de outras nacionalidades. Um dos mais conhecidos e tenebrosos crimes cometidos nos anos 20, quando Meneghetti já era assunto rotineiro da imprensa, foi protagonizado por um italiano de nome Giuseppe Pistone, que numa crise de ciúmes sufocou a mulher, a bonita e delicada Maria Fea. Admirador de Mussolini e perdulário como poucos (gastou uma herança em viagens e passeios), Pistone escondeu o corpo de Maria numa mala e, na esperança de não levantar suspeitas, endereçou-a para um certo Ferrero Francesco, na França. A polícia descobriu a trama ainda no Brasil: a mala estava armazenada no porto de Santos, e o mau cheiro exalado chamou a atenção.

O "crime da mala", como ficou conhecido o triste episódio, ajudou a colocar mais lenha na fogueira da discriminação. Meneghetti, portanto, não fugiu à regra. Suas aventuras como gângster ganharam, talvez, mais colorido do que realmente mereciam, e isso pode ter levado a imprensa e a polícia a exagerar no tratamento que lhe era dispensado.

Louco por jóias

Certa vez, em 1926, Meneghetti deu uma suadeira na polícia, que por vários dias tentou abotoá-lo com um par de algemas. O "gato dos telhados", no entanto, era especialista em fugir de cercos. A polícia só conseguiu pôr as mãos no atrevido assaltante quando decidiu envolver na caçada a Força Pública, a Guarda Civil e o Corpo de Bombeiros. E Meneghetti só se entregou depois de uma tarde e uma noite de fuga pelos telhados. Preso, ele foi acusado de ter matado o comissário Valdemar Dória. No entanto, se disse inocente. "Não matei. O homem levou um tiro de 38, meu revólver é calibre 32." Não teve conversa. Mesmo diante da argumentada inocência, Meneghetti foi condenado a 43 anos de cadeia, pena comutada mais tarde para 25 anos.

Vale recordar os motivos que levaram a polícia a empreender a barulhenta perseguição ao já afamado ladrão. Uma onda de assaltos, em meados dos anos 20, tirava o sossego dos paulistanos, especialmente dos mais abastados. Grandes e luxuosas mansões estavam sendo visitadas por um ladrão misterioso, que se interessava sobremaneira por jóias. A polícia, perdida, não conseguia achar pistas e, em pouco tempo, passou a sofrer pressão da comunidade e da imprensa. Sem ponto de partida, desorientada, ela chegou a Meneghetti por acaso. Uma mulher havia procurado a polícia para reclamar de seu vizinho, um tal Gino, que teria espancado sem piedade seu filho. A acusação não batia com a índole pacífica daquele "carcamano", mas isso era secundário. A polícia só demonstrou interesse pelo caso quando a mulher contou que seu filho entrara na casa do agressor e vira lá baús cheios de jóias. Estavam finalmente esclarecidos os roubos às residências dos paulistanos mais ricos, e a magnitude do cerco, que envolveu dezenas de homens, foi então plenamente justificável.

Roubar, roubar, roubar. O verbo foi conjugado com maestria pelo "maior ladrão da América Latina" até na união com a bela Concetta, com quem teve dois filhos, Spartaco e Lenine. Ele conhecera a jovem nos tempos em que freqüentava o restaurante Tosca, que ficava na Rua do Seminário, no centro de São Paulo. Ela era sobrinha do proprietário do estabelecimento, Olympio Giusti, que não via com bons olhos o relacionamento amoroso que começava a florescer entre os dois. O "homem de borracha" tomou então o atalho que lhe pareceu mais propício: raptou a companheira, coisa que para ele, especialista no ramo, era como tirar pirulito da boca de criança.

Deve ter encontrado facilidade, também, em seu primeiro roubo de vulto em São Paulo, no princípio de 1914, pouco tempo depois de ter aportado no país. O jornal "O Estado de S. Paulo" disse, na oportunidade, que Meneghetti deu provas de audácia: vencendo todos os obstáculos, penetrou no porão da Casa Sarli, tradicional loja de armas importadas, e depois de muito trabalho arrombou o assoalho, o que lhe permitiu ingresso no armazém. De lá retirou as armas mais finas, de valor unitário maior. Ao saber que alguém andava vendendo armas estrangeiras, a polícia chegou até Meneghetti.

Cena dantesca

Preso e condenado a oito anos de prisão, o italiano incorrigível foi encarcerado na Cadeia da Luz. Em sua tese a professora Célia conta que Meneghetti era considerado um preso de péssima conduta. "Devido às suas atitudes de insubordinação, muitas vezes sofria os castigos regulamentares, sendo colocado na solitária." O imigrante de Pisa cultivava o hábito de escrever cartas, e numa delas narrou em pormenores seu calvário na prisão. "O prisioneiro era posto nu, dentro de poços redondos e isolados, forçado a repousar no cimento frio. Fui preso num desses poços, ficando incomunicável." Meneghetti estava referindo-se à solitária. Tão logo foi colocado no estreito aposento, pôs a cabeça para funcionar. "Comecei a pensar num meio de fugir dali." Notou que o forro do poço era de ferro-gusa. Subiu calmamente pela parede, forçou o forro e ele cedeu, esfacelando-se. À uma hora da madrugada, nu como havia sido depositado ali, Meneghetti ganhou as ruas pulando o muro que o separava da liberdade. "Saí da cela de isolamento um tanto fraco, porque ali estivera sem comer. Tudo estava silencioso e uma forte neblina caía sobre a cidade. Quem me visse assim lá em cima, nu, poderia perfeitamente pensar que se tratava de um fantasma, e teria a máxima razão. Deve ter sido uma cena esquisita, senão dantesca."

Depois dessa espetacular fuga, que hoje em dia pouco acrescentaria ao currículo do detento de tão comum, Meneghetti virou notícia e ganhou grandes espaços nas páginas policiais. O fugitivo achava que os jornais exageravam na cobertura de seus feitos, e isso – costumava reclamar – teve o demérito de torná-lo uma lenda viva e atiçar ainda mais contra ele a polícia, que não queria vê-lo nem pintado de ouro. "Com essas reportagens eu não podia nem pensar em trabalhar. Meu nome foi ficando muito falado, enquanto os jornais faziam mil suposições sobre mim."

O homem dos mil nomes

Depois da fuga Meneghetti saiu perambulando por aí. Fugiu para o sul do país, estabeleceu-se como comerciante em Curitiba, morou em Porto Alegre e Florianópolis, pulou a fronteira e chegou a Montevidéu e depois Buenos Aires. Nunca deixou de roubar. Assediado pelas polícias das capitais do Uruguai e da Argentina, retornou ao Rio Grande do Sul, tendo tomado o cuidado de trocar seu nome para Mario Mazzi. Foi residir na cidade de Rio Grande, onde, com a maior cara-de-pau deste mundo, apresentou-se à autoridade policial para tirar a carteira de identidade com o nome falso. Isso foi em 24 de julho de 1924. Não bastasse isso, arrancou da justiça gaúcha um atestado de boa conduta. O homem era um artista.

Cansado de circular por aquelas bandas, acabou um belo dia no Rio de Janeiro, onde praticou uma série de assaltos. Certa vez Meneghetti – que no Rio se apresentava como Antonio Garcia – foi apanhado no pulo pela polícia. Ele estava forçando a porta de uma casa na Rua Conde de São Joaquim. Foi detido mas se fingiu de louco, sendo removido para o Hospital dos Alienados, em Praia Vermelha. Fugiu e retornou a São Paulo, trazendo no bolso uma carteira de identidade onde se lia o nome de Menotti Menichetti. Na capital paulista foi preso, em 1926, depois da denúncia de que tinha em sua casa baús cheios de jóias, isso 12 anos depois de ter fugido completamente despido da Cadeia da Luz. É interessante salientar que em 1924, portanto dois anos antes de voltar a ver o sol nascer quadrado, conforme a gíria popular, Meneghetti viveu intensamente a criminalidade: os arrombamentos a cofres, roubos de jóias, assaltos a casas comerciais e residenciais, notadamente as dos bairros mais aristocráticos, se sucediam, incontroláveis. A polícia, atônita, não sabia por onde começar as investigações. A imprensa, sempre atenta, não perdoava a ineficiência do aparato policial. Em suas manchetes chamava São Paulo de "o paraíso dos ladrões" e "cidade despoliciada". É certo que Meneghetti não era o único bandido em atividade, mas, seguramente, podia ser considerado, de longe, o mais competente na arte de roubar. No entanto, segundo relatório do delegado Leite de Barros, datado de 24 de maio de 1926, "após uma série de investigações ficou comprovado o autor de quase todos os assaltos praticados em prédios de habitação a partir de fins de 1924. Tratava-se de Gino Amleto Meneghetti, também conhecido por Angelo Bianchi, Italo Bianchi, Antonio Garcia e Mario Mazzi".

Cela blindada

O Bixiga, tradicional bairro italiano de São Paulo, teve Meneghetti entre seus ilustres moradores. Assim que chegou do Rio de Janeiro, ele se instalou com Concetta e os filhos na Rua da Abolição. O fato de ter como vizinhos apenas famílias de "carcamanos", ele imaginava, seria de grande valia em casos de cerco policial. "A casa que comprei ficava numa região que era um reduto da grossa malandragem", escreveu o esperto ladrão em suas memórias. "Tinha outros pontos, pequenos apartamentos de luxo, onde podia refugiar-me na hora de um perigo mais sério, e descansar. Dinheiro eu tinha, e boa quantidade de jóias." A professora Célia diz que nas reminiscências de um dos moradores do antigo Bixiga, Meneghetti não era considerado um criminoso, "talvez porque a convivência pacífica com a vizinhança o eximira do estigma de indivíduo perigoso, pois não incomodava os desfavorecidos. Provavelmente, tiveram início nesse ponto as lendas criadas em torno de seu nome, que lhe atribuíam a qualidade de ser amigo dos pobres".

De nada adiantou ir morar no Bixiga. O falso Robin Hood acabou preso e ficou 18 anos "dentro de uma cela blindada, passando o que nenhum animal passou até hoje", segundo suas próprias palavras no depoimento dado a "O Pasquim". Reportagens publicadas na época pelo jornal "O Estado de S. Paulo" chamavam de jaula a cela blindada ocupada por Meneghetti, um cubículo sujo, fétido e sem ventilação que lhe havia sido reservado como punição pela morte do comissário Valdemar Dória. De nada adiantou negar a autoria do crime com o argumento de que seu revólver cuspia balas de calibre diferente daquela que atingiu mortalmente o policial. A prisão do "famigerado bandido", conforme dizeres da imprensa, trouxe muita frustração para pessoas que veneravam Meneghetti e o viam como herói por causa da canseira que dava à polícia. "As mesmas pessoas que seguiram fascinadas por suas fantásticas aventuras, torcendo sempre contra a polícia, não perdoaram a vulnerabilidade do mito que haviam construído", afirmou "O Estado de S. Paulo".

Dali em diante foi uma sucessão de prisões e de fugas. "Eu sempre consegui pensar, planejar e fugir", disse ele. "No total, contando o tempo que fiquei preso na Europa, dá umas 17 fugas. O amor à liberdade, especialmente quando a gente está preso, é uma coisa extraordinária. Eu posso fazer um túnel, uma chave." Meneghetti sofreu muito nas prisões, e isso explica suas palavras, a despeito de elas soarem, num primeiro momento, como simples exercício de retórica. A evasão da cadeia de Juiz de Fora, onde também esteve preso, retrata com fidelidade o apego à liberdade. São suas as palavras, ditadas a "O Pasquim" na entrevista de 1970: "Eu esperei o carcereiro sair de perto e peguei uma serra. Serrei as grades e saí para o pátio, subi quase dois metros escalando uma grade e cheguei ao primeiro andar. Alcancei o telhado e agarrei-me a uma espécie de corda feita com um lenço velho que não suportou meu peso e me deixou cair sobre uma muralha. Aí eu me joguei na calçada. Quase todos os guardas da cadeia saíram em meu encalço, mas me perderam. Dias depois, fui para a estação ferroviária e viajei até o Rio de Janeiro escondido debaixo do vagão, junto à roda".

A professora Célia diz em certo ponto de sua tese que na década de 70 as notícias veiculadas pela imprensa tratavam Meneghetti como um ladrão diferente, original, um anti-herói. "A partir de então, ele é transformado em mito, correspondendo muito mais a um símbolo romantizado. Assim, a figura construída do ladrão solitário é evocada com freqüência quando se discorre sobre a criminalidade de nossos dias." Se Meneghetti tivesse nascido um pouco mais tarde e, eventualmente, ainda fosse vivo, é possível que estivesse neste momento ajudando a engrossar o coro de vozes dos paulistanos que exigem maior segurança. E que, descrentes da capacidade do aparato policial de pôr um paradeiro à criminalidade, sonham um dia morar numa bucólica cidadezinha do interior, bem longe do burburinho da grande metrópole.

 

Pérolas do ladrão

• Todo dia roubava. Para mim, roubar é uma necessidade quase física. No dia que não faço roubo, não durmo direito.

• O repórter é um cupincha cheio de vícios que vive adulando seus chefes de seções, chefes que muitas vezes não primam por boa moral, às vezes mais venais que os próprios criminosos (exprimindo todo o seu rancor com a imprensa, que não lhe dava sossego e, segundo ele, exagerava ao comentar seus roubos).

• Na rua tinha mais soldados que paralelepípedos. Mas se eu não estivesse embriagado a polícia nunca me prenderia (Meneghetti olhando o movimento na rua de cima de um telhado, em 1926).

• Jamais roubei um pobre. Só me interessava tirar dos ricos, e tirar jóias, que são bens supérfluos que só servem para alimentar a sua vaidade.

• O que acontece é que sou famoso: é só deixar a cadeia que vou preso... Já estou velho demais para roubar. O pior é que só sei o que tentei assaltar depois de estar na cadeia.

• Inventaram muitas histórias sobre mim. Que escalava muros altos, que andava pelas paredes, dava pulos de dez metros. Até parece que sou o homem de borracha.

• Isso é conversa de médico pedante (sobre o argumento de algumas pessoas de que ladrão já nasce com o dom de roubar).

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