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O guardião do idioma

Postado em 01/05/1999

Personalidade polivalente, Antônio Houaiss deixa como obra póstuma um superdicionário, sonho que se realizará no próximo ano

JORGE LEÃO TEIXEIRA

Antônio Houaiss gostava de intitular-se "um humilde operário das letras", quando poderia reivindicar a condição de guardião da língua portuguesa, paixão de sua vida. Na realidade ele era um ser polivalente. Filólogo, tradutor, professor, contador diplomado, diplomata, literato, jornalista, fundador do Partido Socialista e militante disciplinado, ministro da Educação, membro da Academia Brasileira de Letras (a qual presidia), paladino da unificação do idioma português na comunidade lusófona, enciclopedista e dicionarista, gourmet e emérito cozinheiro, ele tudo soube fazer com amor e arte, entusiasmo e dedicação.
Físico esbelto, aspecto frágil, sua aparência escondia uma juventude vivida ao ar livre, em Copacabana, onde nasceu, filho de um casal de imigrantes libaneses maronitas. Ali tornou-se exímio nadador, tomou gosto pelas pescarias e ficou conhecido pelas façanhas natatórias, como o contorno do Forte de Copacabana, em mar aberto, até a praia do Arpoador. E ali, ajudando sua mãe na cozinha, nasceu a paixão pela culinária que o acompanhou pelo resto da vida.
Unindo a prática à pesquisa, chegou a ter mais de cem livros sobre culinária em sua biblioteca - Houaiss saboreava o prazer que ia desde as compras semanais para aquilo que bem-humoradamente chamava de "minha cesta básica" até os jantares ou almoços que comandava, passando pelo meticuloso preparo de pratos que variavam desde a nossa cozinha regional até clássicos da gastronomia internacional. E mostrando que a prática não precisa brigar com a teoria, escreveu livros como "Magia da cozinha brasileira", "Receitas rápidas: 81 receitas de até 18 minutos" e "A cerveja e seus mistérios". Não admira, portanto, que tenha sido fundador e alma da Confraria dos Gastrônomos do Rio de Janeiro, da qual se desligou quando o ex-presidente Médici foi convidado a integrar seu quadro de sócios, fundando uma entidade dissidente, os Companheiros da Boa Mesa.

O trabalhador das palavras
Aos 12 anos ele já mergulhava em livros de lingüística, graças aos professores Ernesto Faria Júnior e Joaquim Mateus da Câmara Júnior, que percebendo o talento do adolescente o orientaram e abriram suas magníficas bibliotecas para o aprimoramento de Houaiss, que aos 16 anos já era professor.
Houaiss orgulhava-se de sua formação feita em escolas públicas, que o levaria a formar-se em letras clássicas pela Faculdade Nacional de Filosofia, com especialização em fonética descritiva, passo que o converteria mais tarde num mestre em ecdótica, a arte filológica para restabelecer o texto de um bom autor.
Foi como professor que chegou primeiramente ao Itamaraty, no começo da década de 40, já casado com Ruth Salles, sua grande companheira, cuja morte de câncer o abalaria profundamente. Após lecionar no Instituto de Cultura Uruguaio-Brasileiro, em Montevidéu, ingressou na carreira diplomática, mas foi afastado e colocado em disponibilidade inativa na década de 50, numa avant-première da caça às bruxas dos anos de chumbo, junto com um grupo de diplomatas do qual fazia parte o poeta João Cabral de Melo Neto. Aposentado em 1964, foi reabilitado oficialmente em 1990 e promovido a embaixador em sua aposentadoria.
O 1o Congresso Brasileiro de Língua Falada no Teatro, realizado em Salvador, no ano de 1955, revelou o potencial do filólogo Houaiss, autor de uma separata que foi editada com o título de "Tentativa de descrição do sistema vocálico do português culto na área dita carioca". Ele também foi o organizador dos anais daquele congresso, o que abriu caminho para que estabelecesse o texto da edição das obras de Lima Barreto pela editora Brasiliense e participasse como relator do projeto de edição crítica das obras de Machado de Assis, no cinqüentenário da morte do grande escritor.
O afastamento da carreira diplomática determinara incursões pelo jornalismo, na "Última Hora" e no "Correio da Manhã", interrompidas quando se tornou assessor direto do presidente Juscelino Kubitschek. Mas um grande desafio o aguardava na editora Civilização Brasileira: Ênio Silveira o convidou para traduzir "Ulisses", de James Joyce, missão quase impossível, que lhe consumiu todo um ano de trabalho. Modestamente, considerou a tradução como um estímulo para que outros tradutores se aventurassem pelo difícil texto, melhorando o seu trabalho.
A partir de 1965 mergulhou no ciclo das enciclopédias e dicionários, iniciado com a edição brasileira da "Delta Larousse", para cuja coordenação foi indicado por 17 intelectuais. Foram cinco anos de trabalho intenso, com uma equipe fixa de 70 pessoas e cerca de 200 outras em regime temporário, mobilizadas para a produção de 15 volumes. O êxito da "Delta Larousse" levou-o a dirigir a edição da Enciclopédia "Mirador", que possui 6 mil verbetes, em 20 volumes.
Houaiss dizia sempre que o trabalho na regência de uma enciclopédia ou de um dicionário era fascinante pelo desafio que apresentava: atuar como um mestre das palavras, regendo uma grande orquestra de especialistas e pesquisadores, que deveria trabalhar bem afinada, apesar de jamais reunir-se completa, sob as vistas do mestre, como acontece com as orquestras sinfônicas e filarmônicas.

O derradeiro grande sonho
Houaiss era um homem firme em suas convicções políticas mas cultivava paralelamente a cordialidade no dissentir, traço marcante do conversador culto e envolvente que sabia ser. Ofereceu seu nome em duas oportunidades ao PSB para eleições no Rio de Janeiro (para suplente de senador e vice-governador numa chapa com o PT) e foi ministro da Educação durante um ano no governo Itamar Franco, mas sempre deixou claro que jamais criaria "uma política que o sustentasse na política".
Nunca perdeu a habilidade e o tino diplomático. Nos 27 anos que residiu num belo edifício na Lagoa Rodrigo de Freitas, foi síndico duas vezes e sabia como ninguém conduzir uma assembléia de condôminos, além de revelar-se um administrador zeloso e eficiente. Ele próprio redigia as atas, em estilo elegante, que arrancavam aplausos ao serem lidas após as reuniões. A ponto de um jornalista morador no prédio galhofeiramente sugerir numa coluna que a Academia Brasileira de Letras editasse as Atas Completas de Antônio Houaiss...
O maior sonho de sua vida, contudo, era um grande dicionário que planejou em 1976, para cuja concretização empenhou-se na busca de financiamento junto a órgãos públicos e capitais privados, enfrentando não raro as decepções decorrentes dos vaivéns cíclicos da crise econômica brasileira.
Aos trancos e barrancos viu o seu sonho converter-se em realidade: o "Dicionário geral da língua portuguesa de âmbito lusofônico", com 220 mil registros iniciais, em livro ou disquete, deverá ser lançado no próximo ano pela Editora Objetiva, em agosto, como parte da comemoração dos 500 anos da descoberta do Brasil. No momento 30 lexicógrafos trabalham em tempo integral no acabamento da obra, de grande importância etimológica, a qual segundo o planejamento de Houaiss deverá ser atualizada periodicamente, transformando-se na mais abrangente e completa referência vocabular da língua portuguesa.
Os tropeços de saúde nos quatro últimos anos de vida não abalaram o entusiasmo de Houaiss, que trabalhou inclusive em detalhes do dicionário quando já se achava internado, em estado grave, no fim do ano passado. A exemplo de Aurélio Buarque de Holanda, que virou sinônimo de dicionário, também ele, certamente, no milênio que se avizinha, igualará esse feito. Seu dicionário perderá na boca dos "utentes" - Houaiss nunca usava a palavra-ônibus "usuário" - o pomposo nome escrito na capa, passando a ser conhecido simplesmente como "o Houaiss".
A melhor homenagem que poderá ser prestada a este infatigável guardião da língua portuguesa.

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