COMO SE ESCREVE
por Eduardo Martins
Assim como o professor Pasquale Cipro Neto - este, um rosto conhecido na mídia -, o jornalista Eduardo Martins é famoso entre os que se interessam pelos mistérios da linguagem por empunhar, há décadas, a bandeira da apropriação da língua portuguesa por parte de todos os que dela se utilizam. Autor do Manual de Redação e Estilo do jornal O Estado de S.Paulo - best-seller que já vendeu 1 milhão de exemplares -, Martins, formado em administração de empresas pela Fundação Getulio Vargas (FGV), foi editor do mesmo veículo por mais de 40 anos. Teve como colegas de redação nomes como Vladimir Herzog e Cláudio Abramo e foi chefe de reportagem numa época em que sob sua batuta escreviam figuras como Augusto Nunes, Sérgio Motta Mello, Paulo Markun, Diléa Frate e Carlos Alberto Sardenberg. No entanto, mesmo com um currículo desses, seu lado "professor" foi o que acabou falando mais alto. "No decorrer dos anos em que fiquei no Estadão aconteceu de tudo no Brasil", comentou no encontro que teve com o Conselho Editorial da Revista E. "Tortura, cassação de mandatos, a morte do Herzog, o fechamento do Congresso Nacional. Ainda assim, essas coisas ficaram para trás e até hoje eu sou o 'homem do Manual'". Na ocasião, Martins falou ainda sobre as particularidades da escrita jornalística, sobre o aumento do que ele chama de "procura pela língua portuguesa" em diversas profissões, e ainda deixou a recomendação: "Escrevam de maneira simples. Depois que souberem fazer isso, aí comecem a complicar seus textos". A seguir, trechos.
Os manuais de redação, tanto na Folha quanto no Estado, surgem em primeiro lugar para unificar a linguagem do veículo - não em termos de estilo, mas, sim, pela maneira como você usa uma série de coisas. Por exemplo: padronizar se nome de rua será escrito com inicial maiúscula ou minúscula. Acho um pouco relativo quando as pessoas dizem que os manuais são uma camisa-de-força. O que acontece é que, muitas vezes, existem pessoas que ainda não dominam a língua - esse é o grande problema - e querem fazer uma coisa absolutamente diferente. Se ela tiver talento, pode fazer isso, mas, se não, vai precisar de alguns padrões. Por isso pretendi escrever um manual que pudesse ser adotado em qualquer área de atividade. Tanto que o maior elogio que recebi sobre ele partiu de uma pessoa que nem sequer era jornalista - aliás, apenas 20% dos consumidores do Manual são jornalistas, os outros são empresários, advogados etc. Ela disse que achava "fantástico" o Manual do Estado porque tudo o que procurava encontrava lá. Quer dizer, não é que a pessoa encontre tudo lá, é que todas as dúvidas que ela tem estão lá. Por isso, acho que a grande vantagem do Manual foi essa abrangência. Além de incluir as instruções que estão nas gramáticas, conseguia explicar por que determinados erros, como os de concordância, ocorriam. Nenhuma gramática vai dizer isso. O grande problema desses livros sobre erros gramaticais sempre foi a defasagem, imensa. Existem alguns que ainda não se deram conta de uma série de mudanças na língua, e o mesmo vale para dicionários. Recentemente fui procurar a palavra hotel-fazenda e não a encontrei em nenhum dicionário brasileiro. Degravação - que significa fazer o levantamento do que está gravado em uma fita - também não. Dessa forma, trabalhos como o que o professor Pasquale e eu desenvolvemos estão voltados justamente para atender à necessidade que existia no mercado de uma língua portuguesa mais atualizada e que as gramáticas não conseguiam acompanhar.
DIFUSÃO DA ESCRITA
Uma pessoa não precisa ser jornalista para usar a palavra ou escrever. E hoje pouca gente percebe que há uma demanda muito grande da escrita por causa de um instrumento chamado internet. Pessoas que não escreviam antes são obrigadas a fazê-lo hoje. Bem ou mal, existe lá um camarada que acha que é escritor e cria um blog. Entro em alguns deles e fico assustado, há muita coisa ruim. Agora, encontram-se algumas coisas surpreendentemente boas. A linguagem hoje em dia é utilizada em novos segmentos - ao contrário de antigamente, quando você só escrevia para o jornal ou para um relatório. Essa procura pela língua portuguesa, uma novidade no mercado, foi causada por uma série de fatores. Um deles é a queda da qualidade do ensino. Cheguei a ser a segunda pessoa da redação do Estadão sem ter nenhum curso superior, já havia sido editor-chefe do jornal só com o curso colegial - e não havia estudado no Rio Branco ou Bandeirantes [dois conceituados colégios particulares de São Paulo]. Estudei em escolas estaduais. Mas antigamente havia mesmo uma preocupação maior como o idioma. Tive um professor de português, o qual me despertou o gosto pela língua portuguesa, que reprovou metade da minha classe. Se ele fizesse isso nos dias de hoje, no ano seguinte não voltaria a dar aula. Outro motivo dessa procura são as exigências das empresas, cada vez mais preocupadas com a linguagem de seus funcionários. Muitas delas exigem ensino fundamental até para faxineiros.
"PORMENORES" DO ESTADO DE S.PAULO
O Estadão tinha uma série de idiossincrasias, que, com o tempo, um grupo de pessoas foi conseguindo eliminar. Quando entrei lá, o jornal não usava a palavra detalhe, porque detalhe é um galicismo, ou seja, uma palavra de origem francesa. Devia-se usar pormenor. Agora, imaginem o Roberto Carlos mudando o nome de sua música para Pormenores ou Minúcias. Fracasso também era um galicismo e o jornal não usava, empregava um termo horroroso: malogro. Tenho a impressão de que, se você disser que malogrou em alguma coisa, você fracassou duas vezes, porque o peso da palavra malogro é muito mais forte do que o de fracasso.
A mudança de linguagem no Estadão se iniciou por influência do Jornal do Brasil, que na época era o mais bem escrito jornal brasileiro, quando o Alberto Dines era diretor de redação [nos anos 60/70]. O JB foi o primeiro a criar, aqui no Brasil, o chamado departamento de pesquisa. Por exemplo: se caísse um avião, esse departamento de pesquisa fazia matéria sobre outras quedas de avião. Só que, nesse departamento, o chefe era simplesmente o Murilo Felisberto, que depois foi diretor de redação do Jornal da Tarde. Lá também trabalhava o José Ramos Tinhorão - que tem um texto brilhante, embora, em termos musicais, seu pensamento possa ser questionado. Isso obviamente começou a influenciar os jornais. O próprio Estadão começou a renovar sua redação. Nessa época, o Raul Martins Bastos, o Clóvis Rossi e eu fomos editores de seções estratégicas do jornal, mais ou menos ao mesmo tempo. Eu, por exemplo, fui chefe de reportagem, de 1971 a 1974. Nessa ocasião, eu chefiava repórteres como Augusto Nunes, Sérgio Motta Mello, Paulo Markun, Diléa Frate, Carlos Alberto Sardenberg e Wagner Carelli, entre dezenas de outros. Hoje são todos editores. Com essas pessoas, conseguimos mudar o tipo de linguagem - ainda que não completamente. Alguns jornalistas mais antigos continuavam usando termos como outrossim ou entrementes, mas isso deixou de ser norma no jornal. O Estadão tinha também a mania de quase não repetir palavras. E existe uma, que é um horror, talvez a palavra mais feia da língua portuguesa, que é nosocômio, um sinônimo de hospital. Certa vez escrevi uma reportagem sobre um hospital e primeiro usei o vocábulo hospital, depois, para não repetir, empreguei estabelecimento, e na seqüência instituição. Quando não encontrei outro sinônimo, coloquei hospital de novo. Aí o redator mais antigo substituiu por nosocômio. Eu não acreditava, mas ainda bem que naquela época era muito raro assinar uma matéria.
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