Fechar X

Bens intangíveis merecem proteção

Postado em 31/10/2006

Unesco reconhece valor de manifestações culturais e de obras-primas imateriais

MAURÍCIO MONTEIRO FILHO


Índios wajãpi do Amapá
Foto: Acervo Iphan

Em 1972, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) aprovou a Convenção sobre a Proteção do Patrimônio Mundial Cultural e Natural. O objetivo do documento é reconhecer a importância de cidades históricas, monumentos, locais de natureza exuberante, entre outros, e principalmente resguardá-los. Hoje, a lista conta com 851 bens, em 141 países.

Na denominação adotada pela Unesco, esse tipo de patrimônio é chamado de tangível. O termo, aplicado por exemplo ao centro histórico da cidade de Salvador, na Bahia, indica que o casario antigo, as velhas igrejas e o Pelourinho têm um valor visível, quase palpável. Isso porque esse ponto – um dos 17 patrimônios mundiais brasileiros presentes na relação da entidade – daquela que foi a primeira capital do país é capaz de retratar com riqueza as raízes brasileiras, da escravatura à miscigenação, durante o período colonial.

Próximo dali, desde o século 17, há uma outra forma de contar a mesma história. Com origens nas tradições trazidas pelos escravos africanos, fortes conexões com o candomblé e influências portuguesas, o samba de roda do Recôncavo Baiano representa a história brasileira tanto quanto o Pelourinho. Mas de uma maneira bastante diferente.

Os instrumentos tradicionais, a poesia das letras e a transmissão dos saberes relacionados a esse tipo de música e dança se inscrevem no que pode ser chamado de patrimônio intangível. Aquele que, em contraste com os bens de valor tangível, tem de ser ouvido, e não apenas visto, praticado, e não visitado.

Esse tema ganhou reconhecimento internacional a partir do Programa de Proclamação das Obras-Primas do Patrimônio Oral e Intangível da Humanidade, também da Unesco. De 2001, data do lançamento da publicação, a 2005, quando foram anunciados os últimos bens a ser salvaguardados, 90 obras-primas de 70 países diferentes receberam a distinção.

Dois casos brasileiros integram a lista: a linguagem e a arte gráfica kusiwa, dos índios wajãpi (termo também grafado waiãpi ou ainda, na forma aportuguesada, oiampi) do Amapá, incluída na proclamação de 2003, e o próprio samba de roda da região do Recôncavo Baiano, reconhecido em 2005.

O que é, como se torna

Para que determinada prática cultural seja incluída na publicação da Unesco, é necessária a elaboração de um dossiê. Essa atribuição é, em geral, de órgãos do governo e segmentos da sociedade civil, principalmente organizações não-governamentais. Segundo Jurema Machado, coordenadora da área de cultura da Unesco no Brasil, a iniciativa tem de partir do país, uma vez que a instituição não faz prospecção de candidatos – aqui, é o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), vinculado ao Ministério da Cultura, que centraliza as indicações e acompanha a preparação dos dossiês.

De acordo com Márcia Sant’Anna, diretora do Departamento de Patrimônio Imaterial do Iphan, em 1997 – época da criação da divisão responsável pelo assunto na Unesco –, foi formado no Brasil o grupo de trabalho responsável pela redação do que veio a se tornar o decreto 3.551, de 2000. O texto é o marco inicial de uma política importante para a área: o registro dos bens culturais de natureza imaterial.

Com isso, abriu-se caminho para um mapeamento dos valores intangíveis brasileiros, que são inscritos segundo quatro critérios. O primeiro é o de saberes, que trata de conhecimentos populares enraizados no cotidiano de comunidades. Outro é o de celebrações. As formas de expressão – literárias, musicais, plásticas, cênicas e lúdicas – constituem o terceiro critério. E o último deles é o dos lugares – mercados, feiras e santuários, entre outros.

A lista completa dos patrimônios brasileiros registrados inclui o ofício das paneleiras de Goiabeiras, a arte kusiwa, o Círio de Nazaré, o samba de roda no Recôncavo Baiano, o modo de fazer viola-de-cocho, o ofício das baianas de acarajé, o jongo no sudeste, a cachoeira de Iauaretê (lugar sagrado dos povos indígenas dos rios Uaupés e Papuri), a feira de Caruaru, o frevo e o tambor de crioula do Maranhão.

Ação defensiva

Com a realização do inventário completo da arte kusiwa, foi feita a indicação para a Unesco dos grafismos wajãpi, posteriormente incluídos na proclamação de obras-primas da entidade. Segundo Márcia, essa candidatura teve preferência por se tratar de uma comunidade indígena tradicional, representativa das origens da sociedade do país.

Na verdade, o processo de reconhecimento internacional dos grafismos wajãpi teve início como uma forma de defesa, uma vez que os índios vinham sendo alvo de forte exploração de sua imagem. Dominique Gallois, antropóloga e professora da Universidade de São Paulo (USP) que trabalha com o grupo há 35 anos, explica as razões desse desejo de resguardar-se por parte deles: "Na década de 1990, no Amapá, eles eram os únicos índios que andavam de tanga e pintavam o corpo. Por essa razão, apareciam em outdoors de promoção do estado, e seus grafismos se tornaram estampas de camisetas, o que fazia com que se sentissem muito agredidos".

Dessa forma, partiu do próprio Conselho das Aldeias Indígenas Wajãpi (Apina) a iniciativa de buscar proteção através do registro de sua arte como bem imaterial. Dominique integra o Núcleo de História Indígena e do Indigenismo da USP, um dos grupos que apoiaram a indicação, ao lado do Núcleo de Educação Indígena do governo do estado do Amapá e do Museu do Índio, da Funai.

Os wajãpi vivem no norte do Amapá e na Guiana Francesa. No Brasil, segundo levantamento de 2002, são 580 indivíduos, divididos em 48 aldeias. De acordo com o livro de registro do Iphan, sua arte "se expressa em desenhos e pinturas de corpos e objetos, a partir de um repertório definido de padrões gráficos e suas variantes, que representam (...) partes do corpo ou da ornamentação de animais, como sucuris, jibóias, onças, jabotis, peixes, borboletas; e objetos (...). Com denominações próprias, os padrões gráficos podem ser combinados de muitas maneiras diferentes, que não se repetem, mas são sempre reconhecidos pelos wajãpi como kusiwa". Foram registrados os 21 grafismos mais utilizados pelos índios.

Para realizá-los, eles usam três tipos de tinta: vermelhos claro e escuro e preto azulado. Todas são obtidas artesanalmente a partir de misturas de plantas, sementes, óleos vegetais e gordura de animais. Os pincéis são feitos com bambu ou folhas de palmeira, em que se enrolam fios de algodão.

A pintura é uma atividade do cotidiano, praticada em ambiente familiar, e reflete o estado de espírito dos wajãpi. Apesar de antes a arte kusiwa ter sido reservada apenas ao corpo, passou a ser usada pelos índios nas peças de cerâmica que vendem, na decoração de cuias e no trançado de cestos.

Samba de roda

Alva Célia Medeiros é um exemplo vivo da dimensão imaterial do samba de roda. Vocalista e letrista do grupo Raízes de Angola, ela está envolvida com essa mistura de música, poesia e dança há 20 anos, por influência de sua mãe. E, quando se diz que o samba de roda tem fortes laços com os cultos aos orixás e caboclos, sua história é prova disso.

"Ficávamos cantando, batendo com o garfo na garrafa, batucando no atabaque do terreiro, e então decidimos criar o grupo", relembra ela. E não teve dúvidas sobre o que iria cantar: "Chulas de caboclo, que vêm mesmo deles. E a gente tinha sua permissão para levar as músicas para a rua". Chula é o nome dado à parte poética do samba de roda, e também identifica uma das vertentes dessa prática, o samba-chula. E os caboclos são as entidades que presidem os cultos, incorporadas nos médiuns.

Assim, as primeiras letras que Alva passou a levar de seu terreiro, em São Francisco do Conde, no Recôncavo Baiano, para os palcos e festas da região, em 2002, vinham do próprio candomblé.

Hoje, o grupo envolve 25 pessoas, entre músicos e sambadeiras, e já tem cerca de 20 músicas próprias. E o Raízes de Angola também adaptou um samba tradicional para o álbum "Samba de Roda: Patrimônio da Humanidade", gravado em 2004 para integrar o dossiê da candidatura a obra-prima.

Edivaldo Bolagi, da Associação dos Sambadores e Sambadeiras do Estado da Bahia (Asseba), lembra que a campanha começou por esforço do próprio ministro da Cultura, Gilberto Gil. "Ele percebeu a importância do samba de roda como elemento cultural e social, que há muito tinha extrapolado as fronteiras da Bahia", diz. A partir daí, o Iphan montou uma equipe que realizou o inventário em 24 municípios do Recôncavo Baiano, e captou gravações de áudio – que deram origem ao disco – e vídeo.

De acordo com Bolagi, há, em média, cinco grupos por cidade na região. E seria necessário um dicionário próprio para compreender todas as denominações e correntes dentro do termo maior: corrido, chula, bate-baú, vira-mão, de rapariga, umbigada... "Samba de roda é uma expressão guarda-chuva. Temos de desconstruí-la, porque cada um tem sua identidade", explica.

Segundo ele, após a proclamação, houve maior interesse por parte de pesquisadores, da mídia e dos próprios sambadores. Alva acredita, no entanto, que é preciso dirigir mais ações àqueles que estão envolvidos nessa manifestação cultural. "Há muita atenção para o samba como patrimônio, sem enfoque social", avalia. "Quando temos um título, temos de preservá-lo. E quem faz isso são as pessoas." Mas, nesse caso, trata-se de gente muito carente. "Os sambadores também têm de ser salvaguardados. São pobres e não têm emprego. Vivem só da música", afirma.

Salvaguardas

A proclamação da Unesco, no entanto, não é a principal estratégia da instituição para a preservação dos patrimônios orais e imateriais. Seu maior instrumento de proteção das obras-primas é um documento aprovado em Paris, em 2003: a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Intangível, que já congrega cerca de 80 países.

Em 2007, não será publicada uma nova proclamação. Em seu lugar, a convenção determina que duas listas sejam constituídas pelos Estados que a ratificaram. A primeira é chamada de representativa e incluirá os bens que anteriormente seriam candidatos à proclamação. A outra tratará apenas de patrimônios que exigem medidas de salvaguarda urgentes.

Segundo Jurema Machado, um dos elementos determinantes para que qualquer prática cultural seja considerada uma obra-prima intangível é o fato de estar ameaçada. Tanto no caso do samba de roda como no dos padrões gráficos dos wajãpi, a dificuldade de transmissão dos saberes é o maior risco. Ambos sofrem com o desinteresse dos jovens, e as técnicas mais e mais se restringem ao conhecimento dos mais velhos. "Por isso, junto com a defesa da inscrição, vêm diretrizes de salvaguarda. E a Unesco tem de contribuir para implantá-las", diz ela.

Márcia Sant’Anna explica que são quatro as prioridades das ações de preservação dos bens: melhoria na transmissão, produção e reprodução; organização comunitária; divulgação e reivindicação dos direitos culturais relacionados aos patrimônios.

No caso do samba de roda, por exemplo, não havia uma entidade representativa de seus praticantes antes da proclamação. Mas, uma vez declarado obra-prima da humanidade, foi fundada a Asseba, que já reúne mais de 40 grupos.

"Além disso, está sendo estimulada a criação de centros de referência", afirma Márcia. O primeiro deles – a Casa de Samba de Santo Amaro, em Santo Amaro da Purificação, na Bahia –, foi inaugurado no dia 14 de setembro. Ele será um ambiente de pesquisa e treinamento e terá um acervo digital sobre o tema. "Isso é necessário porque há saberes em risco de desaparecimento no samba de roda", justifica Márcia.

No caso dos wajãpi, o mote principal do plano de salvaguarda é a transmissão do conhecimento das gerações mais antigas às mais novas. "Outra ação é a formação de pesquisadores indígenas para realizar uma documentação permanente dos conhecimentos e das expressões gráficas", complementa ela.

Na opinião de Dominique Gallois, que também faz parte do Instituto de Pesquisa e Formação em Educação Indígena (Iepé) – segundo o qual não vai haver proteção sem o engajamento dos próprios detentores desse saber –, é necessária a formação de jovens que possam ser gestores culturais da comunidade. "O grande desafio é motivar a moçada que já nasceu depois do contato [com os brancos], que conhece o dinheiro e que não está tão envolvida com as tradições – o que, aliás, é normal", declara.

Outro projeto do Iepé é a criação de um banco de dados acessível na aldeia, para que "os índios se encontrem com a própria tradição". Enquanto isso não ocorre, aos poucos os wajãpi vão construindo um auto-retrato, que em novembro será tema de uma exposição no Amapá.

Dominique é categórica, no entanto, quanto à necessidade de manter viva a tradição oral. "Passar para o papel não resguarda. Se não contar, acaba", arremata.

História oral

Alva Célia se lembra dos tempos em que os pandeiros, artesanais, tinham de ser aquecidos a fim de ganhar a flexibilidade necessária para ressoar as batidas. "Então, quando o samba estava esquentando, o pandeiro esfriava e era preciso botá-lo de novo no fogo." Hoje, o samba de roda adotou a versão industrializada do instrumento. Embora essa mudança não traga nenhum prejuízo, Alva, que sabe do valor das tradições e faz questão de preservá-las e transmiti-las, mantém pendurado em seu terreiro o antigo pandeiro de couro de jibóia.

A história desse instrumento dificilmente caberia num museu convencional, dada a riqueza e a vivacidade dos detalhes com que ela é contada. Esse é um exemplo claro da importância da dimensão oral, no caso dos bens intangíveis. No reino do patrimônio imaterial, cruza-se a fronteira da história convencional, escrita, e as pessoas que tecem as narrativas ganham destaque.

O trabalho do professor José Carlos Sebe Bom Meihy, coordenador do Núcleo de Estudos em História Oral da USP, busca justamente abrir espaço para essa vertente da historiografia, que, de acordo com ele, ainda é refutada pela arena acadêmica. "Vivemos numa sociedade baseada em letras e números. Quem não os domina é segregado", afirma.

O pior, sustenta Meihy, é que são exatamente os detentores do que é tangível que geram as políticas públicas – mais uma razão para que ele aplauda a iniciativa da Unesco, por considerar que ela institucionaliza esse saber.

Nas pesquisas que realiza, o foco da história oral é, a seu ver, diametralmente oposto ao da convencional. "Nosso interesse é pela inverdade, pela mentira, pelo interdito, pelo silêncio", define.

Meihy acaba de finalizar um livro com histórias de alguns dos 5 milhões de emigrantes brasileiros espalhados pelo mundo. Foi também por meio de narrativas de imigrantes, dessa vez judeus que vieram para o Brasil, que surgiu uma experiência revolucionária, que rompeu as barreiras acadêmicas à história oral. A partir de uma exposição sobre esses depoimentos no Museu da Imagem e do Som (MIS), em São Paulo, estabeleceu-se o marco de criação do Museu da Pessoa, no final de 1991.

A instituição parte de uma filosofia simples: "Toda pessoa pode ter sua história contada". No caso do evento no MIS, tudo começou com cerca de 90 depoimentos, que totalizaram mais de 200 horas de gravação. Desse acervo surgiu a idéia de que aqueles que fossem à exposição e quisessem narrar sua biografia poderiam fazê-lo. "E muita gente quis. Foi um sucesso de público", recorda Karen Worcman, historiadora e diretora do museu.

Hoje, a entidade tem em seus arquivos quase 10 mil depoimentos. De terça a sábado, dias em que o museu funciona, qualquer um que queira registrar sua história será ouvido por dois pesquisadores, que a gravarão em DVD. Em dois dias, a narrativa estará disponível no portal na internet. Com isso, a instituição capta uma média de 60 depoimentos por mês.

No último dia 4 de setembro, outro fruto, entre os muitos, do trabalho do museu foi lançado. Resultado de uma parceria com o Serviço Social do Comércio do Estado de São Paulo (Sesc SP) e a Imprensa Oficial do Estado, o livro História Falada – Memória, Rede e Mudança Social reúne artigos de participantes de um seminário realizado no próprio Sesc, em 2003.

 

Comentários

Assinaturas


Escolha uma rede social

  • E-mail
  • Facebook
  • Twitter

adicionar Separe os e-mails com vírgula (,).

    Você tem 400 caracteres. (Limite: 400)