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Raízes da violência

Postado em 01/05/1999

Por que nossos direitos não são direitos?

Leia a seguir as idéias da psicóloga Nancy Cardia*, do Núcleo de Estudos da Violência, da Universidade de São Paulo (USP), em palestra e debate realizados dia 10 de dezembro de 1998, no Conselho de Economia, Sociologia e Política da Federação do Comércio do Estado de São Paulo

NANCY CARDIA – Minha carreira como pesquisadora começou basicamente dentro do Instituto de Pesquisas Tecnológicas do Estado de São Paulo (IPT), onde eu fazia uma espécie de meio-de-campo entre arquitetos e engenheiros que buscavam soluções de moradia para a população de baixa renda e queriam saber o que essa população percebia como saída para o problema. Algumas das pesquisas com as quais eu me envolvi, naquela época, eram financiadas pelo Banco Nacional da Habitação (BNH), e buscavam melhorar as condições de saneamento em favelas. Uma dessas pesquisas sugeria como alternativa a instalação de fossas que seriam administradas coletivamente por seus moradores. Nesse tipo de trabalho, meu papel era identificar se existiam condições nessas comunidades de haver algum tipo de administração conjunta dos equipamentos coletivos ou se os problemas de competição e de relacionamento entre os moradores eram de tal monta que a solução encontrada tinha de ser descartada. Então o que eu fazia era verificar a adequação das soluções propostas às situações que ocorriam realmente e fazer o acompanhamento prático.
Isso me levou ao desenvolvimento de uma tese de doutorado, enfocando justamente a questão da possibilidade ou não de cooperação em situações que contêm uma tensão cotidiana muito grande, como costuma ocorrer nas favelas. Em minha dissertação de doutorado, aprofundei a questão da participação das pessoas nas associações de moradores de favelas, na região de São Paulo, considerando o grau de sucesso que essas associações tinham em conquistar melhorias para as favelas. Ao fazer esse trabalho, levantei várias questões, não só sobre o cotidiano na favela, mas sobre os estilos de liderança existentes ali. E descobri, para meu choque e horror, que a liderança democrática, ainda que fosse extremamente bem-sucedida em trazer ganhos para a população em termos de auto-estima e de cidadania, era menosprezada por essa população. Isso provocou uma mudança em minha carreira. Comecei a estudar então os problemas que não parecem tão visíveis aos nossos olhos, mas que constituem obstáculos muito grandes à democracia e à sua consolidação.
Essa preocupação começou com uma pesquisa que realizei em algumas favelas de São Paulo. Na ocasião, fui obrigada a entrar em contato com o problema da violência dentro das favelas e o papel que ela desempenhava também como obstáculo à participação dos moradores nas atividades das associações. Uma de minhas descobertas naquela época foi que a violência tem um poder desaglutinador quando vem de dentro do grupo. Ela faz com que as pessoas se afastem umas das outras, alimenta o medo e a suspeição, e isso cria um fortíssimo obstáculo a movimentos coletivos dentro das favelas. Essas duas problemáticas – a questão da democracia e da liderança democrática (do aprender a viver em democracia) e a da violência – foram colocadas para mim quando realizei meu trabalho de doutorado.
Há alguns anos, dentro do Núcleo de Estudos da Violência, venho me preocupando principalmente com a relação entre direitos humanos, a percepção desses direitos e a continuidade de suas graves violações. Esse é um dos aspectos paradoxais de nosso país. Podemos festejar hoje 50 anos da Declaração Universal dos Direitos do Homem, estamos comemorando praticamente 13 anos de democracia, podemos até dizer que em certos aspectos ela está consolidada, e, no entanto, vivemos junto com isso uma gravíssima situação de perpetuidade de violações dos direitos humanos.
No Núcleo de Estudos da Violência, temos um banco de dados que já contém 19 anos de informações e é alimentado basicamente pelo que é publicado na imprensa, porque ela é a única fonte que podemos usar para obter os dados de que necessitamos. Ele abrange quatro tipos de violência, que são também violações de direitos humanos, algumas perpetradas pela própria sociedade, outras por agentes do Estado. Temos nesse banco de dados praticamente quatro sub-bancos. Um deles trata da violência policial; outro, de linchamentos; um terceiro se refere a ações de grupos de execução sumária e o último, a violência rural. Fazemos rotineiramente análises do material contido nesse banco de dados e, para nossa surpresa, na última delas, que consistiu numa comparação entre a década de 80 e os anos de que dispomos até agora da década de 90, verificamos que está havendo – a despeito de uma nova Constituição e mesmo de governos democraticamente eleitos – um aumento desses quatro tipos de violações que mencionei.
Os casos que chamam mais a atenção, tanto pelo volume de mortos envolvidos como pela intensidade da violência praticada, explicitada não só pelo número de vítimas mas por sinais de tortura, pela existência de um grau exacerbado de agressividade, são as execuções sumárias e a violência policial. Esse banco de dados tem nos permitido examinar com detalhes esses fenômenos e, para se ter uma idéia, só na década de 90 até dezembro de 96, em termos de execuções sumárias, há registrados cerca de 1,8 mil casos em todo o país. A imprensa que serve de fonte para o banco de dados é a do Rio de Janeiro e a de São Paulo, portanto não estamos contando com jornais do norte, nordeste ou centro-oeste, o que constitui uma falha nossa, porque muitos casos locais não chegam até a imprensa nacional.
Os casos de execuções sumárias, como disse, são 1,8 mil, totalizando mais de 5 mil vítimas. Temos em média três vítimas por caso. Se na década de 80 havia algum tipo de restrição em termos do perfil da vítima, ou seja, crianças, pessoas idosas e mulheres grávidas eram poupadas nessas chacinas, na década de 90 esses interditos foram eliminados, e com freqüência estamos encontrando bebês, mulheres grávidas e idosos vitimados pelas ações desses grupos de execução sumária. Há uma intenção clara de eliminar todas as pessoas presentes, e não só aquelas que estavam implicadas em algum tipo de delito ou que eram suspeitas disso.
O mais preocupante é que em praticamente todas essas ações existe algum tipo de envolvimento da polícia. Isso é mais claro em alguns estados do que em outros. Fica até muito difícil, em termos conceituais, separar as ações de grupos de extermínio da violência policial. A diferenciação que fizemos, em termos gerais, é a seguinte: violência policial é aquela praticada em atos durante o serviço, quando os policiais estariam no exercício de suas atividades rotineiras de policiamento. Essa violência policial a que estou me referindo sempre se relaciona com a violência fatal. É interessante notar que uma das desculpas usadas pela polícia para seu envolvimento em delitos que provocam vítimas fatais é que os policiais não tinham como agir senão sair atirando. Mas o que observamos, computando a quantidade de policiais envolvidos por caso e relacionando-a com o número de vítimas, é que há uma super-representação de policiais. Nos casos que envolvem violência fatal, em policiamento cotidiano, há uma média de sete policiais por vítima em cada caso, ou seja, a super-representação de policiais é tão evidente que não justificaria o uso da força fatal.
Tendo em vista a continuidade dessas gravíssimas violações, nós nos perguntamos por que as coisas não mudam. Sempre que existe um evento de maior impacto, como a execução daqueles dois assaltantes de banco, no Rio de Janeiro, em 1997, por um policial militar diante das câmeras de televisão, por que esse tipo de evento não provoca uma reação de rejeição da população? Contrariamente a isso, as pesquisas de opinião que são realizadas imediatamente após esses acontecimentos sempre revelam um alto grau de apoio popular. Sentimos que parte da responsabilidade pela continuidade dessas graves violações está em uma atitude de não-indignação por parte da população em relação a essas ocorrências.
Temos tentado entender por que isso acontece, e a resposta não parece muito simples. Na verdade, é até razoavelmente complicada, e está, a nosso ver, profundamente relacionada com a própria questão dos direitos humanos como um todo, os quais se referem ao conjunto dos direitos sociais, econômicos, políticos, civis, trabalhistas e incluem, logicamente, o direito à integridade física.
Num trabalho realizado recentemente no núcleo – uma pesquisa desenvolvida somente na cidade de São Paulo –, testamos como pessoas de diferentes posições na sociedade viam essa questão, considerada pelas Nações Unidas como a dos direitos e proteções que caracterizam um certo padrão de desenvolvimento humano. O Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) usa uma escala de direitos e proteções e procura identificar os países que os possuem em sua legislação. Então testamos nossos entrevistados para saber, primeiro, se esses direitos que as Nações Unidas usam para caracterizar o nível de desenvolvimento humano de um país são considerados importantes ou não. Uma coisa é eles existirem na legislação e outra é a população valorizá-los. Em segundo lugar, perguntamos aos pesquisados se percebiam que isso consta das leis formalmente e, em terceiro, se sabiam que esses direitos existem, de fato, e como estão sendo aplicados, implementados. Aqui é que se define cidadania, entendida como a possibilidade de viver esses direitos que estão nas leis.
O que observamos nesse estudo como um todo é que há uma discrepância entre aquilo que as pessoas percebem como importante, o que está nas leis e o que elas vivenciam de fato. Há uma percepção razoavelmente majoritária – em termos dos direitos de ser considerado inocente até prova em contrário, de recorrer à ajuda legal, de ser julgado em público e com rapidez, de não permitir invasão domiciliar pela polícia e de evitar o bloqueio arbitrário dos bens – de que eles não valem. Há a percepção de um certo desrespeito aos direitos que existem mas não surtem efeito. Teríamos então, na visão desses entrevistados, uma lacuna entre aquilo que está em nosso quadro jurídico legal e aquilo que as pessoas experimentam no cotidiano.
É muito importante notar que também há uma falta de consenso entre os entrevistados quanto à importância desses direitos. Nem todos eles são percebidos como igualmente importantes. É mais interessante ainda a questão de ter uma nacionalidade. Esperamos normalmente que as pessoas sejam unânimes em dizer que é necessário ter uma nacionalidade, que se trata de um direito básico a partir do qual todos os outros existem. Se alguém não tem uma nacionalidade, não pode demandar os direitos contidos na legislação de seu país, pois não é reconhecido como uma pessoa existente. Mas nem em relação a isso encontramos unanimidade.
É notável também o fato de que não há unanimidade quanto à importância do direito de ser julgado em público. Isso já vai nos mostrando um desconhecimento das pessoas a respeito dos direitos que deveriam ser considerados como valores máximos em suas vidas. Não importa se alguém já os atingiu ou não, eles não deveriam ser tocados. Se vivemos numa democracia, ser julgado em público tem uma importância muito grande; significa proteger-se do arbítrio. O mesmo se passa com a questão de ser julgado com rapidez. Temos a impressão de que isso está atrelado ao fato de que com freqüência esses aspectos, como ser julgado com rapidez, não ocorrem, não são coisas com as quais as pessoas esperam contar. Aliás, elas acreditam que a Justiça é muito lenta e seus resultados, incertos.
Em relação a um outro conjunto de direitos – a oposição política pacífica, votar, igualdade política, legal, social e econômica para as mulheres, igualdade social e econômica para minorias étnicas, independência de jornais, rádios e TVs, de edição de livros, bem como de tribunais e sindicatos –, observamos novamente uma discrepância entre o que as pessoas valorizam, o que elas sentem que existe nas leis e o que vivenciam de fato.
Quando abordamos os itens liberdade, viajar pelo país, viajar ao exterior, associação pacífica, receber informações, denunciar violações de direitos humanos, continuou a discrepância entre o que existe na lei e o que é valorizado. O que parecia menos importante aos entrevistados era denunciar violações dos direitos humanos.
Mas o que mais nos preocupou foi a reação deles à questão das proteções, os direitos que estão atrelados à garantia da integridade física, em relação aos quais observamos maior discrepância entre o que está nas leis e o que é vivido pela população. Apenas 25% dos nossos entrevistados acreditam que de fato exista garantia legal contra o trabalho forçado ou de menores. Isso significa que para 75% dos entrevistados não há uma proteção efetiva. Além disso, menos de 30% dos entrevistados acreditam que existe de fato a proteção contra assassinatos e desaparecimentos ilegais – um direito básico numa democracia –, e que ela é praticada. Ou seja, aproximadamente 68% dos entrevistados pensam que não existe essa proteção. Em relação à tortura e à coerção, menos de 30% acreditam em sua existência. Apenas 45% dos entrevistados pensam que há proteção contra a pena de morte. Para uma parcela ponderável dos nossos entrevistados, a pena de morte, se não é reconhecida oficialmente no país, existe oficiosamente. Como já afirmei, o relato que apresentei com os resultados constantes de nosso banco de dados aponta para isso. Outras pesquisas em andamento, que mostram como as pessoas são mortas pela polícia e o que ocorre com os processos que envolvem policiais militares acusados de homicídios, comprovam que não só essas execuções ocorrem, mas também que não há punição para elas.
A proteção contra o castigo corporal também é considerada praticamente inexistente. Contra a detenção ilegal verificamos a mesma coisa. Há três tipos de proteção que aparecem como menos violadas: contra a adesão obrigatória a partido ou organização, contra a religião obrigatória nas escolas e contra o controle das artes. Quanto à censura política, à imprensa, à correspondência e à escuta telefônica, as pessoas não se sentem totalmente protegidas: a maioria continua achando que esses direitos só existem nas leis. O fato recente dos grampos no BNDES vem reiterar que essa percepção das pessoas, nesse caso, tem certa razão de ser. Os outros direitos arrolados pelo Pnud para avaliar o grau de desenvolvimento humano em cada país referem-se à igualdade de homem e mulher, à liberdade de escolha sexual entre adultos, à prática de qualquer religião, a poder determinar o número de filhos e ao direito a uma vida civilizada. Dentre esses, o direito a uma vida civilizada, a liberdade de escolha sexual entre adultos e a igualdade entre homens e mulheres seriam os três direitos considerados os menos vivenciados de fato pelos nossos entrevistados.
Poderíamos nos perguntar por que predomina esse estado de coisas e se essa é uma situação restrita à pesquisa que realizamos, causando uma sensação de violação dos direitos. E, apesar de as pessoas afirmarem que sentem que há uma discrepância, será que elas percebem que essa violação é considerada muito grave? O Ibope realizou uma pesquisa para a Comissão de Justiça e Paz em São Paulo, no Rio de Janeiro e em Recife, fazendo perguntas sobre a violação de certos direitos, que foi traduzida em fatos bem cotidianos, de maneira muito compreensível para a população, sob a forma de comportamento, acesso a serviços públicos, de ficar doente e não ter assistência médica, não ter o suficiente para comer, não receber salário adequado, não conseguir estudar por falta de dinheiro. Perguntou-se às pessoas se elas consideravam a violação muito grave ou pouco grave ou se não se manifestavam em relação a esses direitos, e a freqüência com que sentiam que ocorria a violação, se nunca, raramente, sempre, e como elas observavam isso.
Quando fizemos um estudo desses dados, analisando as respostas dos entrevistados de acordo com escolaridade e renda, observamos que, além da discrepância de renda vivida no Brasil, há uma outra em relação à percepção dos direitos, da gravidade da violação desses direitos e da freqüência dessas violações. É como se o país fosse dividido em dois: a população de baixa renda e de baixa escolaridade e a de alta renda e de alta escolaridade. O mundo da Declaração dos Direitos do Homem é vivenciado, valorizado e pensado pela população de mais alta escolaridade e de mais alta renda. A classe trabalhadora, a população com baixa escolaridade, vive praticamente à parte desse mundo da Declaração dos Direitos do Homem.
As respostas dadas são muito interessantes não só por essa discrepância na percepção da gravidade das violações. A população de baixa renda e baixa escolaridade admite também a ocorrência dessas violações com maior freqüência do que a de alta renda e alta escolaridade. Isso quase sugere uma certa anomia da população menos favorecida em relação aos seus direitos. Parte dessa anomia poderia ser explicada pela continuidade do temor pela própria vida, ou seja, quando o Estado não consegue conter a violência dos seus agentes encarregados de aplicar as leis, dá um recado muito ruim para a população. Ele diz o seguinte: "Os direitos existem, ma non troppo". Isso quer dizer que eles existem, mas vamos ver em que condições poderão ser vividos. A violência dos agentes do Estado não é um fator neutro nessa questão da percepção dos direitos humanos e muito menos na continuidade do não-acesso a esses direitos.
O argumento que quero desenvolver aqui é que parte da ausência de demandas coletivas organizadas pela população para que seus direitos sejam respeitados e para que a distorção que observamos seja reduzida provém do medo que a população tem do Estado. Ela se sente totalmente sem poder em relação ao Estado. Verificamos isso quando propusemos aos nossos entrevistados perguntas como: "O senhor sente que as leis devem existir para controlar o poder dos governantes?" Era como se estivéssemos falando grego para a população. Ela não consegue entender a noção de que as leis existem para proteger a cidadania do poder exagerado dos governantes. É como se estivéssemos mantendo um diálogo de terráqueos com marcianos. É muito interessante isso, mesmo porque algumas nações foram concebidas tendo em vista exatamente a necessidade de que as leis fossem elaboradas para conter o poder potencial exacerbado dos governantes. E para nós existe essa dificuldade de simplesmente dialogar com a população sobre isso.
Só para termos uma idéia da discrepância que estava mencionando, do fosso que existe entre a população de baixa renda e baixa escolaridade e a de alta renda e alta escolaridade na questão dos direitos sociais e econômicos, em São Paulo, enquanto 61% dos entrevistados com primário incompleto acham muito grave – é um dos direitos com maior consenso sobre gravidade – uma pessoa ficar doente e não conseguir assistência médica, 87% da população com o colegial ou mais também diz que isso é muito grave. E enquanto 39% dos pesquisados com primário incompleto dizem que isso ocorre sempre (na escala de violação de direitos é a categoria mais forte), na parcela com o colegial ou mais esse índice é de 31%, uma diferença de 8%.
Essa discrepância, que se mantém em relação a todos os direitos, torna-se mais profunda quando examinamos direitos trabalhistas. Existe um certo consenso entre os pesquisadores de que a população brasileira tem grande consciência da importância dos direitos trabalhistas e os conhece melhor. Se isso foi verdadeiro para um determinado período, e eu diria que se essas pesquisas tivessem sido feitas nas décadas de 50, 60 e até 70 esse dado seria correto, o que observamos hoje é que mesmo os direitos trabalhistas são muito pouco conhecidos pela população. O direito de associação e o de greve não são considerados muito importantes pelas pessoas, haja vista que, entre a classe trabalhadora entrevistada, apenas 17% afirmam que é muito grave o indivíduo ser perseguido por causa de greve por melhores condições de trabalho, ao passo que entre as pessoas com o colegial ou mais 37% acreditam que isso seria muito grave. Ficar desempregado sem auxílio-desemprego leva apenas 27% das pessoas com primário incompleto a dizer que se trata de algo muito grave, justamente as que têm a maior probabilidade de ficar desempregadas sem auxílio-desemprego; já entre as pessoas com o colegial completo, mais de 52%, mais do dobro do total, consideram essa ocorrência muito grave. É importante notar também que só 15% daqueles que têm primário incompleto e 25% dos que ganham até dois salários mínimos consideram muito grave ser punido ou perseguido por participar de uma greve política ou sindical. Cerca de um quinto deles considera que isso nunca acontece.
Quando avaliamos a percepção que as pessoas têm desse conjunto de direitos, observamos que a violação dos direitos sociais e econômicos é considerada mais grave. As pessoas tendem a minimizar a violação dos direitos políticos, civis, trabalhistas e, em segundo lugar de gravidade, o direito de acesso à livre informação. Pergunto aos senhores como podemos constituir uma cidadania democrática forte com uma população que não valoriza os direitos políticos e civis, não considera grave sua violação, não dá importância às conquistas que foram feitas na área trabalhista e não reconhece como importante o acesso à liberdade de informação.
Para termos uma idéia do que estou dizendo sobre os direitos políticos, o fato de um candidato se eleger porque usou mais dinheiro na campanha é considerado muito grave por apenas 22% da população com primário incompleto. O candidato que se elege porque usou mais dinheiro na campanha é a negação da igualdade política, da igualdade de acesso à representação. O impacto que isso tem para a democracia é enorme, mas passa despercebido pelos nossos pesquisados. Mesmo entre a população de mais alta escolaridade e mais alta renda, 69% dos entrevistados consideram muito grave o candidato se eleger porque usou mais dinheiro na campanha. Não há unanimidade. Até nesse grupo temos um percentual que não nota a importância de haver igualdade de competição. Em outras nações há debates profundos sobre isso. Nos Estados Unidos, a questão do financiamento das campanhas, de modo a garantir o mínimo de igualdade entre os candidatos, é muito importante, mesmo que seja utópica. Quando falamos de direitos, estamos falando em linhas gerais muitas vezes de utopias, que são usadas como um consenso coletivo. O resultado da questão referente ao poder das autoridades de impedir o voto é ainda mais grave: só 10% da população com baixa escolaridade e 11% da população com baixa renda acham que é muito grave as autoridades impedirem o voto. Ser pressionado para participar de uma associação política ou comunitária é muito grave para apenas 15% da população de baixa escolaridade e para 25% da população de baixa renda.
Em termos da questão da integridade física, o quadro que temos é o seguinte: o uso da tortura pela polícia é considerado muito grave por apenas 22% da população com primário incompleto, enquanto 55% dos entrevistados com o colegial ou mais consideram muito grave essa prática. Numa democracia consolidada também esperaríamos um consenso maior, entre aqueles de mais alta escolaridade, de que o uso de tortura pela polícia não é admissível numa sociedade civilizada. Ser preso sem razão é considerado muito grave por 37% daqueles com primário incompleto. Em termos de direitos humanos no sentido mais restrito, o que parece mais preocupante para as pessoas com baixa escolaridade e baixa renda é ser preso sem razão, ser morto por algum criminoso e um marido agredir a mulher. Mesmo no caso de ser morto pela polícia, que poderíamos esperar que 100% dos entrevistados considerassem muito grave, apenas 32% dos que têm primário incompleto dizem que isso é muito grave, enquanto 68% dos que têm mais alta escolaridade afirmam a mesma coisa. Também seria de se esperar que aqueles com mais alta escolaridade fossem mais consensuais em termos de rejeitar a morte provocada pela polícia. E devo dizer que não foi qualificado o tipo de pessoa morta pela polícia. Pelas discussões em grupo, realizadas paralelamente a essas entrevistas, a esses questionários aplicados pelo Ibope, conseguimos esclarecer que as ações praticadas pela polícia tendem a ser interpretadas como se fossem dirigidas a suspeitos, mesmo que não se use a expressão "suspeito". A partir do momento em que a polícia age contra um cidadão, o estigma de suspeito é associado a essa pessoa. E a diferença semântica entre suspeito e culpado para a maioria da população é zero. Suspeito e culpado são equivalentes, são sinônimos. E por que isso ocorre? O mais paradoxal e chocante não é que a população faça essa conexão entre suspeito e criminoso já julgado, condenado e sentenciado, mas é o fato de que ela não acredita na polícia. Por que isso é paradoxal? Sabemos, por pesquisas realizadas em outros países, que se dá maior liberdade de ação à polícia à medida que se acredita mais nela. Ou seja, em países onde goza de um alto grau de confiança por parte da população, a polícia tem maior liberdade de ação. Por quê? Porque as pessoas partem do princípio de que a polícia não faria nada ilegal. No nosso caso, porém, os entrevistados não só desconfiam da polícia, como também não acreditam no Judiciário. E mais: não confiam no sistema penal como um todo.
Então o que explicaria essa maior liberdade atribuída à ação da polícia? O que observamos é que nossos entrevistados se dividem em dois grupos. Vou tentar explicar rapidamente por que uma outra maneira de olhar o mesmo dado foi reagrupar nossos entrevistados a partir das respostas que eles davam em relação às graves violações de direitos humanos. Agrupamos todos os entrevistados que concordavam com o uso de tortura pela polícia, com a pena de morte, com a opinião de que é menos preocupante ser morto pela polícia do que ser morto por um criminoso, que concordavam que a polícia podia bater em presos e que não concordavam que o Estado deveria fazer um grande esforço para acabar com as ações dos grupos de extermínio, e procuramos verificar em que medida eles se diferenciavam dos outros. Ficamos com dois grupos: o que estava tendendo a aceitar as graves violações dos direitos humanos e o que as rejeitava. É claro que existe uma série de arbitrariedades quando se faz esse tipo de análise, mas, como eram análises quantitativas, nós nos permitimos isso. Esses dois grupos têm algumas diferenças muito interessantes. Em primeiro lugar, o grupo que tende a aceitar as graves violações também é propenso a perceber todas as violações de direitos sociais, econômicos e políticos como muito freqüentes, mas costuma atribuir a mais baixa gravidade a essas violações. Apesar de termos notado que a população de baixa escolaridade e baixa renda atribui menor gravidade às violações dos direitos humanos, quando fizemos um novo agrupamento, baseados na atitude com relação às graves violações do direito à integridade e à vida, observamos que havia tanto pessoas de alta escolaridade e de alta renda quanto de média escolaridade e de média renda nesse novo grupo. Ou seja, não pudemos entender as diferenças para aprovar ou reprovar essas graves violações em termos de educação e renda. São atitudes e apoios que atravessam grupos sociais, econômicos e educacionais. Acho que essa idéia não deve causar estranheza, porque imagino que mesmo em nosso grupo social existam pessoas que apóiam essas arbitrariedades praticadas pela polícia, pessoas que justificam o uso da violência por parte da polícia na tentativa de aplicar as leis, ainda que ela acabe violando as mesmas leis que deveria estar colocando em prática.
O fato de esses dois grupos variarem na percepção da freqüência com que os direitos são violados quase nos sugere a idéia de que, se as pessoas acham que uma coisa é importante mas nunca pode ser vivida realmente, vai se criando uma frustração que só cresce ao longo do tempo. E contra quem se volta essa frustração? Contra o agente causador dela, contra o Estado que não preenche esses direitos ou contra outros? Há aqui um motivo de reflexão quanto à classe social à qual pertence a pessoa que apóia as graves violações. Observamos que a população de baixa renda e baixa escolaridade não volta a sua frustração pelo desrespeito aos direitos contra o Estado ou os grupos que são social, econômica e hierarquicamente superiores a ela. Ela a volta contra os seus pares e contra aqueles que percebe como abaixo dela. Isso explica inclusive porque temos tanta dificuldade para encontrar uma identidade coletiva social forte entre a população de baixa renda. Na verdade, a vivência das graves violações não une essa população. Ela não tende a perceber o outro como um igual, alguém que está na mesma situação que ela. Pelo contrário, vê no outro um competidor. A escassez de vivência de direitos não tem levado nossa população a desenvolver coesão e compaixão, mas tem conduzido a uma exacerbação da competição por direitos que ela vê como bens escassos. Então a busca de direitos é entendida como a procura de um bem muito escasso e como um jogo de tudo ou nada: "Para eu ter esse direito, alguém não vai ter, porque não dá para todos".
Essa não-universalidade dos direitos não é uma fantasia da população. O próprio Estado não consegue fazer valer as leis e os direitos em todo o território nacional nem para todos os grupos sociais. Vivemos isso diariamente, está expresso na imprensa, nem é preciso justificar. Mas essa realidade causa impacto, porque o grupo leva algumas pessoas a apoiarem graves violações de direitos humanos. E como elas fazem isso? Elas vão computando para definir a quem é justo ter acesso ao direito. Não há uma noção de justiça e de acesso universal a esse direito. Há a percepção de que esse acesso é uma troca em que ocorre o que chamamos de justiça retributiva. Precisa existir uma troca entre o esforço que alguém coloca dentro da sociedade e o direito que retira dela; e tem de haver um equilíbrio nessa troca. Não há um direito natural, universal, pelo simples fato de termos nascido neste país, termos sido registrados aqui e reconhecidos como cidadãos. Para termos direito aos direitos, é preciso merecer, e o merecimento vem do equilíbrio entre o esforço despendido na sociedade e aquilo que se está pretendendo retirar dela.
No caso do grupo que não aceita as graves violações de direitos humanos, há uma visão menor, vamos dizer, de avaliação, de mérito ou não. É um grupo que tende a perceber os direitos de uma maneira mais universal e a defender mais as questões ligadas à igualdade. Está aí um outro ponto de diferença. Aqueles que aceitam as graves violações de direitos humanos tendem a aceitar também a desigualdade natural entre as pessoas. Assim, nem como utopia se mantém a noção de uma igualdade genérica entre os indivíduos. É isso o que permite seu raciocínio a respeito de mérito, de equilíbrio entre a contribuição que o indivíduo faz à sociedade e aquilo que retira dela. Além disso, há uma percepção diferenciada a respeito do que é a violência na sociedade, o que essa violência representa em termos de ameaça para cada um, o que a explica e como é possível corrigi-la. O grupo que aceita as graves violações de direitos humanos sente a ameaça da violência como alguma coisa muito mais próxima, muito mais concreta. Essas pessoas acreditam que há alta probabilidade de se tornarem vítimas de algum delito. Atribuem o crime a problemas e desvios individuais, sem causas estruturais, e tendem a perceber o criminoso como irrecuperável. Não é só o sistema penal que falha. Seria muito difícil constituir um sistema penal que nunca falhasse. Dependendo do tipo de delito cometido, esse grau de recuperabilidade é muito maior, porque a possibilidade de esse criminoso refazer o dano que provocou à vítima é muito grande. É praticamente impossível, por exemplo, no caso de um assassino, que ele corrija o dano provocado, porque não pode devolver a vida à vítima. Esse tipo de reparo do dano e a possibilidade de corrigi-lo estão embutidos na visão que se tem do criminoso e na avaliação que se faz do que deve ocorrer com ele. Então, se o indivíduo provocou um dano irreparável, a única maneira de corrigir o dano é eliminá-lo da sociedade.
Já o grupo que não aceita essas graves violações tem uma outra percepção da origem do crime e da violência, de quem é o criminoso e da possibilidade de se reparar ou não o dano; possui também uma outra visão da Justiça. Esse grupo não acredita na Justiça em termos de igualdade de acesso a ela, em rapidez dos julgamentos, na possibilidade de que a Justiça seja igual para todos independentemente da condição econômica do indivíduo. Mas eles também se preocupam muito com a possibilidade de erros judiciários e é justamente por isso que não aceitam a pena de morte. Seu argumento é que a Justiça erra, e quando há pena de morte o erro se torna irreparável.
Na visão dessas pessoas, o crime não é provocado só por desvios individuais, mas também por problemas estruturais; as carências na sociedade acabam criando uma cultura em que existe, em certas circunstâncias, até um incentivo à delinqüência. Elas não percebem o criminoso como irrecuperável. Apesar de não confiarem no sistema penitenciário tal como está organizado hoje em dia, acreditam que, se esse sistema mudasse, se existisse realmente uma reeducação e uma socialização nas penitenciárias, os bandidos seriam recuperáveis. A posição delas diante dos criminosos e da violência se reflete no comportamento que têm em relação a essas graves violações, principalmente às produzidas por agentes do Estado.
Por que é preocupante o fato de que uma parte da população aceite que os direitos humanos sejam violados, inclusive na sua integridade física, em nome da obtenção do que seria uma segurança, na opinião dessas pessoas? Porque à medida que essas pessoas vão justificando essas graves violações, vão evoluindo para justificar a eliminação do outro. Se o criminoso é irrecuperável e se as pessoas aceitam sua eliminação, caminha-se em direção a um processo que chamamos de exclusão moral e que está explicitado nesses comportamentos de aceitação da tortura praticada por policiais e das mortes provocadas pela polícia. Quando o filho de Pinochet disse que o que aconteceu no Estádio Nacional, em Santiago do Chile, não foi uma matança, porque aqueles que foram mortos eram animais, fica clara essa posição em relação aos direitos humanos. Nesse sentido, essas pessoas realmente acreditam que aqueles que morreram não eram seres humanos. Isso se chama exclusão moral, porque conduz as pessoas a um processo coletivo de desativação de mecanismos de alto controle moral, que as leva a aceitar que um determinado grupo da sociedade seja colocado fora do mundo da justiça. Isso significa que um grupo de pessoas deixa de fazer parte daquele mundo no qual leis e direitos são adotados e em que existem proteções.
Isso é muito preocupante, pois é óbvio que essas coisas tendem a crescer. A desativação de mecanismos de autocontrole moral nunca ocorre da noite para o dia, ela vai se impondo com a aceitação de pequenas atrocidades cometidas contra pessoas que são percebidas como muito desiguais e vai avançando, assim como a própria violência. Esta é aceita, consensualmente, na psicologia atual como algo que é aprendido. Ninguém nasce violento; no máximo podemos dizer que alguns indivíduos apresentam características de agressividade mais exacerbada. Apesar disso, hoje em dia a violência é reconhecida como algo que se aprende. Tanto ela é aprendida que, em situações de guerra, os governos têm que preparar os seus exércitos para matar, e para isso precisam denegrir a imagem do inimigo, a fim de justificar a intenção de tirar sua vida. A exclusão moral é mais ou menos um processo em termos simbólicos, mas que tem funcionado, no cotidiano das pessoas, na sua separação dentro de uma sociedade em grupos desejáveis, que têm que ser protegidos, que têm acesso aos direitos, e em grupos que são indesejáveis e que se tornam cada vez mais passíveis de ter seus direitos violados, podendo ocorrer até mesmo sua eliminação física.


* Nancy Cardia é mestre em psicologia pela Universidade de São Paulo e Ph.D. em psicologia pela London School of Economics and Political Science.
É coordenadora do Núcleo de Estudos da Violência, órgão da Universidade de São Paulo dedicado a pesquisas e consultoria em psicologia aplicada a problemas sociais.
Participa de associações internacionais como a British Psychological Society, tendo realizado pesquisas conjuntas na Fundação Rockefeller e na Universidade de Ottawa, no Canadá.
Participou também, inclusive como coordenadora, de inúmeras pesquisas sobre direitos humanos, além de outras de caráter técnico, como as realizadas no Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT).
Publicou inúmeros trabalhos sobre violência, assuntos policiais e direitos humanos, temas que também apresentou e debateu em seminários, congressos e simpósios no Brasil, México, França, Portugal, Argentina e Chile.

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