Postado em 01/05/1999
Participação feminina na vida pública permanece baixa
CECÍLIA PRADA
Examinada como um todo, a sociedade continua a apresentar uma chocante desigualdade representativa, no que se refere à participação da mulher na vida política e à ocupação de postos avançados, quer nas carreiras profissionais quer nos quadros de dirigentes políticos. Em escala mundial, as mulheres ocupam, em média, apenas 10% dos assentos parlamentares, com variações que vão desde 35% nos países nórdicos a 4% nos Estados árabes.
No Brasil, a mulher ocupa aproximadamente 7% dos assentos parlamentares, na área federal. Nas câmaras estaduais a porcentagem variou, na eleição de 1998, de 0% (Amazonas) a 19,44% (Paraíba).
As sucessivas convenções, fóruns e conferências internacionais promovidas pela ONU - da Convenção dos Direitos Políticos da Mulher, em 1952, à Quarta Conferência Mundial sobre a Mulher, realizada em Beijing (Pequim) em 1995 - enfatizaram a igualdade política como condição prévia para que a situação de desigualdade estrutural se modifique. No entanto, após 40 anos de árdua luta são minguados os resultados obtidos. Relatórios da União Interparlamentar, organização ligada à ONU, afirmam que "apesar dos progressos inevitáveis, a vida política e parlamentar continua dominada pelos homens, em todos os países".
O melhor exemplo de desigualdade representativa pode ser encontrado nos próprios fóruns mundiais: dos 185 representantes permanentes nas Nações Unidas, em dezembro de 1994, apenas seis eram mulheres.
Salários menores
Mas não há nada a estranhar, nesses dados. Obviamente a mulher, recém-chegada ao cenário político, considerada até algumas décadas atrás como "cidadã de segunda categoria" - no Brasil, até 1962, a mulher casada era juridicamente equiparada aos silvícolas, menores e loucos de toda espécie -, sofre ainda, concretamente, discriminações de caráter cultural, econômico e social. No mercado de trabalho, em escala mundial, os salários femininos representam, para o desempenho de funções idênticas, apenas de 50% a 80% do salário dos homens. No Brasil, essa proporção é de 63%.
Além disso, persistem, num grande número de países, a violência e a opressão familiar e social, institucionalizadas, contra a mulher - que vão aos extremos das mutilações sexuais praticadas em meninas, nos países árabes, ou dos assassinatos justificados e impunes de mulheres, por "motivos de honra". As condições de saúde e bem-estar, para as mulheres e para as famílias, também não têm melhorado. Pelo contrário, verifica-se, globalmente, um empobrecimento cada vez mais acentuado dos segmentos femininos da população, juntamente com o acúmulo cada vez maior de funções, dentro da família.
Essas condições criam um círculo vicioso: se, por um lado, a igualdade completa somente será atingida quando as mulheres puderem partilhar o poder político, com faculdade de criar e modificar leis, como esperar que isso aconteça se as condições extremamente adversas não possibilitam a formação de uma elite de mulheres políticas?
A socióloga Eva Blay, ex-senadora, professora titular da USP e coordenadora científica do Nemge (Núcleo de Estudos sobre a Mulher e os Relacionamentos Sociais de Gênero, também da USP), comenta o tema: "Além de todas as dificuldades e barreiras objetivas, resultantes da multimilenar opressão que sofremos, temos de lutar contra nosso próprio despreparo para exercer o poder político, a nossa timidez, a maneira como fomos criadas. A política é um jogo duro, essencialmente masculino, e que corresponde inclusive a uma visão do mundo, a um sistema de valores que não é habitualmente o da mulher. Tanto que as mulheres que triunfam na política são sempre as que vêm de famílias de políticos, como Indira Gandhi, Alzira Vargas, Roseana Sarney. E que imitam o modelo masculino de poder. Vide Margaret Thatcher, a Dama de Ferro. Em geral a mulher começa a se tornar conhecida pela participação em movimentos sociais, pela luta por melhores condições de vida, na comunidade. Só então atinge a esfera do poder político. Foi o que aconteceu comigo". Eva Blay nunca tinha pensado em seguir uma carreira política. Mas foi instada a compor como primeira suplente a chapa de Fernando Henrique Cardoso, quando ele se candidatou a senador, em 1986. Em 1992, quando se afastou para ser ministro das Relações Exteriores e, depois, da Fazenda, antes de candidatar-se à presidência, Eva Blay assumiu o cargo. "Gostei do espaço que encontrei, apresentei e aprovei projetos relativos aos direitos da mulher. Mas quando começamos a aparecer, a ter prestígio, as barreiras surgem, a discriminação fica patente. As grandes jogadas políticas são combinadas entre os homens. E os colegas de profissão chegam até a mudar de assunto, quando chega alguma mulher..."
No Brasil, o voto feminino só foi estabelecido, em âmbito nacional, por um decreto de 1932. Curiosamente, a lei federal foi precedida em 1927 por uma lei estadual, no Rio Grande do Norte. Em 1929 foi, também naquele estado, eleita a primeira mulher prefeita da América do Sul, Alzira Soriano. A primeira deputada brasileira foi a médica paulista Carlota Pereira de Queiroz. Em 1936, a carioca Berta Lutz, cientista e advogada, filha do cientista Adolfo Lutz e destemida lutadora feminista, foi também eleita deputada. Em 1920 ela fundara no Rio de Janeiro, com Maria Lacerda de Moura, a Liga pela Emancipação Intelectual da Mulher. Outra deputada pioneira foi Chiquinha Rodrigues, criadora da Bandeira Paulista de Alfabetização.
"É interessante lembrar", diz Eva Blay, "como as mulheres brasileiras durante as ditaduras, tanto na de Getúlio como no período pós-1964, lutaram pela redemocratização do país. Quando o Partido Comunista foi colocado na ilegalidade, por exemplo, muitas mulheres continuaram a luta política, com a retirada dos homens do cenário. Nos anos 60 e 70, foram também as mulheres, quer individualmente quer em coletivos, como nos Grupos de Mães formados pela Igreja Católica, que assumiram a militância. E assim começaram a lutar também pelos seus direitos. O movimento feminista dos anos 70 surgiu, no Brasil, ligado à luta política."
Tecido de contradições
Nesse quadro, alguns dados paradoxais merecem atenção especial.
Como explicar que muitas vezes os lugares mais atrasados apresentem um índice maior de participação política feminina? Nas últimas eleições (1998) tivemos o seguinte panorama: enquanto em São Paulo, em 1996, após a aplicação da Lei Municipal de Cotas, o número de vereadoras praticamente havia dobrado (de 3.893 a 6.536), em 98, após a Lei Federal de Cotas, o número total de deputadas eleitas no país caiu. E a participação feminina foi maior em alguns estados menos desenvolvidos: 19,4% na Paraíba, 19,05% no Maranhão, contra 8,7% em São Paulo, 4% no Rio Grande do Sul e apenas 1,85% no Paraná.
Essa proporção também é registrada em países da América Latina e do Caribe: a participação política das mulheres é de 33,9% nas Bahamas, 30% em Antigua, 24,7% na Colômbia, e de somente 13,1% no Brasil. Na Argentina é de 3,2% e no Uruguai de apenas 2,9%.
A explicação é bem simples, como salienta Lucia Avelar em seu livro Mulheres na elite política brasileira: nas comunidades menos desenvolvidas prevalecem as tradições conservadoras e a defesa dos interesses de famílias ou oligarquias. As mulheres eleitas são as que representam o continuísmo desses interesses. Portanto, esses dados não significam um progresso social e muito menos a existência de luta pela emancipação.
A jurista Florisa Verucci, ex-consultora da República, iniciadora na década de 80, com Sílvia Pimentel, dos estudos que resultaram no Novo Estatuto Civil da Mulher, diz: "Vivemos um momento interessante, mas muito cheio de contradições. O movimento dos anos 60 e 70 teve conquistas importantes, reformulação de algumas leis, formação de conselhos da mulher, criação de delegacias especializadas, maior conscientização dos direitos femininos. Mas muitas dessas instituições precisam ser revistas". Segundo a jurista, os conselhos e as delegacias tornaram-se inoperantes e estão colhidos num impasse, pois, embora sem dúvida representem os interesses de segmentos importantes da sociedade, acabam tendo uma ação limitada, fragmentada pelo fato de não fazerem parte do governo, dependerem de verbas inexistentes e não terem autonomia. "Há um hiato profundo entre teoria e prática. A começar pela reforma do Código Civil e pelo texto da Constituição de 88, pois de nada adianta que as leis sejam modificadas quando na prática não temos ainda nem mesmo regulamentação dos princípios gerais. O Novo Estatuto Civil da Mulher, embora aprovado nas duas casas do Congresso, não foi promulgado até hoje, pois foi anexado ao Novo Código Civil, ainda em tramitação no Senado. As discussões se arrastam há anos, e enquanto isso a própria realidade social vai mudando, aumentando o fosso entre a matéria legal e a sua aplicação prática."
Essa situação persiste também no campo político. Apesar das leis de cotas, a prática política é conduzida de maneira não-eqüitativa até dentro dos próprios partidos mais progressistas, que parecem não saber lidar ainda com as mulheres - neles, bem como nos sindicatos, estamos ainda parados naquela discussão já bem antiga: devem eles abrigar um "departamento feminino" para cuidar dos interesses das mulheres? Ou isso já seria, em si, uma discriminação? Mas se esse núcleo feminino não existir, saberão, ou quererão, os companheiros homens cuidar dos interesses das mulheres?
O que se viu e se vê, nos momentos de revoluções e lutas sociais, é sempre a mesma coisa: a mulher é usada como força de manobra, companheira de lutas, boa para, equalizadamente, enfrentar a prisão e até a morte. Mas assim que os revolucionários chegam ao poder, este se restabelece como essencialmente masculino, fecham-se as estruturas tradicionais da opressão - e às companheiras restará servir o cafezinho, continuar a distribuir folhetos, ou organizar um "departamento feminino". O melhor exemplo disso foi Alexandra Kollontai, escritora, líder política de primeiro plano, que lutou ao lado de Lênin na Revolução Russa. Estabelecido o governo soviético, sofreu o ostracismo mais acintoso, no qual acabou seus dias.
As leis e os números
Diz ainda Florisa Verucci: "A lei tenta minimizar as desigualdades, remediar uma situação, restabelecer o equilíbrio entre os diversos segmentos da sociedade. A política de cotas é a expressão de uma política mais geral de ações afirmativas, isto é, que tentam interferir no quadro social. Tivemos até agora duas leis de cotas: nas eleições municipais de 1996, a lei 9.100/95 estabeleceu que um mínimo de 20% de vagas de cada partido ou coligação deveriam ser preenchidas por candidaturas de mulheres. Em 1998, a lei 9.504/97 estabeleceu, em âmbito federal, o mínimo de 30% e o máximo de 70% para candidatos de cada sexo. Só que a tarefa de preencher essas vagas não foi fácil nem para os partidos nem para as próprias mulheres. Muitos recorreram a 'laranjas'". Na verdade, não há um número suficiente de mulheres que possam, em todo o território nacional, exercer liderança política. O homem tem atrás de si toda uma máquina, uma tradição de vivência política. E esta requer um conhecimento de todos os mecanismos e interesses, legítimos ou espúrios, lobbies, corporações religiosas, grupos de pressão. "Nós somos mais ingênuas, despreparadas. Ou, pelo contrário, temos uma outra visão do mundo, mais idealista. Eu própria tive essa experiência: fui candidata a deputada federal em 1985, requisitada pelo PMDB. Mas nem cheguei a fazer a campanha até o fim, achei que não era o meu espaço. Quando o PSDB foi fundado, cheguei a me entusiasmar, fui candidata a vereadora, mas sempre me parecia que estava apenas representando um papel. Empenhei-me mas não fui eleita, e achei ótimo. Minha contribuição à causa da mulher está atualmente limitada à atuação profissional."
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