Postado em 01/09/1999
O evento Luzes do Império: D. Pedro II e o Mundo Judaico mostra um lado pouco conhecido do último monarca brasileiro
Nosso segundo e último imperador foi um grande estudioso de línguas e culturas, corajoso viajante, perspicaz tradutor, desenvolto com autoridades nacionais e estrangeiras. Foi extremamente culto e ávido por saber. Causa ou conseqüência, sua condição de monarca e figura pública proporcionou o contato com diferentes culturas, dedicação a conhecimentos aprofundados e oportunidades de viagens.
Organizada pela Casa de Cultura de Israel e pelo Sesc São Paulo, a exposição Luzes do Império: D. Pedro II e o Mundo Judaico, em cartaz no Sesc Vila Mariana até 7 de setembro, utilizou essa pluralidade cultural de Dom Pedro II como ponto de partida para mostrar um interesse específico de seus estudos: a cultura judaica. A exposição traz ao público as múltiplas facetas de D. Pedro II, examinando a sensibilidade e a visão do monarca como elemento catalisador de culturas distintas, investigando o porquê de seu interesse pelo idioma hebraico e enfatizando a interligação do imperador com a comunidade e a cultura judaicas da época. "O imperador tinha forte ligação com o mundo judaico, o idioma hebraico e o hebraísmo como um todo", diz Reuven Faingold, historiador e curador da exposição.
A abertura do evento, em agosto, contou com a presença do Ministro da Cultura, Francisco Weffort, que ressaltou a importância da exposição. "Este trabalho é um reconhecimento da pluralidade de nossas origens, consolidando o caráter multicultural do Brasil. Somos negros, índios, brancos e, atenção, também somos judeus!", disse o ministro, que também lembrou a importância do Sesc e da comunidade empresarial incentivando a cultura no país.
A idéia inicial da exposição nasceu em 1995, quando uma nota divulgada na imprensa chamou a atenção de historiadores sobre uma misteriosa Torá (texto sagrado judaico) encontrada no Museu Nacional do Rio de Janeiro, na Quinta da Boa Vista, antiga residência imperial. A pedido da Casa de Cultura de Israel, o historiador Reuven Faingold e a pesquisadora Maria Luiza Tucci Carneiro começaram a analisar os manuscritos na tentativa de contextualizar a Torá na época do império e sua significação, pesquisando uma possível ligação entre ela e Dom Pedro II. Em seguida, realizaram um minucioso levantamento dos jornais da época, em busca de pistas que levassem à procedência da Torá. Diante dos resultados, os pesquisadores enxergaram algo mais que a simples descoberta de uma relíquia. O documento serviu para desvelar no monarca brasileiro uma faceta inusitada: a de admirador da cultura e língua judaicas. O embrião da exposição estava criado.
Círculo Judaico
No século 18, a legislação portuguesa, vigente no Brasil colônia, ainda restringia os direitos dos judeus e de seus descendentes, influenciada pelas perseguições que sofriam na Europa. Aqui, estavam proibidos de assumir cargos públicos, receber comendas e possuir terras. "Quando a corte chegou ao país, isso começou a mudar", explica a pesquisadora Maria Luiza. "Mas nesse contexto, D. Pedro II demonstrou em diversas ocasiões uma mentalidade aberta à diferença."
A comunidade judaica na época de D. Pedro II era pequena. O recenseamento de 1872 relata 2.309 judeus entre uma população de quase 10 milhões de brasileiros. "Eles eram, na grande maioria, judeus alsacianos, com uma cultura aprimorada", lembra a pesquisadora. Eram comerciantes, corretores, procuradores, engenheiros, dentistas, conselheiros, modistas. No reinado de D. Pedro II, chama a atenção a presença de vários deles participando ativamente da corte. "Podemos falar de uma espécie de lobby, um círculo bem definido de judeus, brasileiros e estrangeiros, que circulavam e atuavam junto ao imperador", completa Faingold.
O dentista do imperador era judeu. Seu mordomo, judeu. Seu procurador, judeu. E a maioria dos seus fornecedores, judeus. O consultor de moda Bernard Wallerstein, cuja antiga loja comercial ficava na rua do Ouvidor era, desde 1829, o fornecedor preferido da Casa Imperial. "O Rei da Moda", como era conhecido no Rio de Janeiro, importava da Europa cristais, porcelanas, quadros, papel de parede, etc. "De certa forma, ele sugeria estéticas – as mercadorias "fetiche", produtos sofisticados que, uma vez escolhidos pela família imperial, caíam no capricho da burguesia brasileira", diz Maria Luiza. "De certa forma, esses judeus tornaram-se uma ponte entre o Brasil e a Europa, ditando modas e tendências", completa a pesquisadora.
Mas se D. Pedro II deixava-se influenciar pelos gostos alheios quanto a cristais e porcelanas, parece não ter feito o mesmo quanto a princípios políticos e morais. O monarca circulava entre diversos intelectuais e políticos com desenvoltura. A despeito de quaisquer convicções pessoais, os interesses políticos e nacionais representavam muito. Da mesma forma que se interessava pelo povo judaico, mantinha estreitos contatos com intelectuais racistas, como Gobineau, autor de conhecidos textos anti-semitas. Porém, a pesquisadora lembra que D. Pedro não se deixava levar por influências externas. "Ele sempre se mostrou multicultural e multidisciplinar, dominando várias áreas do conhecimento e, principalmente, não se deixando envolver pelas posições alheias", lembra ela. Apesar do contato com autoridades racistas, o imperador estimulava seu interesse pelo povo judaico. "Não combaterei os judeus, pois de sua raça nasceu o Deus da minha religião", escreveu certa vez o monarca.
Um Imperador na Sinagoga
O historiador Reuven Faingold lembra que o que moveu D. Pedro II a enveredar-se pela cultura judaica foi, antes de tudo, a busca pelas origens da religião cristã. Na identificação da cultura judaica como o berço do cristianismo, o imperador entenderia a importância do aprofundamento nos estudos dessa cultura distinta.
O cotidiano do imperador sempre foi preenchido por estudos, especialmente línguas. Num trecho de seu Diário, de 1861, D. Pedro relata seu dia-a-dia. De manhã, estudos de grego ou hebraico. Às dez, almoço. Das doze às quatorze, exame de negócios. Às sextas-feiras, o imperador assistia às lições de alemão das filhas. Às terças, estudava Os Lusíadas. Quartas, latim com as filhas. Nas noites, sânscrito, grego, chinês, árabe e hebraico. O interesse pelo judaísmo e hebraísmo crescia. Em seu livro As Farpas, Eça de Queiroz faz troça com a predileção do monarca. Escreveu: "O imperador toma café e hebraico, hebraico, logicamente o hebraico".
Não é para menos. D. Pedro teve quatro professores de hebraico. Naquela época, a língua dos atuais israelenses não passava de um idioma voltado à liturgia e ao culto. Mas a vontade com que o monarca se dedicou ao seu aprendizado permitiu-lhe, em pouco tempo, passar à tradução de textos, habilitando-se a verter do hebraico para o latim diversos livros da Bíblia, entre eles Cântico dos Cânticos, Eclesiastes, Lamentações, o Livro de Rute e o Livro de Jó. "Traduzir textos da Bíblia virou uma forte obsessão do imperador", diz Faingold. No entanto, Vossa Majestade sentia o exercício incompleto. Era necessário buscar direto na fonte o jorro cultural. Para tanto, nada menos do que estar na Palestina. Dito e feito. Dentre as descobertas sobre D. Pedro II realizadas pelos pesquisadores, uma chamou a atenção de Faingold. Sua viagem à Palestina, em 1876. O historiador descobriu o diário da viagem no Museu Imperial de Petrópolis (veja box). Por meio desse documento, Faingold dimensionou melhor a importância que o monarca empregou à cultura judaica.
"A viagem à Terra Santa foi uma visita não-oficial", explicou o curador da mostra. Para ele, as anotações do diário de viagem à Palestina fogem do padrão que marca o perfil do imperador. "Podemos ver o Pedro de Alcântara – nome com o qual ele se apresentou durante a viagem – arqueólogo, orientalista, tradutor bíblico e devoto peregrino", diz ele. Nas viagens, o monarca aproveitava para conhecer os lugares que estudava. Visitou sinagogas, onde era convidado a ler textos sagrados. "Tinha uma leitura em hebraico impecável, além de profundo conhecimento dos textos e rituais", diz Faingold. O imperador impressionou a Palestina. Os jornais da época comentaram sua visita e sua extraordinária desenvoltura com a língua e a cultura do povo judaico.
Nesse sentido, D. Pedro cumpriu à risca seu papel como imperador. "O interesse pelas línguas e culturas faz parte da criação de um imperador", diz Lilia Moritz Schwarcz, professora de Antropologia na USP e autora do livro As Barbas do Imperador – D. Pedro II, Um Monarca nos Trópicos. Para ela, é preciso cuidado ao traçar o perfil de um monarca. "O processo da memória é o de seleção. E, na história oficial, é preciso distinguir realidade de representação", ressalta a pesquisadora. Ela lembra que, no contexto da época, um rei era o cartão-postal do país, seu maior símbolo, e tinha obrigação de comportar-se como tal.
Se essa era a regra, D. Pedro II a cumpriu à risca. Criou esse papel para si mesmo e o desempenhou com perfeição, seguindo protocolos, vestimentas e impondo costumes. Criador ou criatura, D. Pedro cumpriu brilhantemente o modelo de monarca culto, voltado ao conhecimento e ao saber. Em suas anotações das traduções do hebraico, fazia lembretes em latim e grego. Tinha uma biblioteca de mais de 30 mil livros. Com o lema "A Ciência sou eu", o imperador promoveu instituições voltadas à ciência e à pesquisa. Foi um apaixonado pelas artes, línguas e ciência. Encantou povos. Fez-se respeitar por meio de seus conhecimentos. Por tudo isso, D. Pedro II foi algo mais. E merece nossa atenção. Voluntariamente ou por necessidade pública ou política, ele fugiu à regra.
A Torá Misteriosa
A idéia da exposição Luzes do Império: Dom Pedro II e o Mundo Judaico surgiu a partir da descoberta de antigos pergaminhos no Museu Nacional do Rio de Janeiro, esquecidos por anos junto ao acervo egípcio. Estima-se que a Torá ficou "escondida" desde a época do imperador, já que o Museu Nacional é composto de seu acervo pessoal. Os pesquisadores acreditam que essa Torá, que deve ser uma das mais antigas do mundo, pertenceu a D. Pedro II. Especula-se sua idade. Alguns dizem que é do século 13. "Não podemos concluir nada por enquanto. É preciso um estudo sério e minucioso, em Israel, para comprovar sua idade e procedência", lembra o historiador Reuven Faingold. Para ele, o tombamento da Torá ajuda na preservação, mas os estudos são imprescindíveis.
Outro mistério ainda a ser desvendado é o motivo pelo qual essa Torá foi preservada. Nos rituais judaicos, quando a Torá não é mais utilizada em cerimônias religiosas ou fica imprópria para a utilização, ela deve ser imediatamente enterrada. "Eu particularmente acredito que essa Torá deve ter sido produto de saque – já que era uma prática muito comum no Oriente. Não sabemos se ela veio diretamente do Iêmen ou se, na sinagoga ou após ter sido eventualmente enterrada, ela foi subtraída, negociada e parou nas mãos do imperador", diz Rhoneds Aldora Rodrigues Perez, arqueóloga e pesquisadora do Museu Nacional do Rio de Janeiro. Para ela, há duas possibilidades: o imperador teria adquirido os pergaminhos de alguém durante sua viagem à Palestina, ou, antes disso, eles podem ter chegado ao Brasil na época de D. Pedro I, junto com outros objetos. Escrita com tinta vermelha sobre couro, com 24 metros de pergaminhos, a procedência da Torá permanece um mistério.
Túnel do Tempo
É preciso muito cuidado, pois quem passar pelo hall do Sesc Vila Mariana pode facilmente esquecer os afazeres do dia. Percorrendo os labirintos criados pelo arquiteto Roberto Loeb, responsável pelo projeto museológico da exposição Luzes do Império, o visitante é convidado a um mergulho no passado. Mais precisamente na época do Brasil Império: frases do período reproduzidas nos módulos de madeira, que serviram de estrutura para a exposição, livros antigos, cartas e manuscritos originais de D. Pedro II. E ainda reproduções de diários, jornais e fotografias da época e de ilustrações de bico-de-pena, mostrando costumes, personalidades e lugares que marcaram a vida do imperador. A Torá (texto sagrado judaico) teve posição de destaque na exposição, atraindo maior atenção não só pela importância histórica como também pela beleza de seus dois pergaminhos de couro expostos. Pode-se ainda acompanhar informações precisas sobre os 24 rolos que a compõem e visualizar fotos de alguns deles.
Dentre os livros expostos, destacou-se o Poesies Hebraico-Provençales du Rituel Israelite Comtadin Traduites et Transcrites par S. M. Dom Pedro II d’Alcantara, Empereur du Brésil. A obra, contendo poesias hebraico-provençais e publicada em 1891, foi traduzido do hebraico para o francês pelo próprio imperador.
Uma série de palestras completaram a exposição. O historiador Paulo Valadares proferiu a palestra "A Linhagem Genealógica da Família Bragança", na qual discorreu sobre a ascendência e a descendência do imperador. Valadares, que é um estudioso das genealogias imperiais européias, em especial as lusitanas, falou sobre os cristãos novos da dinastia portuguesa. E contou curiosidades: explicou a origem de cada um dos treze nomes de D. Pedro II e falou um pouco sobre a "praga dos Bragança", lenda sobre uma suposta maldição que recaía sobre a família imperial, com a morte de seus descendentes, como é o caso de dois filhos homens do imperador.
O historiador e curador da exposição, Reuven Faingold, apresentou a viagem do monarca à Palestina, chamando a atenção do público para seu evidente interesse na cultura judaica. Mostrou o roteiro escolhido pelo imperador e contou passagens divertidas e importantes da viagem, como o encontro do monarca com o emir Abd-El-Kader, líder da revolta árabe na África, e suas inúmeras visitas a sinagogas, entre elas a pequena sinagoga dos judeus samaritanos.
A historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro retratou as relações de D. Pedro II com a cultura judaica de acordo com duas vertentes: o convívio com judeus que atuavam na corte e o interesse de D. Pedro II por judeus célebres, no Brasil e no exterior. A historiadora falou ainda sobre os judeus ilustres trazidos para a corte, por intermédio do monarca. Entre eles, a atriz francesa Sarah Bernhardt e o pianista Louis Morreau Gottschalk.
Por fim, Lilia Moritz Schwarcz falou, em sua palestra, sobre a construção da figura pública de D. Pedro II. Ela contextualizou a personalidade do imperador nas obrigações da época.