Postado em 01/05/1998
Matéria publicada na edição nº 319 de "Problemas Brasileiros" (janeiro-fevereiro de 1997)
ROBERTO HOMEM DE MELLO
Há cem anos, trens repletos de soldados, armas e munições trilhavam as ferrovias do país, rumo à estação de Queimadas, no interior da Bahia. O Brasil estava em guerra.
O inimigo não era um exército estrangeiro, mas um grupo de sertanejos embrenhados na caatinga, em torno da localidade baiana de Canudos. Seu líder era Antônio Conselheiro, um pregador religioso à margem da Igreja oficial, acusado de comandar uma rebelião com o objetivo de restaurar a monarquia.
Figura misteriosa, Conselheiro, ou Antônio Vicente Mendes Maciel, vagava há 20 anos pelo sertão nordestino, erguendo igrejas, consertando cemitérios, construindo açudes e principalmente rezando e dando conselhos - daí o "Conselheiro". Já era seguido aonde fosse por centenas de fiéis quando resolveu se instalar em Canudos, que rebatizou de Belo Monte, em junho de 1893.
Meses antes disso, os seguidores de Conselheiro, revoltados contra a notícia de novos impostos, já haviam enfrentado e derrotado pela primeira vez a polícia baiana, que enviara contra eles um grupo de 30 praças no povoado de Masseté.
Anos depois, precisamente em 21 de novembro de 1896, no lugarejo chamado Uauá, rechaçaram-na mais uma vez, numa luta sangrenta em que morreram pelo menos 80 pessoas e outras dezenas se feriram.
Começava a tragédia que rapidamente tomaria proporções nacionais.
A malograda remessa de soldados a Uauá seria posteriormente conhecida como a primeira expedição, à qual se seguiriam três outras, em 1897, cada vez mais numerosas e bem armadas.
A segunda, comandada em janeiro pelo major Febrônio de Brito, recuou antes de um confronto generalizado, com poucas baixas entre os cerca de 600 soldados.
A terceira é lendária. Seu líder foi o famoso coronel Moreira César, conhecido como o "corta-cabeças". Tido como desequilibrado e arrogante, ele teria considerado a missão muito fácil. Em 2 de março arrojou-se impulsivamente contra Canudos, sem descansar da exaustiva caminhada sob o sol do sertão. A derrota de suas tropas - 1,3 mil homens com armas e munição para meses de batalhas - foi humilhante. Após horas de combate, morreram os principais oficiais, en-tre eles o próprio Moreira César, e os sobreviventes atiraram-se à caatinga em fuga desesperada, largando tudo pelo chão: armas, munição e até mesmo companheiros feridos e os cadáveres dos comandantes...
Além de ter sido massacrada, a expedição Moreira César tinha prestado um grande favor aos conselheiristas, dando-lhes de graça os armamentos modernos que lhes faltavam e milhões de cartuchos e balas. Mais: proporcionara-lhes também treinamento. Soldados prisioneiros ou desertores ficaram em Canudos ensinando aos jagunços como manejar as armas abandonadas.
A reação popular ao fracasso foi grande. Enquanto se exigiam providências enérgicas do governo, ocorriam atentados contra jornais e propriedades de pessoas consideradas monarquistas.
A quarta expedição, liderada pelo general Artur Oscar, foi uma operação de grande envergadura, que começou a ser organizada em abril e só chegou a Canudos em fins de junho. Envolveu cerca de 10 mil homens, direta ou indiretamente. Mais soldados que os enviados à Guerra do Paraguai. Metade do efetivo nacional...
Desta vez, o exército agiu de maneira planejada. O próprio ministro da Guerra, marechal Bittencourt, assumiu a importante função de responsável pela logística das tropas, periodicamente alimentadas e em comunicação ininterrupta com as bases.
Pouco a pouco, o cerco foi se fechando. Começaram entre os sertanejos as deserções, que se acentuaram no começo de setembro, com a morte de Antônio Conselheiro.
O surgimento de grande número de prisioneiros proporcionou um dos capítulos mais tristes e revoltantes da guerra. Os sertanejos eram separados em dois grupos. Mulheres e crianças eram postos de lado. Os homens eram degolados a sangue-frio. (Só muito depois o exército admitiu a degola, descrita de maneira antológica por Euclides da Cunha em Os sertões). Após três meses de combate, em outubro, termina a guerra. Este parágrafo de "Os sertões" é referência obrigatória sobre o desenlace do conflito:
"Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a história, resistiu até o esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia 5, ao entardecer, quando caíram seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente 5 mil soldados".
Depois, a cidade foi incendiada e demolida, seguindo ordem do presidente Prudente de Morais: não poderia restar "pedra sobre pedra".
De volta à tona
Reaparecimento das ruínas do arraial conselheirista, submersas desde 1968, abre espaço para novas pesquisas
Canudos ressurge. O centenário da guerra dá oportunidade à propagação de novos estudos, reportagens e obras artísticas sobre o tema que já inspirou livros da importância de "Os sertões", de Euclides da Cunha, e "A guerra do fim do mundo", do peruano Mario Vargas Llosa. Entre os lançamentos aguardados, destacam-se o livro "Dicionário de Canudos", que reunirá informações recolhidas durante 50 anos pelo historiador sergipano José Calasans, um dos maiores especialistas no assunto, e o filme "A guerra de Canudos", do diretor carioca Sérgio Resende, uma das mais caras produções do cinema brasileiro até hoje.
Mas uma das contribuições mais importantes para reacender a memória do acontecimento foi anônima: como se fosse mais um evento planejado para recordar a data, emergiram das águas, devido à seca, as ruínas da cidade atacada pelo exército. Espetáculo lento, mas fantástico: ocultos há quase 30 anos pelo açude de Cocorobó, que represou o rio Vaza-Barris, foram reaparecendo aos poucos, em meio a torrões de lodo fendidos pelo sol, vestígios das construções de Antônio Conselheiro.
Pouco sobrou, contudo. As ruínas mais visíveis são recentes, da segunda Canudos, vilarejo construído sobre os escombros da guerra e desocupado em 1968 para que a área fosse inundada pelo açude. A maioria dos moradores mudou-se para um local próximo, onde se formou a terceira Canudos, que existe até hoje.
Da segunda, além de algumas casas localizadas em terreno mais elevado, restaram duas construções que despontaram recentemente das águas: a igreja e o cemitério.
A referência
Chegou-se a dizer que o cemitério, hoje acessível apenas por barco, era do tempo da guerra, mas antigos moradores da cidade coincidem em afirmar que ele foi erigido posteriormente. "Eu vi quando o construíram", afirma João Botão, octogenário habitante da região do conflito.
Mas o caso da igreja da segunda Canudos, cujas ruínas foram as primeiras a voltar à superfície, é um exemplo de que não se pode dar crédito excessivo às recordações dos antigos moradores. Alguns deles diziam que, embora essa igreja não fosse da primeira Canudos, teria sido construída sobre os alicerces da chamada igreja nova, uma das duas erguidas por Antônio Conselheiro e destroçadas pelo exército.
Mais tarde, entretanto, apareceu a cerca de 100 metros daquelas ruínas o verdadeiro local da igreja conselheirista.
Sua localização foi possível graças ao ressurgimento da referência definitiva para a orientação do cenário da guerra: a base do cruzeiro, que ficava exatamente entre as duas igrejas da primeira Canudos. Em torno desse cruzeiro, que resistiu à guerra e hoje está numa capela da terceira Canudos, os conselheiristas se aglomeravam quando se aproximava a hora das rezas diárias.
O historiador baiano Renato Ferraz, antigo freqüentador e estudioso de Canudos que apresentou a região a Vargas Llosa, não tem dúvida de que o pedestal ressurgido das águas do açude é o mesmo registrado em 1897 pelo fotógrafo Flávio de Barros, que acompanhou a última expedição do exército.
A partir da base do cruzeiro hoje é possível distinguir, alguns metros à frente de seus degraus arredondados, resquícios do embasamento de outra construção. A posição dessas fundações em relação ao cruzeiro permite supor, de acordo com as descrições e ilustrações feitas na época da guerra, que elas sejam da igreja nova.
Mesmo que os alicerces sejam de uma construção posterior, é possível afirmar com certeza que ali, na ilha do açude em que reapareceu o pedestal do cruzeiro, está boa parte do terreno da praça das igrejas. Núcleo principal do arraial que Conselheiro chamava de Belo Monte, o local concentrava grande número de combatentes, que atiravam nas posições do exército protegidos pelos grossos muros da igreja nova, transformada em fortaleza. Para lá, portanto, os soldados alçavam a mira dos canhões.
Ossada sem crânio
O reaparecimento desse terreno onde tantos acontecimentos históricos se passaram abre espaço para que pesquisas arqueológicas façam novas revelações sobre a história do arraial. "É uma oportunidade magnífica", diz Ferraz.
Segundo ele, uma das possíveis descobertas no local é a própria ossada de Antônio Conselheiro. O fato de seu crânio ter sido separado do corpo pelo exército para que o médico Nina Rodrigues o examinasse - em busca de indícios de insanidade, não encontrados - seria um dos fatores que facilitariam sua identificação entre outros esqueletos que certamente devem existir por ali.
Mas, na prática, Ferraz não considera simples o empreendimento dessas escavações. "Seria preciso agir com rapidez e muito dinheiro", diz.
A urgência se deve à condição instável desse sítio, que em pouco tempo pode voltar a ser coberto pelas águas. "Bastaria uma semana de temporais", calcula Ferraz.
Por sua vez, o alto custo se explica pela necessidade de técnicos em pesquisas arqueológicas, raros no Brasil.
Ferraz fala com conhecimento de causa. Foi ele que, quando exercia a função de coordenador do Projeto Canudos, patrocinado pela Universidade Estadual da Bahia (Uneb), encomendou as primeiras - e até agora únicas - pesquisas arqueológicas realizadas na região, em 1987. Mas, por falta de verbas, elas tiveram de ser interrompidas.
Na verdade, a arqueologia fazia parte de um programa de estudos sobre Canudos no qual também estavam presentes a geologia, biologia, história e outras disciplinas.
Na reunião de tal conjunto de pontos de vista evidentemente se pretendiam abordagens que transcendessem aspectos relativos à guerra. Mas muito do que se descobriu com outros objetivos serviu para esclarecer alguns enigmas sobre o arraial.
Oásis
À luz da geologia, por exemplo, não há nenhum mistério no fato de Antônio Conselheiro ter escolhido justamente aquele ponto da Bahia para finalmente se instalar em 1893, depois de 20 anos errando por todo o sertão nordestino.
A explicação mais difundida para isso é a tese da "muralha natural", segundo a qual o líder religioso buscava no relevo acidentado em torno de Canudos boas condições de defesa, já prevendo o confronto com as forças da República. Mas a geologia mostra que ali ele se protegia muito bem contra outro inimigo: a seca. A conformação geológica da região de Canudos, com grande incidência de rochas impermeáveis, é a que oferece as melhores condições para a acumulação de água em toda a bacia do rio Vaza-Barris. Não apenas a acumulação superficial, da qual o açude é um ótimo exemplo, mas principalmente a subterrânea. Detalhe: a água está muitas vezes a poucos metros do chão, não exigindo mais que as rudimentares cacimbas dos sertanejos para ser atingida.
A paleontologia, por sua vez, remete a tempos imemoriais a abundância de água no local. Foram encontrados troncos de árvores petrificados de cerca de 3 metros de diâmetro, o que mostra que lá já existiu uma vegetação muito mais exuberante que os troncos curtos, retorcidos e espinhosos que se observam hoje em dia.
Revelações ancestrais também vieram da arqueologia. Os pesquisadores encontraram, nos mesmos sítios em que jaziam balas da guerra, grande quantidade de artefatos de pedra lascada, que indicariam a presença humana no local desde épocas pré-históricas. Para o arqueólogo Paulo Zanettini, que coordenou as escavações, Canudos poderia ser definida como uma espécie de "oásis multimilenar".
Os argumentos de todas essas ciências são fortes, mas é a história que dá o testemunho mais eloqüente em favor da tese. Se não fossem excepcionais as condições do lugar para a obtenção de água, teria sido completamente impossível a concentração de milhares de pessoas numa área reduzida da caatinga, durante mais de três meses de batalhas quase ininterruptas.
Multiplicação das casas
Contudo, ainda que se admita que se trata de um local atípico do sertão, com vantagens que beneficiam a sobrevivência, é muito difícil aceitar os cálculos tradicionalmente difundidos sobre a população do arraial. Propagou-se que, à época da guerra, teriam habitado Canudos cerca de 25 mil pessoas - sem contar os milhares de soldados que sitiaram o arraial -, o que tornaria a cidade a segunda mais populosa da Bahia, atrás apenas de Salvador.
Esse número, considerado um exagero por muitos estudiosos, foi obtido imaginando-se cerca de cinco pessoas - número de membros de uma família média - residindo em cada uma das 5.221 habitações que o exército contou no arraial antes de pulverizá-lo definitivamente.
O raciocínio faz sentido. Desde que o pressuposto - a existência de 5,2 mil casas - seja verdadeiro.
O professor José Calasans duvida disso. "Tenho a impressão de que as 5,2 mil casas foram uma invenção do exército para justificar perante a opinião pública por que houve tanto insucesso durante tantos meses," diz ele.
Para exemplificar como os números oficiais eram pouco confiáveis, Calasans lança mão de relatos da primeira expedição. "No ataque de Uauá, o tenente Pires Ferreira diz na sua pasta de combate que alguns calculavam 3 mil jagunços, mas ele achava que talvez não tivessem passado de 500, dos quais teriam morrido 200", relata.
Além da grande discrepância das estimativas dos próprios membros da tropa sobre o volume de adversários, ele vê também problemas na quantidade de jagunços mortos apontados por essa versão. Nas décadas de 50 e 60, o historiador obteve de Pedrão, um dos poucos combatentes conselheiristas que sobreviveram à guerra, número bem inferior a essas duas centenas. Citado em "Os sertões" como um dos jagunços de maior prestígio, Pedrão disse a Calasans que não participou do primeiro confronto da guerra, mas, segundo o historiador, "soube que os corpos dos jagunços não tinham sido enterrados e achou que tinha sido uma covardia de João Abade (o principal comandante 'militar' conselheirista) não ter feito isso. E ele me disse que foi a Uauá e enterrou 74 jagunços, um número que me parece preciso", diz Calasans.
A arte da pergunta
Os contatos que teve com Pedrão e outros conselheiristas importantes, como Honório Vilanova e os irmãos Ciriaco, foram decisivos para Calasans começar a dar a suas pesquisas sobre Canudos as diretrizes que hoje as norteiam: a valorização à contribuição oral e ao cotidiano.
Porém, o historiador, que além de procurar todos os sobreviventes da guerra esteve em cada local onde se sabe que o Conselheiro tenha passado, lamenta uma deficiência que teve na época em que pôde conversar com os personagens de Canudos: "Eu não sabia perguntar", diz. "A minha formação é de bacharel em direito e eu não tinha essa capacidade de dar importância a pequeninos fatos, a detalhes que hoje seriam bem importantes, mas não temos mais quem nos diga", conclui.
A primeira pergunta que faria hoje aos conselheiristas é sobre a economia do arraial: "De onde vinha alimentação para milhares de pessoas?" O próprio Calasans conta o que sabe: "Alguns dizem que ali era um verde muito bonito e que esse verde produzia. Chego às vezes a dizer que Canudos foi em certos momentos um povoado-dormitório, porque havia ao redor do arraial uma porção de roças, sítios cujos moradores se fanatizaram pelo Conselheiro e iam com regularidade para os dias de conselho, para as rezas".
A parteira
Embora não haja mais sobreviventes da guerra, ainda há quem tenha ouvido os pais falarem dessa fartura que existiria em Canudos no tempo da guerra. "Era um tempo bom", diz João Régis, filho e neto de conselheiristas. "Chovia muito, havia muita grandeza. As coisas eram mais fáceis. As pessoas criavam muito bode. Por isso Canudos foi isso tudo", conclui Régis, que completará 90 anos este ano.
Embora sua avó e sua mãe já morassem em Canudos antes de Antônio Conselheiro chegar, seu pai veio do município de Pombal, não muito longe de Canudos. "Ele chegou quando o arraial já estava formado, mas logo no começo, não tinha batalha ainda. Trabalhava de carpinteiro naquelas casas de taipa."
Eles moravam numa roça nas cercanias da cidade, mas com o começo da guerra se mudaram. "Eles tiveram medo de ficar aqui fora, desmancharam a casa e puseram lá".
Como nem seu pai nem seu avô participavam das batalhas, eram encarregados de procurar comida. "Mas tinha dois tios meus, um chamava Zé Guerra e o outro Norberto, esses atiravam muito. Morreram logo no primeiro combate. Porque aqueles mais afoitos eram os que primeiro morriam."
De todos os parentes que sobreviveram, sua avó era quem falava dos tempos de Conselheiro com mais saudades. Parteira no arraial, ela se orgulhava de não ter deixado nenhuma mulher morrer em suas mãos. "Era procurada por gente que vinha de longe. Ela sabia aqueles remédios do mato, remédios caseiros. Ajudava a cuidar dos feridos da guerra. Minha mãe foi ferida de bala da guerra e quem tratou foi minha avó. Ela tinha sinal, mostrava sinal de bala."
Seu pai e seu avô escaparam da morte da mesma forma que muitos outros: pela estrada de Uauá, a última a ser bloqueada. "Eles saíram para ir comprar mantimentos. Quando eles voltaram, já tinham fechado a estrada."
Por algum tempo, a guerra separou a família. Junto com as outras prisioneiras do arraial, os soldados levaram a mãe, a avó e as tias de Régis para Salvador, onde ficaram seis meses. "Elas sabiam que os maridos não tinham morrido."
Tiveram que pedir às autoridades um salvo-conduto para retornar para Canudos. "Aqui estava destruído, mas muitos voltaram."
A sucessão
Régis se arrepende de não ter prestado mais atenção às histórias que seus pais lhe contavam. "Mas naquele tempo, rapazinho moço, não me interessava."
Hoje, ele quer transmitir a memória que lhe resta. Olhando para o neto, que acompanha seu passo rápido, diz-lhe sério: "Quando eu era do seu tamanho, não me interessei pelas histórias que meu pai e minha mãe contavam e hoje às vezes não estou contando umas histórias mais certeiras. Isso vai render, Daniel, muito. Quando eu morrer você já vai estar grande. Olhe muito bem para dizer: 'Meu avô contava uma história assim, assim'..."
Por enquanto, o interesse de Daniel pelas marcas da guerra parece ser mais prático. Desconfiado, ele mostra com relutância os objetos que encontrou no chão da caatinga: projéteis, cartuchos, pentes de munição, botões metálicos de vestes militares.
Embora seja difícil arrancar-lhe o preço, os objetos estão à venda. Por uma bala, talvez ele tenha balbuciado algo como R$ 5,00.
Perdidos na caatinga desde a época da guerra, objetos como esses são facilmente encontráveis ainda em nossos dias, apesar de já terem sido extraídos em grande quantidade durante a Segunda Guerra Mundial. O bom preço que se obtinha pelo material metálico nessa época transformou esse tipo de extrativismo num dos principais meios de sobrevivência dos canudenses.
Complemento alimentar
Outro menino anuncia que viu um crânio por perto. Não é raro surgirem em alguns lugares, durante as épocas de chuva, restos de ossos humanos, que logo são roídos pelos caprinos da região. "Eles procuram nos esqueletos o cálcio que falta em sua alimentação", diz o engenheiro agrônomo Gumercindo de Sá Filho, membro do Centro de Estudos Euclides da Cunha, da Uneb.
Explicado o mórbido apetite dos animais, resta saber por que esses ossos ressurgem. "Na época da guerra, um dos problemas enfrentados pelo exército foi a falta de lugares onde se pudesse enterrar os mortos", diz o arqueólogo Zanettini. "O solo das partes mais elevadas, onde se instalou o exército, é rochoso, coberto apenas por pedregulhos e uma fina camada de areia.
Embora tenham sido encontradas sepulturas também nesses terrenos - provavelmente de oficiais, segundo Zanettini -, a maioria dos enterramentos era feita onde a ação da chuva causa acumulação de sedimentos, ou seja, nos vales. "Um deles tornou-se uma verdadeira vala comum e por isso passou a ser chamado vale da Morte", diz o arqueólogo.
Essas condições ambientais são responsáveis por uma característica importante dos sítios arqueológicos de Canudos: "Quase todos são superficiais", diz Zanettini.
Por um lado, essa particularidade significa que não é difícil a descoberta de material antigo, que permanece sobre o solo, lado a lado com objetos posteriores. "No mesmo local, você encontra uma sandália havaiana, uma bala da guerra, uma ponta de flecha milenar e uma conífera de milhões de anos", exemplifica Zanettini.
Por outro lado, essa mesma característica torna os sítios extremamente frágeis. "Qualquer interferência pode comprometê-los para sempre", diz. Por isso Zanettini se preocupa com a coleta indiscriminada de vestígios metálicos na região, que deve se intensificar com a divulgação do centenário pela imprensa.
Inauguração
Mas, por enquanto, nem tudo está perdido. A preservação de sítios históricos da guerra, em grande parte desocupados até hoje, ainda é possível. Esse, aliás, é um dos objetivos do Parque Estadual de Canudos (PEC), uma das iniciativas previstas no projeto idealizado por Renato Ferraz. Como um de seus limites é o açude, o parque abrange hoje, graças à seca, uma área de 18 quilômetros quadrados, quase 40% maior que a desapropriada pelo governo da Bahia em 1986.
Depois de ter sido objeto das escavações da equipe de Zanettini e de outros estudos, o PEC está sendo preparado para ser aberto ao público interessado na história da guerra. Num primeiro momento, não haverá muitas atrações. Apenas alguns locais históricos demarcados por placas indicativas e vestígios da guerra, como algumas sepulturas visíveis e trincheiras preservadas.
Contudo, talvez a maior contribuição da idéia do parque para a região esteja em uma de suas propostas para o futuro. A idéia é trabalhar junto à comunidade local para estimular nos próprios moradores a valorização do patrimônio histórico com o qual eles convivem cotidianamente.
Museu a céu aberto
Um exemplo de que esse tipo de preocupação não surge apenas entre universitários dos centros urbanos está lá mesmo, em Canudos. Há muitos anos, o morador Manuel Travessa reúne objetos antigos que encontra, compra ou ganha. Não são apenas balas e armas da guerra. Há também retratos de família, documentos, cartas e muitas outras coisas. Por conta própria, ele construiu um pequeno abrigo para seu acervo, que hoje recebe o pomposo nome de "museu".
Sem essa iniciativa, boa parte daquele material poderia estar perdido ou disperso, esquecido pelos cantos das casas de Canudos. Reunidas, aquelas peças assumem um significado maior que o que tinham para seus donos. Fazem outra época falar.
Se o projeto do parque der certo, outros moradores pensarão como Manuel, mas com a compreensão de que há outro museu, muito grande, a céu aberto, que pertence a todos.
Essa hipótese permite imaginar uma cena. Em 2047, o menino Daniel, já grisalho, narra histórias da guerra que aprendeu com seu pai para visitantes do parque que tentam acompanhar seus passos rápidos. De repente, ele interrompe a caminhada, se abaixa, pega um objeto no chão e diz: "Estão vendo esta bala? Faz parte da história do Brasil. Por favor, não a levem daqui..."
Casos da epopéia sertaneja
O livro sagrado
Das cinzas da tragédia de Canudos, surgiu uma obra-prima: "Os sertões", de Euclides da Cunha, considerado por alguns o ponto máximo da literatura brasileira.
Euclides foi a Canudos como correspondente de guerra do jornal "O Estado de S. Paulo", no segundo semestre de 1897. O livro, contudo, só foi publicado em 1902, após lenta elaboração num barraco de zinco às margens do rio Pardo, onde Euclides, que era engenheiro, construía uma ponte.
O impacto causado pelo livro na opinião pública foi imenso. A descrição das atrocidades cometidas pelo exército da República, vindas justamente de alguém que tinha sido republicano fervoroso, despertaram paixões.
A obra, cujo estilo a um tempo refinado e contundente transita com habilidade entre vários registros e áreas do conhecimento – do jornalismo à botânica, da história à geologia, da literatura à antropologia –, exerceu enorme influência sobre os intelectuais brasileiros.
Embora continue sendo o impulso inicial de grande parte das pesquisas sobre a guerra de Canudos, essa influência hoje também é lamentada.
Por muito tempo, Euclides foi considerado "senhor absoluto do assunto", como observa o historiador José Calasans. A matéria parecia definitivamente esgotada.
Mas já na década de 1920 as teorias de ordem antropológica formuladas por Euclides para explicar os acontecimentos de Canudos, com base no positivismo, começaram a ser bastante contestadas.
Quando, ainda mais tarde, se percebeu que também do ponto de vista histórico o livro não era irrepreensível, muitas das lacunas deixadas por ele já não podiam mais ser preenchidas.
É o caso da presença tímida na obra de informações sobre o lado vencido.
Euclides construiu uma minuciosa imagem abstrata do sertanejo, mas o conheceu pouco na prática. Os 16 dias que passou no cenário da guerra, num período relativamente calmo, bem abrigado, no acampamento dos oficiais, não lhe proporcionaram um verdadeiro contato com os conselheiristas. Ele precisou recorrer à imaginação para suprir o que não viu. O resultado, esperável, é uma figura mitificada dos jagunços. "Eles são apresentados como uma espécie de duendes", diz Calasans.
Essa distância em relação aos sertanejos se reflete nas passagens sobre a formação do arraial, que não esclarecem como funcionava aquela comunidade para a qual eram atraídas pessoas de todo o nordeste.
Mas a ousadia de dizer que, como documento, o que havia em "Os sertões" não era o suficiente demorou a acontecer. Os jagunços sobreviventes, que poderiam trazer revelações importantes, só vieram a ser procurados na década de 1950. E, ainda presos à sombra de Euclides, os pesquisadores que tiveram acesso a essas fontes não as aproveitaram como poderiam.
Mas, como lembra o historiador Marco Villa, autor do elogiado livro "Canudos – O povo da terra", Euclides não tem culpa de nada disso. E aqueles que de alguma maneira se inibem pela grandeza de sua obra também não podem ser repreendidos. É impossível ignorar um clássico.
Caçador de cenários
Bússola na mão, o fotógrafo baiano Claude Santos ajusta o tripé de sua câmera. Junto com o equipamento fotográfico, há mapas, um caderno de notas e um gravador. Sacada a chapa, Claude olha para o relógio e faz anotações meticulosas.
Os pescadores e criadores de cabras de Canudos puderam observar cenas como essa ao longo de todo o ano passado. O fotógrafo, que há anos se tornou também um pesquisador da guerra e da trajetória de Antônio Conselheiro, viajou para a região do conflito várias vezes em 1996. Seu objetivo era coletar imagens para o livro que lançará este ano, o "Guia visual do cenário de Canudos".
A idéia do livro partiu de uma necessidade pessoal do fotógrafo. Em suas leituras de "Os sertões" ele sentia dificuldade em visualizar o cenário das várias batalhas. Procurou então mais textos que descrevessem os lugares em que se passaram episódios importantes da guerra, para orientar a escolha de imagens esclarecedoras. Mas essa pesquisa deu nova direção ao projeto de Claude. "Descobri relatos muito interessantes sobre essas locações", diz.
Foi então que o trabalho, de uma referência auxiliar para essas leituras, se transformou em um diálogo com elas. "Para cada imagem, feita por máquina panorâmica, o livro terá no mínimo dois textos sobre aquela locação, feitos por quem presenciou aquela batalha", explica Claude.
Além de também ter desenhado mapas para cada lugar – daí a bússola –, Claude fez do próprio trabalho de coletar as imagens um extenso ritual. As fotos dos cenários foram feitas exatamente no mesmo momento do ano – e do dia – em que cada batalha aconteceu. O objetivo desse critério, diz Claude, era se aproximar do "clima" daquele momento histórico. Para conseguir esse efeito, ele não poderia associar ao relato de um combate realizado em junho, por exemplo, uma imagem com certa luz que só se observa em dezembro.
Uma das conseqüências do longo processo de produção desse livro é que Claude passou a conhecer Canudos como poucos. O cruzamento de seus arquivos – que além de fotos têm depoimentos gravados de antigos moradores do local – com as imagens e informações disponíveis sobre a guerra pode contribuir para se descobrir onde realmente são alguns pontos históricos cuja localização ainda não é consensual, caso do célebre alto da Favela.
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