Postado em 01/05/1999
No delta do Parnaíba, a riqueza natural sustenta o homem
OLAVO BRITO
O rio Parnaíba, que faz a divisa entre os estados de
Piauí e Maranhão, percorre 1.458 quilômetros e, antes de alcançar o oceano Atlântico,
abre-se em leque, dando origem a um santuário ecológico: o delta do Parnaíba. De
início o rio se divide em cinco braços, que depois se ramificam numa infinidade de
igarapés, formando cerca de 80 ilhas. Curiosamente, esse presente da natureza, que cobre
uma área de 2,7 mil quilômetros quadrados de pura beleza, o equivalente a duas vezes o
território ocupado pela cidade de São Paulo, é ainda um dos locais menos explorados da
costa brasileira. Por isso mesmo, quem tem o privilégio de navegar pelos intrincados
meandros formados pelos igarapés que recortam a região, cercados de praias desertas,
dunas imensas, florestas de restinga e mangues, tem a exata noção do que é um lugar
selvagem.
Ali, grandes extensões permanecem intocadas pelo homem, e do encontro das águas do rio
com o oceano resulta um rico ecossistema. Segundo Miguel Ângelo Andrade, biólogo e
professor da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de Belo Horizonte, a fartura de
alimento disponível nas águas e nos manguezais que margeiam as ilhas é responsável
pela abundante fauna que habita o local. E ele explica: "A grande quantidade de
matéria orgânica trazida pelo rio faz dessa região um verdadeiro berçário de peixes,
crustáceos e aves".
Esse paraíso de natureza exuberante foi descoberto pelo navegador português Nicolau
Resende, em 1571, depois que se salvou de um naufrágio. A conquista do território, no
entanto, custou muito sangue. Os índios tremembés, que viviam na área, lutaram
ferozmente para conter o avanço do homem branco, mas acabaram dizimados. Hoje a região
do delta está dividida entre o Maranhão, que detém cerca de 75% do território, e o
Piauí, estado cujo litoral tem apenas 66 quilômetros de extensão.
Declarado pelo governo federal área de proteção ambiental em 1996, o delta do Parnaíba
é o único das Américas que fica em mar aberto, ou seja, que não é limitado por uma
baía. Por seu tamanho e pela riqueza ambiental que abriga, figura entre os três mais
importantes do mundo, ao lado dos deltas do rio Nilo, na África, e do rio Mekong, na
Ásia.
Como se vive no delta
A qualidade de vida nas comunidades do delta, em geral, é boa, apesar do trabalho duro e
da pobreza. No povoado das Canárias, por exemplo, que leva o nome da ilha em que se
encontra, a maioria dos moradores vive da pesca, e é uma gente forte e sadia. Embora
enfrentem dificuldades como a falta de energia elétrica - um gerador movido a diesel
funciona apenas das 18 às 22 horas - e tenham de retirar do poço a água para consumo,
ali ninguém passa fome. Há um forte sentimento de integração e de solidariedade entre
as pessoas, e isso evita que qualquer das famílias fique sem ter o que comer.
Um aspecto que impressiona à primeira vista é a grande quantidade de crianças e o
sorriso luminoso que exibem logo que é vencida a timidez, o que não demora muito. Não
só os pequenos, mas também os adultos têm dentes saudáveis e brancos, muito brancos.
Nas palavras de Manoel "Janjão", um ex-pescador que nasceu e sempre viveu nas
Canárias, "aqui as pessoas não adoecem porque comem vivo", referindo-se à
comida fresca e de boa qualidade que consomem. E não é só o que retiram do rio e do
mar: ali quase todo mundo cria galinha, porco, cabra, e tem uma rocinha onde planta alguma
coisa para pôr na mesa. Isso sem contar as frutas colhidas na ilha, como o coco, o caju,
a manga e o murici.
No povoado das Canárias, que tem cerca de 1,3 mil habitantes, a terra pertence à Igreja,
segundo os moradores. Mas, se alguém quiser construir uma casa, basta escolher o local e
erguer a construção, sem ter de pagar nada pelo terreno. Administrativamente, a
jurisdição pertence ao município maranhense de Araioses, que mantém ali uma escola com
classes até a quarta série do ensino fundamental. Quem quiser continuar os estudos terá
de viajar de barco diariamente até a ilha Grande de Santa Isabel, já em território do
Piauí, e freqüentar a escola do povoado de Morro da Mariana, onde o ensino vai até a
oitava série. Se alguém quiser prosseguir, terá de ir para a cidade de Parnaíba, no
continente.
Não é difícil imaginar que poucas famílias têm condições de arcar com as despesas
de transporte dos filhos. Por isso, e também porque ali todo mundo começa a trabalhar
cedo para ajudar no sustento da família, raros são aqueles que passam da quarta série.
Papel de médico
Entre os adultos, na maioria analfabetos, poucos foram além da primeira série. Zé do
Carmo, de 59 anos, é uma exceção. Ele é a autoridade em saúde daquelas redondezas.
Qualquer pessoa que adoeça por ali prefere se tratar com ele a procurar o posto de saúde
que funciona nas Canárias, já que não há médico no local. Bem-disposto, Zé do Carmo
acha natural caminhar até 30 quilômetros para chegar a povoações vizinhas a fim de
prestar atendimento.
Toda essa dedicação e seriedade no trabalho, que pode ser uma simples aplicação de
injeção ou até pequenas cirurgias, incluindo orientações sobre higiene e prevenção,
lhe valeram uma consideração especial por parte daquela gente. Para se ter uma idéia,
ele é padrinho de 132 pessoas, entre adultos e crianças.
Seu passatempo preferido é ler. As revistas são sua distração, mas ele também se
detém na leitura dos livros de medicina que possui, para melhor tratar de seus pacientes.
Da família de 15 irmãos, coube a ele cuidar da mãe idosa, com quem vive. Nunca se
casou, porém isso não o impediu de criar quatro filhos adotivos, todos já adultos e com
famílias formadas.
Várias vezes Zé do Carmo foi convidado a se candidatar a vereador, mas nunca aceitou,
decepcionado com a política no Brasil. E cita a situação do posto de saúde como
exemplo do caos que, em sua opinião, reina na administração pública. "Trabalhando
como autônomo, ganho em média três salários mínimos por mês. Queriam me contratar
por apenas um salário, mas eu recusei, pois não achava direito baixar meus rendimentos.
Hoje o posto tem 18 funcionários, cada um deles ganhando um salário, e são todos
leigos, sem nenhum preparo para cuidar das pessoas."
Segundo Zé do Carmo, "todo mundo nas Canárias é católico praticante", embora
o povoado não conte com um pároco. Apenas nas duas grandes festas religiosas da
comunidade, São João Batista, em junho, e Nossa Senhora das Dores, em dezembro, é que
um padre vem de Araioses para rezar missa. E nessas ocasiões ele tem muito trabalho, pois
é também quando são realizados os casamentos e batizados dos fiéis.
Com exceção dos domingos, dia de descanso das pessoas, a vida nas Canárias segue uma
rotina mais ou menos fixa. Os homens saem bem cedo em seus barcos para pescar e voltam só
no meio da tarde. As mulheres, por sua vez, cuidam da casa e dos filhos, fazem a comida e
vão para o rio lavar roupa. A hora de lavar roupa, aliás, é determinada pelo ciclo das
marés. Como, na altura do povoado das Canárias, a água do rio fica salgada com a
maré-cheia, as mulheres só podem lavar roupa com a maré vazante, quando a água fica
doce. E, enquanto dão conta do trabalho, as crianças, quase sempre com pouca ou nenhuma
roupa, juntam-se em grupos para brincar de "manta" (pega-pega), subir em
árvores ou se divertir com seus barquinhos na beira do rio.
Trabalho no mar
A vida de pescador, na região do delta, exige muita disposição e bons músculos. Num
barco movido a remo e a vela, que lá eles chamam de canoa, quatro homens saem mar adentro
em busca do peixe, que nem sempre cai na rede. Não é incomum ver esses barcos de volta,
depois de um dia de trabalho, com peixe suficiente apenas para a alimentação das
famílias dos pescadores. Mas, quando a produção é boa, no fim da tarde eles rumam para
o porto dos Tatus, na ilha Grande de Santa Isabel, para vender o que apanharam.
O proprietário de barco que sai para pescar repassa parte do lucro a seus companheiros.
Se nenhum deles for o dono do barco, terão de entregar metade do lucro ao proprietário,
a título de aluguel. Os peixes mais capturados naquela área são pescada-amarela,
camurupim (que chega a pesar até 60 quilos), robalo - que lá é chamado de camurim - e,
eventualmente, tubarão.
Para não ter problemas com a fiscalização do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e
dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), quem vive da pesca deve se cadastrar numa
associação, que no delta é chamada de colônia de pescadores, pois do contrário
poderá ter o fruto de seu trabalho apreendido. Para fazer o cadastramento, o pescador
paga R$ 10 de jóia, mais uma mensalidade de R$ 2,50.
É nessa associação que são repassadas ao pescador as instruções do Ibama
relacionadas a essa atividade, como, por exemplo, a proibição da pesca no período da
piracema - desova dos peixes -, que em geral acontece de janeiro a março. Durante esses
três meses, os pescadores cadastrados têm direito a receber, da Caixa Econômica
Federal, um salário mínimo por mês, a título de salário-desemprego.
Segundo Antonio Carlos Oliveira, o "Tonhão", uma boa semana de pescaria
significa a captura de pelo menos 50 quilos de peixe, o que representa, em média, uma
renda de R$ 100. Mas há casos de pescadores que conseguem mais de 100 quilos de peixe num
único dia, embora isso não aconteça com freqüência.
Aos 29 anos, Tonhão, casado e pai de dois filhos, é dono de uma canoa e, além de
pescar, também planta arroz, normalmente em dezembro, para colher em maio. Uma parte do
que produz é reservada para o consumo, a outra ele vende. Mas faz uma ressalva: "Nos
últimos anos, o inverno (como é chamado na região o período das chuvas, que vai de
dezembro a março) não tem sido bom, por isso nem compensa plantar". Sua esposa, que
é costureira, também trabalha para contribuir no orçamento familiar.
Assim como Tonhão, Manoel Janjão também pescava e plantava arroz. Mas deixou a canoa e
a plantação para os filhos. Aos 60 anos, ele agora carrega gente pelo delta em seu barco
a motor. De olhos vivos e atentos aos detalhes, está sempre pronto a se embrenhar no
labirinto de igarapés que conhece como as linhas da própria mão.
Foi numa noite estrelada, olhando para o céu, deitado na areia próximo à fogueira onde
seu filho Antônio assava pedaços de um saboroso camurupim pescado pela manhã, que
Manoel Janjão perguntou ao biólogo Miguel: "Professor, é verdade mesmo que o homem
já 'posou' na Lua, ou é só papo pra compor história?"
Homens da lama
No delta do Parnaíba, quem não é pescador vive de catar caranguejo no mangue. E, se
essa atividade não requer tanta força quanto remar mar adentro para pescar, por outro
lado exige destreza e uma enorme dose de disposição. Afinal, passar boa parte do dia
atolado na lama malcheirosa ou equilibrando-se sobre as raízes aéreas dos manguezais,
rodeado por nuvens de pernilongos e mosquitos, não é nada fácil.
A comunidade da Caiçara, que também fica na ilha das Canárias, é um lugar onde vivem
vários desses homens da lama. Quase todos analfabetos, são pessoas afáveis, de riso
fácil, que brincam muito enquanto trabalham.
"Aqui não existe malandragem, todo mundo é legal e trabalhador", conta
Raimundo Nonato Brandão, de 18 anos, catador de caranguejo desde os 15. De uma família
de dez irmãos, ele foi o único a permanecer ali. Os demais se mudaram para Fortaleza, na
esperança de encontrar uma vida melhor. Aprendeu o que sabe apenas observando os mais
velhos, e diz que um dos segredos é manejar bem o cambito, um ferro de aproximadamente 35
centímetros de comprimento, com a ponta em forma de gancho, que serve para puxar o
caranguejo quando está muito afundado na lama.
Raimundo revela que seu maior temor é sofrer um acidente no trabalho, como escorregar e
se cortar nas ostras incrustadas nas raízes do mangue. Mas acrescenta que todos por ali
são cuidadosos e que é raro alguém se machucar seriamente. Para enfiar a mão na lama
em busca do caranguejo, ele, como os outros, usa uma proteção de tecido grosso enrolada
em todo o braço e nos dedos, para evitar arranhões. Outra providência, dentro do
mangue, é manter um cigarro feito com papel pardo e fumo escuro, de cheiro muito forte,
sempre aceso na boca, baforando a fumaça para afastar mosquitos e pernilongos.
Os pouco mais de cem habitantes da Caiçara também recorrem a Zé do Carmo quando
adoecem. Foi o que aconteceu com Francisco das Chagas Souza de Andrade, o
"Titico", de 33 anos, casado e pai de dois filhos. Ele conta que se lembra de
ter ficado doente uma única vez na vida, alguns anos atrás. Certa noite, acordou com uma
forte dor no testículo esquerdo, que foi inchando e piorando durante duas semanas,
impedindo-o de trabalhar. Até que alguém foi procurar Zé do Carmo, relatou o que estava
acontecendo e voltou com duas injeções, que deveriam ser aplicadas com um intervalo
preciso de três dias. Titico seguiu a recomendação e sarou completamente, mas nem tem
idéia de qual foi o medicamento que o curou.
Titico só fica aborrecido quando fala que seus filhos, um de nove e outro de dez anos,
não vão à escola. "Em época de 'política' (eleição), os homens aparecem por
aqui fazendo promessa, e é promessa grande. Mas depois nem uma professora pra ensinar as
crianças eles mandam." Em sua opinião, um dos motivos para as famílias daquelas
redondezas serem tão grandes é o fato de ninguém por ali ter qualquer garantia no
futuro. Então, sem direito a uma aposentadoria, quem pára de trabalhar também deixa de
ganhar. Por essa razão, quando envelhecem, as pessoas passam a ser sustentadas pelos
filhos.
Lazer a bateria
A vida dura na Caiçara também tem seus momentos de descontração. Como no vilarejo não
há energia elétrica, nem mesmo um gerador, a solução para garantir a grande paixão de
todos por ali, as telenovelas, é utilizar baterias para ligar a televisão. O mesmo
recurso é usado por Francisco Chaves da Silva para fazer funcionar seu aparelho de som,
do qual muito se orgulha. Aos domingos, depois de jogar uma pelada no campinho de areia,
que, pela forma, lembra uma pista de skate (alto onde ficam as traves e baixo no meio),
ele se reúne com os amigos para ouvir música, tomar cerveja e bater papo.
A julgar pela quantidade de garrafas espalhadas pelo quintal de sua casa, Francisco, que
continua solteiro aos 29 anos, aproveita bem seus momentos de folga. Segundo ele, aquilo
eram os restos de uma festinha que havia feito com uns amigos e amigas no fim de semana
anterior. Na hora de trabalhar, porém, Francisco é sério como todos os seus
companheiros. Ele está entre os que mais produzem na Caiçara. Chega a catar mais de cem
"cordas" de caranguejo por semana, o que lhe dá uma renda mensal superior a R$
200. Uma "corda" representa quatro caranguejos presos com palha de carnaúba,
material que os catadores colocam para secar e levam já pronto para o mangue. Dez cordas
juntas formam um amarrado, perfazendo um total de 40 caranguejos.
Como são poucos os catadores que possuem barco, e os caranguejos são comercializados no
porto dos Tatus, na ilha Grande de Santa Isabel, o proprietário de um barco passa
comprando a produção dos catadores, que depois leva para revender. Em geral, o dono do
barco paga semanalmente aos catadores e ganha uma porcentagem pelo transporte da
mercadoria.
Uma coisa de que os catadores precisam se lembrar sempre é que, se houver uma única
fêmea entre os caranguejos de um amarrado, todo o produto será apreendido pelo Ibama.
Segundo Francisco de Paula Oliveira, natural das Canárias e funcionário do Ibama desde
1989, lotado na unidade de Parnaíba, "a região do delta é a principal produtora de
caranguejo do país e, para continuar assim, as fêmeas devem ser preservadas, para
garantir a reprodução".
Francisco de Paula mostra em números o que representa o comércio de caranguejo no porto
dos Tatus. "São comercializadas, em média, 150 mil cordas por mês. Como, em geral,
cinco cordas pesam 1 quilo, temos aproximadamente 30 toneladas de caranguejo saindo daqui
a cada 30 dias." A maior parte vai para Fortaleza, no Ceará. Teresina é outro
destino certo para os caranguejos, enquanto uma pequena quantidade fica em Parnaíba
mesmo.
É impressionante observar os barcos carregados chegando ao porto dos Tatus, e mais ainda
ver grandes caminhões saírem abarrotados de caranguejos. É ali que o Ibama faz a coleta
de dados que permite manter sob controle essa atividade, que, se for desenvolvida de forma
racional, como vem acontecendo, não oferece nenhum risco ao meio ambiente.
Roteiro turístico
Quem quiser conhecer o delta do Parnaíba pode chegar até lá pelo Maranhão ou pelo
Piauí. Embora a maior parte do território seja maranhense, fica no Piauí aquela que é
considerada a capital do delta: Parnaíba. Com uma população de 130 mil habitantes, a
cidade já conheceu dias de glória, antes da decadência.
Há mais ou menos dois séculos, Parnaíba foi um importante pólo exportador do país. Os
fazendeiros das redondezas criavam gado e vendiam a carne salgada - o charque -, que era
disputada por compradores de todo o país e do exterior. Com esse comércio efervescente,
a cidade viveu um bom período de riqueza e fartura.
Nessa época, em Parnaíba se formou uma aristocracia comercial que esbanjava luxo e
poder. Daqueles tempos, no entanto, o que restou foi o velho casario das ruelas junto ao
porto das barcas, à margem de um dos braços do rio Parnaíba, que ali, ironicamente, tem
outro nome: Igaraçu. As construções, com sua singela arquitetura do século 18, em
parte foram restauradas e hoje são uma das atrações da cidade.
Na primeira metade deste século, Parnaíba passou por outro período de prosperidade, na
fase áurea da cera de carnaúba, que era importada pela Europa e pelos Estados Unidos.
Mas, com a queda do preço do produto no mercado internacional, o comércio diminuiu e a
cidade foi perdendo o brilho.
Hoje, Parnaíba aposta no turismo para voltar a crescer. Dali partem barcos que levam
turistas para conhecer o delta, como os da agência de Edilson Brito, pioneira nessa
modalidade de passeio. Ele conta que seus clientes são, na maioria, alemães e
espanhóis, mas que nos últimos tempos tem atendido um número crescente de brasileiros,
principalmente pessoas vindas de Fortaleza, Belém, Brasília e, mais recentemente, de
São Paulo.
Edilson explica que, nos dois barcos de sua empresa, cada um com capacidade para 45
passageiros e cinco tripulantes, "há cinco opções de roteiro, com saída pela
manhã e retorno à tarde. As refeições são preparadas na hora, e a caranguejada sempre
faz sucesso". Durante esses passeios, os barcos fazem duas paradas de uma hora, para
que os visitantes possam dar um mergulho e passear pelas dunas.
Entre as atrações do delta, a ilha do Caju, de propriedade particular, se destaca em
termos de infra-estrutura turística. Fazenda de criação de gado a princípio, a ilha
abriga hoje uma abundante e diversificada fauna, pois há alguns anos a preservação se
tornou ali uma palavra de ordem. Essa política, contudo, impede os antigos moradores da
ilha, que antes trabalhavam na fazenda, de derrubar áreas verdes para plantar suas
roças. Como conseqüência, aquela gente, sem ter para onde ir, vive na pobreza, triste e
sem esperança.
Na terra do buriti
Romance revela a rica e saborosa cultura escondida às margens do rio Parnaíba
LUIZ BOLOGNESI
O estigma da pobreza é um manto pesado que abafa a cultura do Piauí. O estado costuma
ser usado como exemplo de indicadores socioeconômicos negativos. De fato, o seu PIB per
capita (US$ 2.004/ano) é o segundo pior do país, perdendo apenas para o do
recém-nascido Tocantins. Para piorar, a imagem do estado não se beneficia de nenhum dos
emblemas míticos nacionais. Não é a terra do bumba-meu-boi nem o berço do forró.
Luís Gonzaga ou o padre Cícero não nasceram no Piauí, e Lampião, que andou tanto pelo
nordeste, nunca lutou nesse estado.
No entanto, o Piauí abriga, às margens do rio Parnaíba, uma riqueza histórico-cultural
que o Brasil desconhece. Rio que, no nordeste, só perde em importância para o São
Francisco, o Parnaíba inicialmente foi via de entrada dos holandeses na busca de
especiarias e, na contramão, um caminho trilhado pelos portugueses que vinham da Bahia e
Pernambuco combater os franceses no Maranhão. Os jesuítas instalaram uma missão
indígena às suas margens no século 17, que foi dizimada pelos homens de Domingos Jorge
Velho (o mesmo que destruiu o Quilombo dos Palmares).
Os pastos abertos pelos paulistas após o genocídio das civilizações indígenas deram
origem a uma cultura agrária que se ergueu inicialmente em torno do gado de corte e, no
século 19, viveu da extração da cera da carnaúba.
A facilidade de escoamento da produção pelo largo leito do rio Parnaíba fez prosperar
às suas margens grandes fazendas, em torno das quais giravam a vida e a cultura locais,
registradas de forma saborosa no romance "A vela e o temporal", da escritora
piauiense Alvina Gameiro.
Editado pela primeira vez em 1957 pela editora O Cruzeiro e só reeditado em 1996, pela
Gráfica Santa Clara de Brasília (não há menção à editora), o romance de estréia de
Alvina Gameiro é muito mais que um rico documento da história e cultura do médio
Parnaíba. É literatura de qualidade, elogiada por mestres como Câmara Cascudo e José
Américo de Almeida.
Por trás de uma trama sensível, articulada com narrativa fluente e elegante, "A
vela e o temporal" registra, através da trajetória de uma família, a ascensão e o
declínio da aristocracia rural do Parnaíba.
Além do interesse literário e histórico, o livro ainda descreve inúmeros detalhes da
vida local. Fala das viagens de balsa pelo rio, para levar mercadorias para Teresina, e
dos magotes de jagunços armados que atacavam as fazendas de tempos em tempos. E enumera
as iguarias de um café da manhã que comprova os requintes da cultura da região: "A
mesa ficava de ponta a ponta apinhada de coisas gostosas: coalhada, requeijão, cuscuz,
beiju coberto de coco, bolo frito, manauê de puba, rosca de tapioca, batata-doce,
macaxeira cozida com manteiga de nata, pamonha e canjica".
Mas o que mais encantou o escritor José Lins do Rego, outro admirador da obra, foi a
passagem em que o caboclo Fulgêncio, empregado da fazenda retratada no romance, faz uma
verdadeira apologia do buriti, palmeira típica da região. Com seu saboroso linguajar
sertanejo, Fulgêncio ensina que a planta serve para tudo: o talo é matéria-prima para
as construções, que são cobertas com as folhas do buriti. A polpa é comestível e dá
um doce delicioso. Da palha se fazem chapéus, cintos, calçados, esteiras, balaios e
inúmeros aparatos de cozinha e montaria. As balsas para o comércio, os brinquedos das
crianças e até o caixão para os mortos: tudo de buriti. "Entonce eu num havera de
arrecunhicê", pergunta Fulgêncio, "qui parmêra de buriti é a maió amiga do
pobre e tá im primêro lugá no mundo?"
Um do maiores expoentes da literatura piauiense de todos os tempos, segundo o crítico
Adrião Neto, autor do "Dicionário biobibliográfico de escritores brasileiros
contemporâneos", Alvina Gameiro - que hoje, aos 82 anos, reside em Brasília -
merece ser mais conhecida no resto do país.
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