Postado em 31/10/2006
Animais e plantas ressurgem nos buracos deixados pela extração de areia
CELIA DEMARCHI
Jacaré no Criadouro Gimbo / Foto: Celia Demarchi
A várzea do rio Paraíba do Sul, bastante agredida sobretudo nos últimos 30 anos, está revivendo. Ironicamente, por meio do passivo ambiental deixado pela atividade econômica que mais a degradou nesse período – a extração de areia. Além de desmatar, os areeiros abriram centenas de imensas cavas ao longo das margens, criando em boa parte de sua extensão uma seqüência de lagos sem beleza nem vida. Nos últimos anos, porém, com o reflorestamento das bordas dessas lagoas, várias espécies de pássaros e alguns mamíferos começaram a reaparecer na região, enquanto peixes nativos do rio encontraram em suas águas – limpas – um novo habitat. As cavas também estão servindo de base a empreendimentos variados, como hotéis, pesqueiros ou criadouros de peixes e até de jacarés.
"A tendência é que as áreas de cavas se transformem em um grande nicho ecológico", diz Antonio Alberto Casanova, engenheiro agrônomo e sócio da Agra Consultoria Ambiental, de Taubaté (SP). Na atividade há 18 anos, ele diz que, bem antes da chegada dos areeiros, quase toda a mata das várzeas já havia sido arrancada e transformada em carvão para secagem de arroz e cozimento de tijolos: "Com os lagos, animais que já não se viam por aqui ou cuja população havia diminuído drasticamente reapareceram, como o jacaré-de-papo-amarelo, algumas aves e peixes".
Casanova explica que, dos escassos peixes que ainda sobrevivem nas águas poluídas do trecho paulista do rio, alguns acabam sendo transportados para as lagoas no lombo das capivaras, nas patas dos marrecos ou no bico de garças e outras aves aquáticas. E os que se reproduzem em águas mansas, como o lambari, encontram nas cavas condições ideais para a desova. "As lagoas assumiram a função das áreas de inundação, que no Paraíba, com vazão totalmente controlada, já não existem", diz ele.
O resgate da várzea começou nos anos 1990, depois que a Secretaria do Meio Ambiente (SMA) do estado de São Paulo estabeleceu um plano de zoneamento e a obrigatoriedade de recuperação, por meio de reflorestamento com espécies nativas, de uma faixa de 25 metros a partir da borda das lagoas. E se intensificou nos últimos anos, quando a fiscalização se tornou mais rigorosa.
Levantamento aerofotogramétrico feito por Benedito Jorge dos Reis, diretor do Departamento de Agricultura e Meio Ambiente do município de Tremembé (SP), mostra que em 2003 existiam 256 cavas de areia entre as cidades de Jacareí e Pindamonhangaba (a 78 e 136 quilômetros de São Paulo, respectivamente). Essas lagoas ocupavam, segundo o estudo, um total de cerca de 17 milhões de metros quadrados – cada uma pode ter até 30 metros de profundidade e lâmina de água com área superior a 200 mil metros quadrados.
A pequena Tremembé, com pouco mais de 37 mil habitantes e 192 quilômetros quadrados de território, concentra, segundo Jorge dos Reis, aproximadamente 36% da área desses lagos: são 6 milhões de metros quadrados, correspondentes a cerca de 60 cavas, 70% das quais já foram mineradas e agora começam a ser recuperadas. Com tamanho passivo ambiental, e projetando que a extração de areia ainda se estenderá por mais dez anos dentro de seus limites, o município é um dos que mais têm apoiado projetos de ocupação das lagoas.
Alternativas de exploração
Um dos empreendimentos mais antigos que aproveitam a água de cavas de areia em Tremembé é o Criadouro Gimbo, iniciado em 1999 no bairro do Padre Eterno, a 3,5 quilômetros do centro da cidade. O produtor Francisco Matsuhiko, que durante muito anos arrendou sua propriedade, de 960 mil metros quadrados, para areeiros, hoje usa a água dos dois lagos deixados por eles – com área total de 400 mil metros quadrados, a 100 metros do rio – para criar jacarés-de-papo-amarelo em tanques de concreto.
Circulam diariamente, pelos 20 tanques de reprodução e pelos dez usados para o crescimento dos animais, 80 mil litros de água. O plantel contabiliza atualmente 530 matrizes, de três a quatro anos, que em fase de reprodução valem R$ 1.000 cada uma. Matsuhiko ainda não vende para abate, mas prevê que a produção será insuficiente para atender à demanda a partir de 2010, quando acredita que passará a comercializar de mil a 1,5 mil cabeças por ano e faturar pelo menos R$ 1 milhão.
Do jacaré – que pode ser abatido por volta de dois anos de vida – aproveita-se pouco no Brasil: apenas a carne, geralmente destinada a casas especializadas em pratos exóticos da capital paulista, e a pele, enviada a fabricantes de calçados e acessórios de couro do Rio Grande do Sul, segundo o produtor. "Nos Estados Unidos e na Austrália nada se perde, da cabeça aos dentes", diz ele.
Também fica em Tremembé o Pesqueiro Tata Vargas, que ocupa duas cavas resultantes da mineração (cada uma com cerca de 1,8 mil metros quadrados) e está em vias de obter licenciamento. Renato Vargas, que extraiu areia por quatro anos da propriedade, de 145,2 mil metros quadrados, às margens da Rodovia Pedro Celete, no Bairro do Aterrado, inicialmente povoou os lagos com tilápias.
Um ano atrás, ele passou a cobrar R$ 5 de quem quisesse pescar nas lagoas, que costumavam ser invadidas. A demanda o forçou a criar infra-estrutura para receber os pescadores (lanchonete, banheiros) e a ampliar o projeto. Vargas decidiu manter um "pesque e pague" em um dos lagos e alugar trechos às margens do outro, de 10 metros cada um. Os locatários pagam um aluguel de R$ 60 mensais e podem erguer em seus pontos pequenos ceveiros – ou seja, cômodos semelhantes a palafitas, para guardar material de pesca e até dormir. "A idéia é de lazer de fim de semana. A pessoa pode pernoitar ou passar o dia com amigos ou a família", explica o empresário. Ele já alugou 27 pontos e pretende chegar a 60.
Com essas atividades, Vargas espera ter de volta, em três anos, os cerca de R$ 50 mil que está investindo no empreendimento. Ele também tem planos de expandir o negócio ao longo dos próximos anos – pensa em instalar um restaurante e comprar cavalos para a prática de cavalgadas, estratégia que visa atingir um público diferente do que freqüenta os pesqueiros.
Os peixes também estão dando lucro ao empresário Roberto Saburo Aoki, sócio-diretor do Porto de Areia Tubarão, no bairro de Quiririm, em Taubaté. Ele cria tilápias há três anos em uma das quatro cavas nas quais a mineração foi encerrada. No lago, de 120 mil metros quadrados, ele instalou dez tanques-rede, que produzem atualmente 12 toneladas de peixe por ano, em duas safras, que rendem em torno de R$ 48 mil – o quilo é vendido a pesqueiros da região por R$ 4.
Outras duas cavas desativadas do Porto Tubarão foram vendidas: às margens de uma delas está surgindo um hotel e ao lado da segunda um resort para o público da terceira idade, aproveitando, segundo Aoki, o cenário criado com a recomposição da natureza no lugar. "Os peixes, como lambaris e traíras, logo aparecem nas lagoas após o fim da mineração. Depois, com o reflorestamento, surgem marrecos, garças, capivaras e até jacarés", explica ele.
Nas quatro cavas em que o Porto Tubarão ainda atua, as quais devem se esgotar em cerca de 10 a 15 anos, a mineração está sendo feita de modo que a área fique preparada para um segundo projeto econômico: "Estamos trabalhando com previsão de uso futuro", diz Aoki.
A criação de peixes também está dando vida a cavas deixadas por areeiros na Fazenda do Poço, em São José dos Campos (SP), o maior município paulista do vale do Paraíba, com cerca de 610 mil habitantes. A propriedade, da Universidade do Vale do Paraíba (Univap), fica dentro de uma região conhecida como Banhado.
Nos seus 6 milhões de metros quadrados, existem 16 lagos, com profundidade de 15 a 30 metros e área total de lâmina de água de 500 mil metros quadrados. A produção de tilápias – espécie escolhida pela viabilidade comercial e fácil adaptação a tanques-rede – começou há um ano em duas das lagoas e já rendeu 4 toneladas de peixe, que foram distribuídas a comunidades carentes. A meta, segundo o prefeito do campus Urbanova da Univap, Ronaldo dos Santos Batista, é produzir 10 toneladas anuais, mas o potencial é muito maior: pode-se obter essa mesma quantidade em cada lago de 10 mil metros quadrados.
A piscicultura integra o projeto Conhecer para Conservar, que busca formas de recuperação das áreas degradadas pela extração de areia. De acordo com a bióloga Maria Regina de Aquino Silva, professora do curso de engenharia ambiental da Univap, a proposta é estudar espécies originais do rio Paraíba, que possam vir a repovoá-lo.
A pirapitinga é a primeira da lista. Depois, deverão ser pesquisados a piabanha e o surubim, considerados em extinção: "Acreditamos que ainda há possibilidade de repovoar o Paraíba, se conseguirmos reduzir a poluição", afirma a pesquisadora, ressalvando, porém, que os peixes acabariam descendo para o trecho mais baixo do rio, depois da cidade de Queluz, última da parte paulista do vale do Paraíba.
Rio ruim, rio sagrado
No combate à poluição, hoje proveniente principalmente de esgoto doméstico, a Sabesp está investindo R$ 200 milhões na expansão do serviço de tratamento sanitário na região, segundo Duva Leonardo Steck Brunelli, integrante do Comitê das Bacias Hidrográficas do Rio Paraíba do Sul, fórum oficial formado por integrantes da sociedade civil e do governo para discutir e decidir o uso da água. É o mesmo destino de 85% dos R$ 6 milhões disponibilizados este ano para projetos de recuperação ambiental selecionados pelo comitê. A maior parte desses recursos provém da cobrança pelo uso da água do rio, iniciada em 2003. Os investimentos em obras desse tipo, no entanto, dificilmente darão conta do problema. "A tendência é a poluição não piorar. Acredito que vai diminuir, mas isso não é consenso, pois as cidades continuam crescendo", diz Brunelli.
Até agora, um só município da região, Pindamonhangaba, trata 100% do esgoto urbano e praticamente todo o da área rural, graças a uma série de investimentos em saneamento básico iniciada ainda nos anos 1970, quando seus cofres começaram a inchar com os recursos provenientes dos impostos das grandes indústrias que ali estavam se instalando.
As demais cidades do vale do Paraíba, porém, estão bem longe de alcançar esses índices de tratamento de esgoto e, ainda que seguissem o exemplo de Pindamonhangaba, dificilmente o rio – e a região – tornaria a ostentar a exuberância que tinha no século 16, quando somente índios e bandeirantes desbravavam seus mistérios. É pouco provável, também, que ele voltasse a desfrutar do título de principal núcleo de pesca de água doce do estado de São Paulo, recebido em 1950, segundo o livro Paraíba do Sul, Rio Sagrado, de autoria do fotógrafo João Teodoro Alves e da jornalista Luciana Almeida Braga, publicado pela empresa Johnson & Johnson em 1997. No ano daquela conquista, a atividade rendeu aos pescadores locais 400.895 quilos de 26 diferentes espécies de peixes, segundo a publicação.
Acará, surubim, anduiá, carpa, cascudo, ximboré, mocinha, sagüiru, jacundá, piau, piabuçu, tuvira, tabarana, piapara, curimbatá, piaba, robalo, tambiú, dourado e corvina já não caem nas poucas redes que ainda são lançadas no desvitalizado trecho paulista do Paraíba. Sobraram escassos exemplares de bagres, lambaris, traíras, mandis e piabanhas nesse segmento do rio, de margens desmatadas e águas poluídas, pontilhadas de usinas hidrelétricas, que impedem a piracema e a reprodução.
A realidade mudou de forma drástica, especialmente a partir do início dos anos 1980, no acidentado e extenso Paraíba, palavra tupi que significa "rio ruim", em alusão à dificuldade de navegação em suas águas. Com extensão total de 1.120 quilômetros, segundo o Ministério de Transportes, o rio começa em São Paulo, na confluência do Paraitinga com o Paraibuna, entra no Rio de Janeiro, onde percorre um trecho da divisa com Minas Gerais, e desemboca no Atlântico em São João da Barra, no norte fluminense.
Em seu curso médio inferior, porém, a situação é bem diferente. Nos 150 quilômetros que antecedem a foz, trecho conhecido por "domínio das ilhas", o Paraíba volta a ser fértil. Ali, onde não existem barragens, as matas ciliares estão preservadas e as águas mais depuradas e oxigenadas – graças inclusive ao encontro com o rio Pomba, seu maior afluente –, 148 espécies de peixes povoam suas águas e dão trabalho a 1,8 mil pescadores artesanais. São formas juvenis de traíras, sairus, curimbatás, dourados, surubins, bagres, piaus, piabanhas e dezenas de outras. Na fase adulta, esses peixes nadam rio acima, para a desova.
Nesse trecho, o Paraíba chega a alcançar a largura de 300 a 700 metros e abriga ilhas de até 700 mil metros quadrados, que são habitadas por famílias ou comunidades de pescadores, segundo o biólogo Guilherme Souza. Ele dirige o Projeto Piabanha, baseado na cidade fluminense de Itaocara, que estimula e apóia a piscicultura com espécies nativas do rio ameaçadas de extinção, inclusive distribuindo alevinos. Sua intenção é também repovoar o Paraíba, conscientizando ao mesmo tempo os pescadores da importância da preservação ambiental.
Defensor da piscicultura como fonte alternativa de renda para pescadores artesanais e agricultores familiares, Souza vê com desconfiança os empreendimentos que florescem no trecho paulista do rio. Ele lembra que a piaba, resistente, já escapou dos pesqueiros para seu leito e tomou o espaço das espécies nativas. Anteriormente, a introdução do dourado já havia causado enorme estrago – o peixe assumiu o topo da cadeia alimentar do rio, antes ocupado pela piabanha, que quase desapareceu: "Gostaríamos de criar peixes nativos, mas escolhem a piaba, que é como um frango de corte: come pouco, cresce rapidamente e assim dá lucro", diz o biólogo. "A piaba vive há muito tempo no Paraíba. Mas as espécies naturais que restaram ficaram mais agressivas", explica o consultor Casanova, que inclusive defende a interligação das lagoas ao rio, para facilitar a migração dos peixes durante eventual inundação.
Saudades da pesca
Não muito distante do campus Urbanova da Universidade do Vale do Paraíba (Univap), em São José dos Campos, resiste ao tempo e à falta de peixes do Paraíba do Sul uma antiga comunidade de pescadores – ou piraquaras, como se identificam, com orgulho. A vila chama-se Beira Rio e abriga 30 famílias, cerca de 120 pessoas.
O primeiro a chegar ao lugar, sozinho, há quase três décadas, foi Alziro Ramos, hoje com 74 anos. Depois, ele levou Antônia, atualmente com 57 anos, com quem se casou e teve 14 filhos, dos quais criaram 13. Instalaram-se também no lugar filhos do primeiro casamento de Ramos e suas famílias. Todos viviam da pesca no Paraíba.
Ramos conta que, até o início dos anos 1980, apanhavam-se piabanhas de 7 a 8 quilos, havia abundância de traíras graúdas, cascudos, dourados, e era possível arrastar até 70 quilos de curimbatá de uma só vez. "Era até demais", diz o piraquara. "É uma pena que o curimbatá acabou", lamenta.
Hoje, os pescadores da Beira Rio se dividem durante o ano entre a captura de escassos mandis, lambaris e piabas, a confecção de redes de pesca e serviços de pedreiro ou trabalhos avulsos no Clube Santa Rita, na margem oposta do Paraíba, especialmente em dias de competição de golfe.
Erasmo Rodolfo Bertolino da Silva, de 26 anos, pai de um menino de um ano, pesca apenas casualmente, no começo do ano, quando a cheia favorece a ocorrência de peixes. "Nos outros meses, trabalho como servente de pedreiro", conta.
Quando não encontra outra atividade, Antônio Ramos, de 49 anos, que criou seus oito filhos com o produto da pesca, recorre à rede: "Mas às vezes não compensa". Pescar, explica ele, é muito cansativo, pois demanda horas no barco, que em certos trechos do acidentado rio tem de ser arrastado pelas margens. "Jogo a rede pelo menos para comer", diz Alziro, pai de Antônio. Mas peixe na mesa a família só vê uma ou duas vezes por semana.
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