Postado em 31/10/2006
Há milhões de brasileiros incapazes de ler, mesmo após passarem pela escola
HENRIQUE OSTRONOFF
Arte PB
As estatísticas dizem com todas as letras, os números estão na ponta do lápis. O Brasil é um país com uma população que mal escreve e mal lê. Apesar de nosso Produto Interno Bruto (PIB) figurar entre os maiores do mundo, não estamos nos preparando para enfrentar a concorrência global. "Hoje competimos com países que têm taxa de 60%, 70%, até 80% de matrícula no nível universitário. Como uma população com uma parcela enorme de analfabetos funcionais pode concorrer em igualdade de condições com outra em que três quartos são bacharéis? É absolutamente desastroso", afirma o economista especializado em educação Gustavo Ioschpe.
No último relatório divulgado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), referente a 2004, o Brasil aparece em 69º lugar entre 177 países, no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) – em 2003, era o 63º. O IDH leva em consideração taxas de PIB per capita, distribuição de renda, longevidade e índices de alfabetização de pessoas com 15 anos ou mais e de matrícula nos três níveis de ensino. E foi justamente a estagnação nos quesitos educacionais a responsável por fazer o país retroceder, embora os demais indicadores tenham apresentado significativas melhoras.
O quadro elaborado pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), com dados do início do século 21 sobre a população alfabetizada no mundo, também deixa claro que não estamos entre os melhores alunos da classe. Aparecemos com 88,6% de alfabetizados, atrás de economias que certamente não se gabam de sua produção de riquezas, como Vietnã, com 90,3%, Sri Lanka, com 90,7%, e Albânia, com 98,7%. Alguns de nossos vizinhos sul-americanos também apresentam porcentagens muito mais generosas que as brasileiras – os chilenos sustentam 95,7% e os argentinos, honrosos 97,2% de pessoas que lêem e escrevem.
Outra breve comparação lança luz sobre a questão. O Ministério da Educação (MEC) listou cerca de 1,1 mil municípios brasileiros, quase todos no nordeste, com mais de 35% de população analfabeta. É uma taxa superior à média de 33% verificada em Angola, Uganda e na República Democrática do Congo, países africanos que estão entre os mais pobres do planeta e têm história de longas guerras civis.
Outros dados ainda, apresentados no estudo Analfabetismo no Brasil, de 2003, produzido por Ricardo Paes de Barros, Mirela de Carvalho e Samuel Franco, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e publicado no site do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade (Iets) demonstram que, em países com renda per capita similar à brasileira, a taxa de analfabetismo é, em média, de 5,8%. E enquanto apenas 34% das nações têm renda per capita maior que a do Brasil, 55% têm taxas menores de população analfabeta.
Inúmeros estudos e levantamentos estatísticos de órgãos governamentais e entidades privadas nacionais têm sido produzidos para medir e explicar o analfabetismo no país. Por isso, não faltam números para traçar a evolução e o perfil da situação em que vive o Brasil desde que se iniciou a contagem do total de analfabetos.
Problema antigo
No relatório Mapa do Analfabetismo no Brasil, publicado em 2003 pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), vinculado ao MEC, faz-se referência à obra História da Instrução Pública no Brasil, 1500-1889, escrita em 1889 por José Ricardo Pires de Almeida, na qual consta que, em 1886, 1,6% dos brasileiros eram escolarizados. Já os primeiros censos demográficos demonstram que, em 1872, 82,3% da população do país com mais de 5 anos de idade era analfabeta, taxa que se manteve praticamente inalterada na contagem posterior, de 1890, com 82,6%.
Quase 50 anos depois do censo inicial, em 1920 o analfabetismo brasileiro da população com idade acima de 15 anos estava em 64,9%. Em 1940 chegava a 56%, em 1970 a 33,6%, em 1990 a 20,1% e em 2000 a 13,6%. Como a população aumentou em ritmo mais acelerado que os esforços de alfabetização, os 11,4 milhões de analfabetos de 1920 passaram a 13,3 milhões em 1940, 18,1 milhões em 1970 e 19,2 milhões em 1990. Somente no censo de 2000, quando foram computados 16,2 milhões de analfabetos, verificou-se uma diminuição. No entanto, em números absolutos, o país manteve praticamente a mesma população de analfabetos de 1960, que era de 16 milhões, segundo levantamentos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Baseando-se em dados até 2001 da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), produzida pelo IBGE, o mesmo estudo do Ipea calcula uma queda no índice de analfabetismo de 5,5 pontos percentuais por década. "Isso significa que, seguindo o ritmo histórico, a taxa de analfabetismo brasileira será inferior à atual paraguaia somente após 2010, inferior à atual chilena após 2015, e só atingirá os níveis atuais argentino e uruguaio próximo ao ano de 2020", conclui o texto.
Os dados mais recentes sobre o assunto no país são da Pnad de 2006, ano em que, segundo a pesquisa, 9,6% das pessoas com mais de 10 anos eram analfabetas. Os números revelam extremos – encontram-se nessa situação 0,3% das mulheres entre 15 e 17 anos da região sul e 29,3% dos homens nordestinos com mais de 25 anos. A Pnad 2005, com informações de 2003 referentes à população com mais de 15 anos, mostra outras desigualdades na distribuição de oportunidades educacionais – enquanto no Distrito Federal havia 4,4% de analfabetos, em Alagoas eles representavam 30,4%. No estado do Rio de Janeiro, o índice de analfabetismo entre os homens era de 3,6% e no Piauí, de 31,4%.
Se as taxas de analfabetismo absoluto são surpreendentes, novas conceituações que levam em conta gradações na incapacidade de ler ou escrever revelaram de modo ainda mais cabal, nas últimas décadas, as mazelas do sistema educacional do país.
De acordo com Vera Masagão Ribeiro, doutora em educação e coordenadora de programas da ONG Ação Educativa, em seu artigo "Analfabetismo e Alfabetismo Funcional no Brasil", publicado no site Reescrevendo a Educação, a Unesco definia como alfabetizada, em 1958, "uma pessoa capaz de ler ou escrever um enunciado simples, relacionado a sua vida diária". A organização iria sugerir, 20 anos depois, a adoção do conceito de "alfabetismo funcional". "É considerada alfabetizada funcional a pessoa capaz de utilizar a leitura e a escrita para fazer frente às demandas de seu contexto social e de usar essas habilidades para continuar aprendendo e se desenvolvendo ao longo da vida", explica Vera Masagão. E continua: "A questão não é mais apenas saber se as pessoas conseguem ou não ler e escrever, mas também o que elas são capazes de fazer com essas habilidades".
Ainda no mesmo artigo a autora esclarece que até a década de 1990 o IBGE apurava os índices de analfabetismo por meio de auto-avaliação, perguntando aos entrevistados se sabiam ler uma mensagem simples. Após recomendação da Unesco, o instituto passou a tomar como base a escolaridade das pessoas. Aquelas que não chegaram à quarta série foram incluídas na categoria de analfabetos funcionais, o que representou 27% da população, pelo censo realizado em 2000. Somando essa parcela à de analfabetos absolutos verificada naquele ano (cerca de 14%), chega-se ao resultado de 41% de brasileiros que não escrevem e lêem ou exercem essas atividades de forma precária.
Os níveis de alfabetismo também têm sido medidos e avaliados por meio do Indicador Nacional de Alfabetismo Funcional (Inaf), pesquisa elaborada pelas ONGs Ação Educativa e Instituto Paulo Montenegro, ligado ao Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (Ibope). Em relatório em que apresenta os principais resultados dos levantamentos feitos a cada dois anos, entre 2001 e 2005, é estabelecida uma classificação da população.
Segundo o que foi apurado no último ano da pesquisa, os analfabetos, definidos como os que "não conseguem realizar tarefas simples que envolvem decodificação de palavras e frases", são 7% – dos quais 22% não chegaram a concluir nem um ano de escolaridade, mas 60% completaram de um a três anos de estudo; os alfabetizados no nível rudimentar, que "conseguem ler títulos ou frases, localizando uma informação bem explícita", somaram 30% – dos quais 49% têm de quatro a sete anos de estudo e 33% menos de três; os do nível básico, que "conseguem ler um texto curto, localizando uma informação explícita ou que exija uma pequena inferência" são 38% – dos quais 40% têm de quatro a sete anos de estudo; e os do nível pleno, que "conseguem ler textos mais longos, localizar e relacionar mais de uma informação, comparar vários textos, identificar fontes", compreendem 26% dos brasileiros – dos quais 60% têm pelo menos o ensino médio completo e 25% de oito a dez anos de estudo. A pesquisa constatou também que, entre os entrevistados de 14 a 64 anos, só 47% chegaram a completar a oitava série do ensino fundamental, ou seja, "53% não têm o nível escolar mínimo que a Constituição afirma ser direito de todos os cidadãos", informa o relatório.
O levantamento do Inaf revelou ainda dados estarrecedores sobre a falta de eficácia da educação brasileira: dos que completaram de uma a três séries, 26% continuam analfabetos e 58% só alcançam um nível rudimentar de alfabetização; entre pessoas com quatro a sete anos de estudo, predominam os níveis rudimentar (42%) e básico (44%); entre os que têm de oito a dez anos de estudo, 51% têm nível básico; o nível pleno só é majoritário, com 57%, entre aqueles que concluíram pelo menos o ensino médio. E conclui: "Os resultados do Inaf confirmam que, sem o ensino fundamental completo, é baixa a probabilidade de consolidar um nível pelo menos básico de alfabetização. Já o nível pleno de habilidades só é majoritário na população com pelo menos 11 ou mais anos de estudo".
Estratégias
Para mudar essa situação, além das iniciativas municipais e estaduais, os governantes recorreram, ao longo da história, a grandes programas nacionais de alfabetização, desde o pós-Segunda Guerra. A Campanha de Educação de Adultos e Adolescentes foi criada em 1947 e durou até 1963. Em um cenário em que cerca de metade da população nacional era analfabeta, esse primeiro projeto de alfabetização em massa implantou 10 mil classes em todos os municípios do país. Em 1964, ainda no governo João Goulart, o Ministério da Educação planejou o Programa Nacional de Alfabetização de Adultos, a partir de experiências – como as do Movimento de Educação de Base (MEB) e do Movimento de Cultura Popular (MCP), entre outras – que utilizavam métodos desenvolvidos pelo pedagogo Paulo Freire, autor de Pedagogia do Oprimido. No mesmo ano, porém, o golpe militar abortou o projeto. E, em 1969, foi lançado o Movimento Brasileiro de Alfabetização, o famoso Mobral, extinto em 1985, junto com o fim do regime militar.
Com a democratização surgiram outras iniciativas, como a Fundação Educar, durante o governo Sarney. Em 1996, o Ministério da Educação da gestão de Fernando Henrique Cardoso lançou o Programa de Alfabetização Solidária (PAS), que retomava práticas de alfabetização em massa, consideradas superadas por especialistas em educação. O governo Lula criou em 2003 o Brasil Alfabetizado, com o "objetivo de capacitar alfabetizadores e alfabetizar cidadãos com 15 anos ou mais que não tiveram oportunidade ou foram excluídos da escola antes de aprender a ler e escrever", segundo o MEC. O site do ministério afirma também que estavam cadastrados no programa, em 2006, cerca de 2 milhões de alfabetizandos e 100 mil alfabetizadores, em 105 mil turmas. Os recursos – R$ 182,3 milhões em 2006 e R$ 218,5 milhões previstos para este ano – são transferidos "aos estados, municípios, empresas privadas, universidades, organizações não-governamentais e instituições civis parceiros nesse processo".
Apesar dos esforços e recursos despendidos pelos governos, as grandes campanhas para a diminuição dos índices de analfabetismo não são consideradas eficazes pelos especialistas em educação de jovens e adultos. Simon Schwartzman, sociólogo e cientista político, membro da Academia Brasileira de Ciências, avalia que o analfabetismo absoluto se concentra na população mais velha que não teve acesso à educação na juventude e, entre os jovens, os índices são significativos apenas nas regiões mais pobres. Isso porque a universalização do acesso ao ensino básico ocorreu no país somente no final dos anos 1990. Para o co-autor do livro A Escola Vista por Dentro, "infelizmente, não há muito a fazer com o analfabetismo absoluto da população mais idosa e pobre. As campanhas de alfabetização não funcionam, eles têm muita dificuldade em aprender, esquecem rapidamente o que lhes foi ensinado, e muito dificilmente incorporam a leitura e a escrita em sua vida. Com o passar das gerações, esse tipo de analfabetismo está desaparecendo naturalmente", afirma.
No entanto, entidades privadas voltadas para a educação de jovens e adultos acreditam que programas de alfabetização em massa ainda funcionam. É o caso da ONG Alfabetização Solidária (AlfaSol), que atua em parceria com empresas, governos de todos os níveis e instituições de ensino superior. Após 11 anos de atividades, até o final de 2006 a ONG capacitou 244 mil alfabetizadores, atendeu 5,3 milhões de pessoas em 2 mil localidades com índices maiores de analfabetismo e IDH mais baixo e em bolsões de pobreza de municípios de IDH médio e alto. De acordo com a socióloga Ednéia Gonçalves, assessora técnica da ONG, "a atuação da AlfaSol não constitui campanha, ao contrário, prevê a mobilização de agentes sociais locais em torno da ampliação e auto-sustentabilidade das ações desenvolvidas". Segundo ainda a assessora, "a partir das premissas expressas no Projeto Político-Pedagógico da AlfaSol, as instituições de ensino superiores elaboram programas específicos para as localidades atendidas, buscando preservar a identidade cultural e o ambiente social".
Deficiências
Vera Masagão, por sua vez, acredita que programas de alfabetização com cursos de curto prazo não são os mais adequados, mesmo porque o próprio sistema de ensino está formando um grande contingente de analfabetos funcionais. "A educação de jovens e adultos poderia até contar com agentes educacionais, mas precisa se inserir em um processo mais formal e continuado", diz. A seu ver, campanhas de alfabetização não funcionam: "Não é isso que necessitamos, mas ampliar as vagas e escolarizar jovens e adultos, criando eventualmente programas mais informais para uma população de mais idade, mas sem prazos de 2 meses, 5 meses. É preciso pensar em programas de ação continuada, e não achar que se vai mudar a vida de um sujeito com professores leigos e sem método nenhum, pois, em geral, são mal orientados".
As causas de os estudantes estarem saindo do ciclo fundamental com baixa capacidade de leitura e escrita, como demonstram as pesquisas, preocupam os especialistas tanto quanto o analfabetismo absoluto. Para Simon Schwartzman, as condições socioeconômicas e culturais dos alunos e a forma como o ensino público lida com a situação contribuem para isso: "As crianças de famílias mais pobres e pouco educadas têm mais dificuldade em aprender, porque em casa não recebem uma base de cultura formal, e a própria linguagem em que aprendem a falar é mais distante da dos livros. As escolas públicas deveriam fazer um esforço redobrado para atender a esses alunos, mas geralmente isso não acontece. Existem problemas organizacionais que impedem, muitas vezes, que os estabelecimentos funcionem direito – troca freqüente de professores ou muitas faltas e greves, situações de violência e ausência de condições materiais mínimas de funcionamento, como carteiras, banheiros limpos, merenda etc."
"Primeiro é preciso haver uma mudança ideológica, uma vez que os professores devem alfabetizar os alunos, independentemente do nível social. Enfim, temos de educar as crianças brasileiras que efetivamente existem e não as que gostaríamos que houvesse, ricas, de família estruturada e com grande tradição cultural em casa", afirma o economista Gustavo Ioschpe. Como solução, ele sugere "maior flexibilidade para encontrar propostas alternativas quando as que estão sendo praticadas não caminham". Ainda segundo Ioschpe, é necessário um aprimoramento na formação de professores: "Eles devem ganhar competência em termos de didática, educação continuada e alfabetização, assim como em outras áreas – a educação brasileira é ruim em todos os aspectos. Isso é apenas a ponta do iceberg, mas acaba tendo reflexos em todo o processo".
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