Postado em 01/09/1999
Num encontro que durou três dias, profissionais de várias partes do mundo vieram a São Paulo para discutir a qualidade da programação das emissoras latino-americanas
Educar ou entreter? Educar e entreter? Censura ou ética? Como conciliar os interesses comerciais dos meios de comunicação com as necessidades da sociedade? Qual o papel da televisão na sociedade contemporânea? Pronto, bastam essas perguntas e está armada uma senhora discussão. Atrás das respostas escondem-se nuances complicadas inerentes ao mais poderoso instrumento de comunicação social.
Foi para discutir os aspectos deste tão complexo meio que, no mês de agosto, desembarcaram em São Paulo produtores e diretores de emissoras, pesquisadores, educadores, psicanalistas, sociólogos e jornalistas. Todos vieram para o Encontro Latino-Americano sobre TV de Qualidade, que aconteceu entre os dias 4 e 6 de agosto no auditório do Sesc Paulista. Durante esses três dias, os palestrantes mostraram seus trabalhos e contaram experiências colhidas em canais de televisão do mundo inteiro, enquanto o público, formado por educadores e profissionais da área, pôde conhecer os diversos aspectos intrínsecos à programação da televisão.
A idéia de reunir profissionais de televisão para debater e buscar novas alternativas que possibilitassem uma programação não somente menos nociva, mas também benéfica à sociedade surgiu há cerca de quatro anos. Foi quando a jornalista Beth Carmona, com o Instituto Goethe, organizou o evento TV e Infância: "Desde 1995, quando realizamos o TV e Infância e reunimos mais de 120 pessoas, a possibilidade de realizar um encontro para discutir a qualidade da televisão na América Latina vem ganhando força. De lá para cá, muita coisa já aconteceu, incluindo duas conferências mundiais sobre tevê e criança, a primeira em Melbourne, Austrália, e a segunda em Londres, Inglaterra", explica a jornalista. Enquanto a idéia de um novo evento era fomentada, Beth procurou parceiros para mais essa empreitada rumo a uma tevê de melhor qualidade: "O Sesc São Paulo, através da unidade Carmo, reconheceu a importância do tema e abraçou a proposta imediatamente", explica Beth. "No Brasil, a televisão é, inegavelmente, um importante elemento cultural. Sozinha ela substituiu as praças de convivência, as escolas, as relações familiares e os livros. É sempre desejável que um evento de discussão e debate se paute pela abrangência e complexidade, isto é, que possa representar e apresentar múltiplos pontos de vista, experiências diversificadas e opiniões divergentes. Quando o Sesc desenvolve um projeto, existem alguns objetivos e idéias que se pretende trabalhar, mas procuramos confrontá-los e somá-los com outros protagonistas sociais. Esse evento não se preocupou apenas em discutir uma questão, mas também em apresentar propostas viáveis. Esses dois parâmetros orientaram toda a elaboração do projeto", arremata Valter Sales, da Gerência de Programas Socioeducativos do Sesc. Afim de que o evento, de fato, abarcasse diversos pontos de vista era necessário reunir profissionais de diversas partes do mundo que atuassem em diferentes áreas televisivas para, dessa forma, possibilitar o intercâmbio de experiências. Afinal, por quê profissionais de outros continentes em um evento criado para discutir a qualidade da televisão na América Latina? Justamente para que modelos consagrados de boas programações fossem apresentados aos profissionais latino-americanos e para que se estabelecesse a troca de experiência. "A programação da televisão em toda a América Latina é muito parecida. São comuns as apresentadoras infantis e as telenovelas. Outra semelhança vem do fato de, geralmente, haver modelos centralizadores, ou seja, apenas um grupo detém grande parte dos meios de comunicação. Assim acontece, por exemplo, no México, na Venezuela e no Brasil", explica Beth Carmona.
Um Assunto, Muitos Temas
Para se ter uma idéia da complexidade de uma discussão em que o assunto é a televisão na América Latina, basta tomarmos como exemplo a situação do Brasil: aqui, segundo o instituto de pesquisas Ibope, 90% das residências possuem aparelhos de tevê. Se somarmos esse dado a outros índices que exprimem o panorama social do país, veremos que a televisão brasileira, de antemão, cumpre funções que vão muito além de informar, entreter ou educar. Estando presente no cotidiano de quase todos os domicílios brasileiros, a televisão serve como única fonte de conhecimento para grande parte da população, que convive com a ausência da escola, do lazer e de um sistema de saúde eficiente. "Acredito que o grande problema da televisão no Brasil não é a qualidade de sua programação, mas a sua onipresença solitária. Faltam escolas de qualidade, livros, espaços de lazer e vida comunitária. Se tudo isso existisse, a importância da televisão, com ou sem qualidade, seria minimizada. Mas na ausência de outras opções de formação cultural, o poder da tevê se torna arrebatador", alerta Valter Sales.
Tendo em vista que esse caótico quadro social se estende pela maioria dos países da América Latina, fica fácil calcular a importância que a televisão exerce na vida de uma parte expressiva da população mundial: "Com um índice altíssimo de penetração da televisão nos domicílios, o número potencial de telespectadores na América Latina é enorme. Somos grandes consumidores de televisão ao mesmo tempo em que temos índices expressivos de analfabetismo, pouca tradição de leitura e sistemas deficientes de educação. Nesse contexto, a escola perde facilmente o seu espaço de difusão de conhecimentos, valores e atitudes para a televisão", reflete Beth.
Presenças
Ao notar a diversidade que predominou durante a palestra de abertura do Encontro Latino-Americano sobre TV de Qualidade, na noite do dia 4, já era possível deduzir a abrangência e a complexidade das discussões que iriam acontecer. Profissionais das mais diversas áreas explicaram à platéia de que modo a televisão atinge os segmentos da sociedade. Estiveram na primeira mesa o diretor em exercício do Sesc São Paulo, Luiz Deoclécio Massaro Galina; a diretora cultural do Instituto Goethe, Marina Ludeman; a jornalista e idealizadora do encontro, Beth Carmona; o secretário de Direitos Humanos, José Gregori, e o diretor do instituto de pesquisa Ibope, Flavio Ferrari. Os dois dias de debates que se seguiram foram divididos em diferentes questões pertinentes ao tema (ver box) e, a exemplo da primeira palestra, também contaram com a presença de importantes profissionais. "Este encontro é da maior importância porque aborda um problema fundamental: a qualidade da programação de televisão. Muitos pensam que a má qualidade existe em função do desejo do público. Mas não é assim. Ela existe em função de uma exigência errada do mercado. Nessa lógica, os valores do mercado se sobrepõem aos humanos. Esse debate já está presente na sociedade e aqui constatei que os profissionais envolvidos com televisão são a favor de uma programação saudável", comentou o palestrante Jorge da Cunha Lima, presidente da Fundação Padre Anchieta, entidade a qual pertence a TV Cultura. A inglesa Anne Wood, criadora dos personagens Teletubbies, também esteve no encontro e, além de apresentar os diversos aspectos pedagógicos considerados na idealização dos bonecos, contou sua experiência à frente da Rag Doll Productions, empresa que produz programas de televisão destinados a crianças na idade pré-escolar: "A criança vê o mundo de uma maneira completamente diferente da do adulto e a televisão, se bem-feita, pode ajudar na formação dela. Os Teletubbies, por exemplo, incentivam reações espontâneas. As crianças dão muitas risadas com as histórias e a isso atribuo o sucesso desses bonecos. Os programas que produzimos levam em consideração a maneira como as crianças interagem com o mundo de acordo com a idade".
Além dos palestrantes, a platéia também contou com a presença de profissionais que já fizeram história na televisão brasileira, entre eles Daniel Azulay, antigo apresentador do programa A Turma do Lambe-Lambe: "A televisão está muito ruim atualmente. A programação não se preocupa em interagir com a criança e muito menos busca algo construtivo para a sua formação. Não se importa em estimular qualquer outra coisa que não o consumo. O telespectador sai perdendo com a má qualidade da programação. Por isso, considero um privilégio participar deste encontro. Acredito que, a longo prazo, ele tenha um eco formidável". A psicóloga e sexóloga Marta Suplicy, que na década de 80 apresentou o programa TV Mulher, também esteve presente e criticou a programação da TV brasileira: "A maioria da programação da televisão brasileira é de péssima qualidade. Ela contribui para a desconstrução da cidadania. Por isso, um evento desse porte, com pessoas tão qualificadas, é muito importante. Aponta caminhos e reflexões para melhorarmos nossa programação televisiva". A despeito das polêmicas levantadas, os participantes apontaram para uma certeza desoladora: os estragos causados pela baixa qualidade da programação televisiva atingem grande parte da população. Portanto, as potenciais soluções não são imediatas, mas dependem de ponderações abalisadas para estancar o dano já evidente.
O Que É e Como se Faz Uma Tevê de Qualidade?
Uns trouxeram experiências bem-sucedidas, outros análises não muito alentadoras.
A seguir leia um pouco sobre o que foi discutido nos três dias do Encontro Latino-Americano sobre TV de Qualidade:
Lesley Osborne – Australian Broadcasting Authority – responsável pelo controle dos requisitos para qualidade da tevê infantil e das regras de conteúdo da tevê aberta e paga de seu país:
"A Austrália teve um certo sucesso em oferecer programação infantil de qualidade. A tevê serve como uma cola na sociedade e, muitas vezes, como pauta de conhecimento para a população, por isso é necessário que haja algum dispositivo que proteja as crianças da má programação. Na Austrália, o Governo se disponibilizou a nos ajudar no controle da qualidade, assim como pais e professores fazem lobby junto à televisão. Se não alimentarmos a programação cultural na tevê, ela vai acabar."
Arlindo Machado – professor de Comunicação na Universidade de São Paulo e na Pontifícia Universidade Católica- SP:
"Por que a tevê paga sozinha pela mercantilização da cultura? Isso acontece em todos os setores de produção, como cinema, literatura, fotografia. Tornou-se sinal de pouca inteligência desfrutar da programação televisiva, mas há bons e maus programas. Muitos nomes importantes, como Orson Wells, Robert Altman, Nelson Rodrigues, Guel Arraes, passaram ou ainda estão na tevê. O problema é que no Brasil não temos uma legislação que incentive a melhoria da qualidade da programação. Não existe uma lei que obrigue a veiculação da produção independente, local ou nacional. Não há, portanto, incentivo a um tipo de produção vital para qualquer meio artístico. Hollywood, por exemplo, bebe muito na fonte de produções independentes."
José Gregori – Secretário de Governo dos Direitos Humanos "Certa vez estava explicando o que eram os direitos humanos a uma pessoa que não sabia muito sobre esse assunto. No final da conversa ela me disse: ‘Como é que podemos lutar pelos direitos humanos se ao chegar em casa e ligar a televisão presencio o contrário de tudo que o senhor me falou?’ O canal de televisão é uma concessão do Estado ao dono da emissora. A ele é concedido um direito. A tevê se tornou um espaço público, alcança quase todos e como tal deve respeitar os cidadãos. Proponho que cada emissora elabore um código de ética."
Maria Dolores – Conselho Nacional de TV – Chile
"A tevê altera o sentido de identidade cultural, pois a mídia apresenta diferentes sinais simbólicos. Por exemplo, a coroação da rainha da Inglaterra, antes do surgimento da televisão, tinha sentido apenas para um grupo restrito de pessoas. Atualmente, é um acontecimento mundial. Na América Latina, principalmente, é muito importante ficar atento para a questão da identidade cultural, já que consumimos muitos programas estrangeiros. No Chile houve um crescimento da audiência de programas nacionais. Primeiro porque a qualidade da programação melhorou muito e, segundo, porque os programas recorrem à identidade do espectador. Esse é um novo desafio para a programação de tevê, pois a globalização exige o fortalecimento da identidade local e nacional."
Firdoze Bulbulia – presidente da Children and Broadcasting Foundation for Africa – CBF-África do Sul
"As crianças africanas foram, durante muito tempo, podadas de expressar sua cultura. A programação de televisão estereotipa a vida e as pessoas da África. O trabalho que desenvolvemos procura fortalecer a identidade cultural das crianças africanas."
Regina de Assis – Conselho Nacional de Educação – Brasil
"É importante pensar na forma de diálogo quando falamos de educação. A tevê pode motivar e abrir o diálogo sobre anos e anos de história, por exemplo. A força e o poder da imagem bem usada são muito positivos. A imagem substitui o livro? Acredito que não. Mas pode impulsionar os alunos a pesquisarem sobre o que assistiram no vídeo. Isso é muito forte na tevê: ela forma opiniões, mobiliza corações e mentes, tem a capacidade do faz-de-conta, de suspender o real. Uma programação adequada pode ser muito positiva na escola."
Maria Rita Kehl – Tver – Brasil
"O grupo Tver já tem experiência em refletir sobre a qualidade da televisão brasileira. Apenas quando a população estiver alerta quanto à má qualidade da programação é que a situação mudará. Na condição amplamente carente em que vive a criança brasileira, é na televisão que ela tem sua grande fonte de mensagens e sua grande companhia. O discurso publicitário é altamente prejudicial à medida que cria um consumidor e não um cidadão. E, principalmente no Brasil, apenas o consumidor tem seus direitos respeitados. Acho impossível formar um ser humano de qualidade se sua única fonte de referência for a televisão."
Jorge da Cunha Lima – Fundação Padre Anchieta
"A televisão acabou se tornando o grande mestre do homem contemporâneo. No Brasil essa situação é mais acentuada. Os valores de mercado andam se sobrepondo aos valores humanos e quando o coração de uma tevê bate de acordo com o Ibope, a sociedade fica cardíaca. A obrigação de atender a todos e ao mesmo tempo prejudica a qualidade da programação. Seria muito mais positivo oferecer bons programas a cada um dos diferentes públicos."