Postado em 31/10/2006
Apesar dos obstáculos, elas avançam no campo da pesquisa e da ciência
EVANILDO DA SILVEIRA
Conferência "Mulheres Latino-Americanas nas
Ciências Exatas e da Vida" / Foto: Divulgação
Quase 60 anos depois de a filósofa francesa Simone de Beauvoir ter cunhado a expressão "liberação feminina", no ensaio O Segundo Sexo, publicado em 1949, as mulheres ainda são minoria na maior parte das carreiras científicas no Brasil. Essa é uma situação que aos poucos, no entanto, começa a mudar. Conforme dados de 2004 do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), havia naquele ano 41.172 pesquisadores e 36.080 pesquisadoras. E, de lá para cá, apesar das muitas e variadas dificuldades enfrentadas, as mulheres vêm ocupando espaços e aumentando sua participação no universo da ciência no país.
Outras estatísticas do mesmo CNPq evidenciam essa tendência. Elas mostram que, em 2005, o índice de bolsistas do sexo feminino dessa instituição, no país e no exterior (as futuras cientistas), atingiu 52%, contra 48% dos homens. Além disso, hoje, o número absoluto de cientistas mulheres também vem crescendo. Na faixa etária de 29 anos ou menos, elas já eram maioria em 2004: 2.953, para 2.685 homens.
A reitora da Universidade de São Paulo (USP), Suely Vilela, é uma das cientistas que acreditam que esses números indicam uma mudança concreta. De acordo com ela, a inserção da mulher no mundo científico tem aumentado, ainda que discretamente, e a tendência é de crescimento cada vez maior. "A participação do sexo feminino nos diretórios de pesquisa do CNPq, que constitui uma das medidas de avaliação da atuação das mulheres em ciência e tecnologia, mostra um aumento no período de 2000 a 2004. Houve um incremento tanto no índice geral de pesquisadoras, que passou de 44% a 49% do total, quanto no daquelas que ocupam cargos de liderança – como coordenadoras ou responsáveis por grupos de pesquisa –, que aumentou de 39% para 42%", afirma ela.
Dificuldades antigas
Como se vê pelos números, as mulheres poderão equilibrar o jogo com os homens. Mas, antes que esse dia chegue, as pesquisadoras brasileiras terão de superar uma série de barreiras, que podem ser de ordem social, cultural ou econômica. São dificuldades que vêm de longe. Num artigo intitulado "As Mulheres na Ciência Brasileira: Crescimento, Contrastes e um Perfil de Sucesso", a bióloga Jacqueline Leta, do Programa de Educação, Gestão e Difusão em Ciências do Instituto de Bioquímica Médica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), diz que historicamente a ciência sempre foi vista como uma atividade realizada por homens.
De acordo com ela, durante os séculos 15, 16 e 17, quando surgiu a ciência como a conhecemos hoje, algumas poucas aristocratas exerciam papéis importantes de interlocutoras ou tutoras de renomados filósofos naturais e dos primeiros experimentalistas. "Apesar de suas qualidades e competências, no entanto, elas não podiam participar das intensas e calorosas discussões que aconteciam nas sociedades e academias científicas, que se multiplicaram no século 17 por toda a Europa", explica.
No século 18, essa situação pouco se modificou. O acesso delas à ciência continuou limitado e, quando ocorria, era devido à posição familiar que ocupavam. Se eram mulheres ou filhas de algum cientista, podiam se dedicar a tarefas subalternas, tais como cuidar de coleções, limpar vidros de laboratório, ilustrar ou traduzir experimentos e textos. No século seguinte, praticamente nada mudou. "Essa situação só começou a se alterar nos anos de 1980 e 90", diz Jacqueline, que tem 41 anos, é casada e não tem filhos. "Hoje, é evidente a presença cada vez maior de mulheres entre os estudantes, professores e pesquisadores nas universidades públicas do país, principal reduto da ciência brasileira."
Entretanto, não se conhece ainda a dimensão dessa mudança com clareza. Isso porque há relativamente poucos dados precisos a esse respeito. A única fonte de números é o CNPq. "As modificações ocorridas nas últimas décadas, em especial no Brasil, em termos de acesso e crescimento da participação feminina na atividade científica, não foram acompanhadas de levantamentos sistemáticos e estatísticos", explica Jacqueline. "Ainda se sabe pouco sobre a formação, a distribuição e a ascensão das cientistas na carreira. E sem esses dados é difícil embasar uma reflexão teórica sobre essa temática."
Mais meninas
A escassez de informações não impede, no entanto, que o crescimento do número de mulheres cientistas seja percebido no próprio dia-a-dia de pesquisadoras que também dão aulas nas universidades brasileiras. É o caso da bióloga Jocelia Grazia, professora titular da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). "Tenho observado, de uns dez anos para cá, que a maioria dos meus alunos é constituída de meninas", diz. "O mesmo já não ocorre entre meus orientandos de iniciação científica, mestrado e doutorado, de faixa etária mais alta, entre os quais há um equilíbrio entre os sexos."
O cenário descrito pela professora poderia levar a supor uma mudança de quadro próxima, a partir do crescimento da participação feminina nos cursos de graduação. Dados do próprio CNPq, segundo os quais neste ano se constata um relativo equilíbrio entre homens e mulheres bolsistas da instituição (28.483 e 26.975, respectivamente) e mesmo entre os de doutorado (3.753 e 3.797), mostram, por outro lado, que essa pode ser uma conclusão apressada, já que, no caso de bolsas específicas, como a de produtividade (a de maior valor), o descompasso continua a vigorar: dos 9.608 pesquisadores a quem ela foi concedida em 2007, 6.377 (66%) são homens, enquanto 3.229 (34%) são do sexo feminino.
A situação se repete em relação à representação nos comitês assessores do CNPq, que decidem para onde vão as verbas destinadas a pesquisa. Dados de 2004 mostram que, do total de 195 postos de assessores, as mulheres somavam 43 (22%) – fração ainda menor que aquela observada no caso das bolsas de produtividade. Em algumas áreas, a situação era ainda pior. É o caso de agronomia, bioquímica, biofísica e genética, nas quais não havia nenhuma assessora em 2004. Desses quatro comitês, apenas o de genética teve mudanças significativas. Em 2006, cinco de seus sete membros eram pesquisadoras.
Esse problema não é exclusivo do Brasil. Mesmo em nações desenvolvidas, as cientistas enfrentam dificuldades para ascender na carreira. Segundo Jacqueline, um exemplo é a França, um dos países de maior tradição científica do mundo, onde ao longo das últimas duas décadas não houve nenhuma mudança significativa em relação ao acesso das mulheres à função de professeur, a de maior destaque e reconhecimento nas universidades francesas. "Com exceção da área de literatura, em todas as outras elas não passaram de 10% do total ao longo destes 20 anos", diz. "Em funções de menor prestígio, no entanto, elas chegaram a ocupar até 50% dos postos."
Hierarquia
Os Estados Unidos, país líder da ciência mundial, são outro exemplo. Dados da National Science Foundation (NSF) de 1998 mostram que a maior participação feminina na academia (45%) ocorre no cargo de menor prestígio, assistant professor. No mais importante, professor – equivalente ao professor titular nas universidades federais brasileiras –, o quadro se inverte totalmente em favor dos homens (50% deles, para 24% do total de mulheres).
Ainda nos Estados Unidos, dados da mesma agência apontam outra diferença entre os sexos: o salário. Mesmo entre os pesquisadores mais experientes, com mesma idade e titulação, os vencimentos dos homens são, em média, 20% maiores do que os de suas colegas. A diferença é ainda maior quando se comparam cientistas de titulação inferior. Essa é uma realidade observada em todas as instituições daquele país e em praticamente todas as áreas do conhecimento.
No Brasil, oficialmente não há diferenças salariais, pois a maioria está empregada nas universidades e institutos públicos de pesquisa, nos quais os salários são fixos, de acordo com os diferentes níveis da carreira. "No entanto, se pensarmos que os homens ocupam os cargos hierarquicamente mais altos dessas instituições, que são os mais bem remunerados, e que são eles os mais favorecidos pelos mecanismos de aumento salarial das agências de fomento (como a concessão de bolsas de produtividade do CNPq), chegamos à conclusão de que, apesar de não haver diferença nos salários, as mulheres recebem remunerações menores", diz Jacqueline. "Assim, embora em teoria os salários sejam os mesmos, na prática cientistas homens tendem a ter ganhos mais altos, tanto no Brasil como em outros países."
Com efeito, à medida que se chega ao topo da carreira vai diminuindo o número de mulheres. Segundo Suely, a reitora da USP, as possíveis explicações para esse fato estão relacionadas a resistências de caráter cultural, ainda observadas na sociedade, e à necessidade de a mulher compatibilizar a vida profissional com a familiar. "Soma-se a isso a valorização ainda vigente, em muitas comunidades, de padrões masculinos", acrescenta. "É preciso ressaltar, no entanto, que há uma evolução em curso. O mundo necessita, hoje, de valores femininos, como sensibilidade e criatividade, flexibilidade e emotividade, além de capacidade de trabalho em equipe, entre outros."
Muito trabalho
Do ponto de vista pessoal, a reitora da USP se considera uma vitoriosa por ter superado, ao longo da carreira, os obstáculos que apareceram. "Ocupei, durante minha trajetória na USP, e sempre em decorrência de votação significativa, vários cargos, como chefe de departamento, presidente da Comissão de Pós-Graduação, diretora de unidade, pró-reitora de Pós-Graduação, até chegar à reitoria. Vale mencionar que, para o cargo máximo, fui eleita em primeiro escrutínio, fato que há 16 anos não ocorria na USP. No entanto, em todas essas posições foi necessário trabalhar muito para ter visibilidade." Por essa razão, ela considera sua eleição para o cargo de reitora da USP tanto uma vitória pessoal como, em parte, das mulheres.
Segundo as conclusões da conferência "Mulheres Latino-Americanas nas Ciências Exatas e da Vida", realizada em novembro de 2004 no Rio de Janeiro, isso ocorre porque, de modo geral, a visão que a sociedade tem do cientista é a de um homem de meia-idade, de comportamento anti-social. Ou seja, o trabalho científico seria essencialmente masculino. Além disso, existem estereótipos em relação a aptidões e atividades profissionais, assim como de imagem, principalmente nas áreas de ciências exatas e tecnológicas. Tudo isso tende a afastar as jovens, particularmente na faixa dos 15 aos 17 anos, período em que devem escolher a carreira que seguirão.
Não há dados precisos sobre essa questão, mas a física Marcia Barbosa, da UFRGS, uma das organizadoras da conferência realizada no Rio de Janeiro, diz que, em termos de percentuais, as mulheres estão mais presentes na biologia, depois na química e por último na física. "Em física, minha área, temos 20% de professoras nas universidades federais e cerca de 16% de pesquisadoras", informa. "Esses números parecem baixos, mas são elevados se compararmos com a Alemanha, onde o índice desce para menos de 5%, ou os Estados Unidos, em que, apesar de uma brutal ação afirmativa, mal chega a 12%."
Segundo Marcia, que coordena o Programa de Pós-Graduação em Física da UFRGS, as razões de os homens serem maioria nas ciências exatas são complexas. "Na conferência de 2004, organizamos uma mesa-redonda para discutir se isso advém de tendências sociais ou biológicas", conta. "De acordo com os resultados do debate, o social seria o fator dominante. Em outras palavras, as mulheres vão mais para a biologia porque se imaginam mais biólogas. Pessoalmente, realizei testes com meninas no ensino médio e observei que a idéia que elas fazem do físico é ruim, o que as afasta notadamente mais do que os meninos, que nessa idade parecem se importar menos com a imagem."
Preconceito familiar
Ao final de três dias de debates, as participantes do evento de 2004 chegaram à conclusão de que as cientistas enfrentam toda sorte de dificuldades para ingressar, permanecer e crescer profissionalmente em uma carreira científica. Entre os principais obstáculos estão o preconceito e a ausência de apoio ou incentivo de membros da família e da sociedade para que elas se dediquem a esse objetivo. Além disso, há falta de perspectiva no mercado de trabalho, em conseqüência de situações de discriminação, tais como a existência de posições exclusivas para homens ou condicionadas a pesquisadoras que não tenham filhos.
Aquelas que conseguem vencer essas barreiras e ingressar no sistema se deparam com outros obstáculos. "A dificuldade é que a mulher, além do trabalho, também tem os filhos e a casa para cuidar", diz a geneticista Ana Tereza Ribeiro de Vasconcelos, coordenadora do Laboratório de Bioinformática do Laboratório Nacional de Computação Científica (LNCC). "Além disso, muitas vezes o marido não aceita a ausência de casa." Nesse aspecto, ela pessoalmente não tem do que reclamar. Aos 45 anos, Ana Tereza, casada, mãe de dois filhos, de 17 e 15 anos, e, faz questão de dizer, dona de um cachorro, garante que a família nunca atrapalhou sua carreira. "Ao contrário, no meu caso ajudou", diz. "Aprendi a dividir e a aproveitar muito mais o meu tempo, tanto qualitativa como quantitativamente, com minha família."
Marcia, de 47 anos, divorciada e sem filhos, lembra que o período em que se exige mais duramente da profissional em ciência é o do doutorado e do pós-doutorado, que coincide justamente com a idade de ter filhos. "O sistema desconsidera que durante a gravidez a profissional vai publicar menos, pesquisar menos e, por isso, acaba apresentando menor produtividade que seus colegas", diz. "A demora em terminar o doutorado e publicar artigos vai ser cobrada durante toda a vida da cientista." Segundo a pesquisadora, isso se reflete em aspectos importantes, como a obtenção de dinheiro para pesquisas. Os recursos vão para os mais bem ranqueados em produtividade. Como o desempenho das cientistas é prejudicado temporariamente, elas ficam alijadas do financiamento ou têm maior dificuldade para obtê-lo.
De acordo com Marcia, mesmo quando opta por não constituir família, a mulher é encarada como alguém que "vai ter filhos e parar". "Temos de matar um leão por dia para sermos chamadas de caçadoras, enquanto os homens podem matar um por mês."
Teto de cristal
Por causa dessas tantas dificuldades, os especialistas que estudam a questão de gênero na ciência criaram a expressão "teto de cristal" para designar os obstáculos que as mulheres têm de enfrentar para chegar a postos mais altos da carreira científica. Ao subir profissionalmente, elas se deparam com uma cobertura superior invisível e rígida, através da qual é possível ver o céu (o máximo na ascensão da carreira), mas que é difícil senão impossível atravessar.
Diante desse quadro, Jacqueline, da UFRJ, conclui que a inserção da mulher na atividade científica tem de ser entendida como algo que envolve tempo e, muitas vezes, o repúdio a idéias preconcebidas. "Nesse processo, todos devemos estar atentos para não reproduzir atitudes, ações, palavras que corroboram esses estereótipos e preconceitos", alerta. "A inserção da mulher no mercado de trabalho é algo mais recente em nosso país do que em outros, mas deve ser encarada naturalmente. E na ciência não é diferente."
Segundo ela, o importante é garantir a todos, de ambos os sexos, o acesso à educação, principalmente superior. "No caso específico da inserção no mundo da ciência, nós, cientistas, também temos de fazer nossa parte", afirma. "Mostrar mais exemplos de mulheres em áreas tradicionalmente ocupadas por homens, tais como as de engenharia e física, e desenvolver e estimular atividades que visem desmistificar a imagem clássica do cientista são modos de auxiliar esse processo."
![]() | |