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Paixão, talento e autenticidade

Postado em 01/11/2005

Caio Fernando Abreu e José Guilherme Merquior: semelhanças transcendem destino comum

CECÍLIA PRADA

Os artigos que tenho publicado nos últimos 11 anos nesta revista têm-me proporcionado uma grande satisfação pessoal – pelo retorno que tenho tido de parte de numerosos leitores, pela sua repercussão inclusive no exterior, pois vários deles foram reproduzidos em órgãos dos Estados Unidos e da Europa. E me valeram até consultas da International Press Association, e uma entrevista radiofônica que dei em uma noite do ano passado, em um inglês meio enferrujado, a um público do outro lado do mundo, pela ABC News de Sydney.

No entanto, algumas vezes o estilo impessoal de que os vesti frustrou-me de uma espontaneidade maior – principalmente quando tratavam de pessoas que conheci, com quem convivi e mantive inclusive relações de amizade, nestes meus 55 anos de vida profissional, como jornalista e escritora. Coisa que não posso absolutamente deixar que aconteça agora com Caio Fernando Abreu e José Guilherme Merquior – que nos deixaram muito cedo, mas com um destino literário e intelectual cumprido. E aos quais conheci muito.

Neste ano de 2006 lembramos os dez anos de morte do primeiro, aos 47 anos, e 15 do segundo, aos 49 anos: Caio (1948-1996), um extremado escritor hippie, romântico e boêmio, de quem se pode dizer que jogou a vida pelas suas paixões, para nos deixar uma obra de ficcionista de intensidade e brilho ímpar, reconhecida internacionalmente; Merquior (1941-1991), um diplomata de carreira que atingiu o cargo de embaixador, notável ensaísta e pensador, um scholar de fenomenal erudição, reconhecido nada menos do que por seu mestre Lévi-Strauss, entre muitos outros, como "um dos espíritos mais vivos e mais bem informados de nosso tempo" – mas que muitos insistem, no Brasil, em definir ainda apenas como "o homem do establishment".

Díspares, tendo vivido em ambientes inteiramente diversos, realizando exigências íntimas de teor tão discordante, vejo nessas duas figuras uma semelhança que transcende o destino comum da morte trágica e prematura, no auge de sua maturidade artística e intelectual. É que ambos representaram, cada um a seu modo e segundo os meios de expressão que escolheram, um papel de "pedra de escândalo", de enfant terrible – personalidades singulares, que não hesitaram em se expor à crítica de tantos na exacerbada defesa do seu direito à autenticidade: de modo de ser, para Caio, de modo de pensar, para Merquior.

Vida extravagante

Conheci Caio Fernando Abreu em 1978, em um de seus períodos paulistanos. Tinha 29 anos e uma excelente bagagem literária – depois de sua estréia em 1970, com o livro Inventário do Irremediável (Prêmio Fernando Chinaglia da UBE), publicara mais dois de contos e um romance. Contista e jornalista freelancer desde a adolescência, chegou a matricular-se, mais de uma vez, em cursos universitários de literatura e teatro, mas nunca teve paciência para prossegui-los – na época da contracultura, preferiu, à rotina do saber institucional, ser um autodidata da cultura clássica, à qual sobrepunha e fundia como ninguém os elementos da cultura pop do seu agitado e extravagante cotidiano.

Caio é certamente o autor que mais intensamente vivenciou essa época, que mais perfeitamente a sofreu e descreveu, em um estilo "fragmentado", ágil, profundo, amadurecido, capaz de reproduzir – como já queria Antonin Artaud – "o ritmo selvagem e epiléptico de nosso tempo". Como diz Ítalo Moriconi, que organizou em livro suas cartas, "a obra de Caio Fernando Abreu faz a ponte entre as instigações pop-culturais e ‘malditas’ ou ‘marginais’ dos anos 1970 e a pasteurização juvenil e mística dos 90, passando pela disseminação (banalização?) nos 80 dos modelos baseados na literatura policial". E conclui: "Caio enfrentou tais fantasmas da única maneira que o artista competente e antenado com seu tempo pode fazer: incorporando-os e transcendendo-os em seu próprio texto".

Eu, nessa época, trabalhava para a revista Istoé, principalmente como crítica teatral. Resolvi fazer uma grande entrevista com dois expoentes da "geração 70", Caio e Julio Cesar Monteiro Martins – este tinha somente 23 anos mas já lançara um livro de contos importante, Torpalium.

Os dois jovens contistas, que haviam sido incluídos em uma histórica antologia, Histórias de um Novo Tempo, lançada em 1977 pela Codecri, a editora do semanário Pasquim, vinham com ímpetos de apostolado, pregando a necessidade de fazer um novo manifesto literário, ou de repetir, talvez, a Semana de Arte de 1922. Grandiosidade que logo se esboroaria, com o refluxo literário dos anos 1980. Como, aliás, conta, muito melhor do que eu, um representante dessa geração, o escritor e editor Luiz Fernando Emediato, no site da Geração Editorial.

Durante muitos anos perdi Julio Cesar de vista, porque ele escolhera há muito viver na Europa, onde hoje é professor de literatura brasileira na Universidade de Pisa – recentemente redescobri-o na internet, por ter traduzido para o italiano um conto meu. Quanto a Caio, fixou residência em São Paulo, embora viajasse freqüentemente para a Europa, para divulgação de seus livros, que foram muito traduzidos e adaptados. Nos últimos anos de vida, atingido pela Aids, buscou refúgio na casa dos pais, em Porto Alegre, e conseguiu ter, enfim, com os direitos autorais vindos do exterior, uma estabilidade financeira. Lutou arduamente para se manter, a vida toda, para ter tempo de dedicar-se à ficção – no início dos anos 1970 resolveu ir viver na Europa, com a cara e a coragem. Passou dois anos na Suécia e um ano em Londres, lavando pratos nos restaurantes oito horas por dia, ou fazendo faxina em casas de família.

Dizia: "A literatura, essa deusa-cadela, é a coisa que mais tenho amado na vida". Em São Paulo, conseguia empregos bem remunerados, no jornalismo e na publicidade, trabalhava uns tempos e até economizava criteriosamente o dinheiro, para de repente pedir demissão e trancar-se em casa para escrever. Alternou sempre esses períodos de introspecção e criação, isolado de todos, com outros de trepidante existência boêmia e social (que ia minando sua saúde, entre a promiscuidade sexual e um desvairado uso de drogas de todo tipo, como sempre confessou abertamente – e que lhe valeram estadas na prisão e tortura, no Rio de Janeiro, por consumo e porte de substâncias ilícitas). Antes disso, em 1968, perseguido pelo Departamento de Ordem Política e Social (Dops), fora obrigado a se refugiar por uns tempos na fazenda da escritora Hilda Hilst, em Campinas. Em Londres, também chegou a ser preso, com um bando de amigos, em um shoplifting – travessura muito própria da época, encenação de um protesto bastante ingênuo contra a "caretice" da sociedade capitalista.

Fui conhecendo melhor Caio ao sabor dos encontros casuais, em casas de amigos, em eventos da cidade, embora nunca chegássemos a ter maior intimidade. Nos respeitávamos e nos reconhecíamos como escritores de uma mesma "família" literária – subjetiva, introspectiva e bem atormentada. Tenho um exemplar de O Ovo Apunhalado autografado: "...Tão bom encontrar uma irmã no meio do mato – um abraço do companheiro..." Um dia, sem mais, Caio me virou as costas e a cara. Coisa que me magoou muito. Me atingiu. Embora eu adivinhasse o motivo: na época, ele era editor de uma revista e eu o sondara sobre a possibilidade de vir a colaborar nela. Ora, já recaíra sobre mim uma maldição, cujos reflexos perduram até hoje: fui excomungada pela massa esquerdista de plantão, que controlava toda a imprensa, pela ousadia de ter feito uma reportagem (Prêmio Esso de 1980) cujas denúncias provocaram o fechamento de uma clínica psiquiátrica para crianças e adolescentes que mais equivalia a um campo de concentração, mas que era de propriedade de conhecido médico "progressista". É evidente que Caio, como muitos outros, não arriscaria o emprego para me socorrer – em época em que enfrentei dificuldades de todo tipo para sobreviver. Mas a compreensível covardia não precisava ir até o ponto de deixar de me cumprimentar. Jurei: nunca mais escreveria nada sobre ele.

Ora, ao deparar, há alguns dias, com o referido texto de Luiz Fernando Emediato ("Meu caso de amor com Caio Fernando Abreu"), admirei sua coragem em expor com tanta naturalidade aspectos íntimos seus e do amigo, e em ressaltar, sem desmerecimento, os traços de paranóia, instabilidade emocional e hiper-sensibilidade que tornavam Caio um ser "comoventemente frágil e absolutamente infeliz". E pude diluir em sentimento compartilhado por muitos o que julgara ser uma atitude particularizada.

E estou novamente escrevendo sobre Caio... ou será ele que escreve, de onde quer que esteja, por meu intermédio? É sabido que esse nosso Rimbaud brasileiro, esse romântico desvairado, era exageradamente dado a misticismos, astrologia, magia e coisas que tais – não saía de casa sem consultar horóscopo. Tenho de contar um episódio curioso: de 1995 a 2000 fui encarregada pela Secretaria Municipal de Cultura de organizar o book anual relativo ao programa Encontro de Escritores nas Bibliotecas. Partilhei a organização do primeiro volume da série (relativo às palestras realizadas em 1993/94) com a escritora Nilza Amaral. Estávamos dividindo os autores da lista quando deparei com o nome de Caio Fernando Abreu. Passei-o imediatamente a Nilza. Após alguns meses de trabalho, quando o livro já estava pronto para a gráfica, recebo um telefonema da secretaria: eu esquecera de redigir a biografia e de editar a palestra de um dos escritores, Walcyr Carrasco. Protestei: não era dos "meus", a lista foi consultada, Nilza disse que não era dos dela, e eu concordei em fazer o trabalho com os dados passados pela secretaria. Comecei a escrever meio maquinalmente a biografia de um escritor gaúcho, nascido em Santiago do Boqueirão, filho de um militar e de uma professora, que desde muito cedo, etc. Dali a pouco começava a estranhar, me dizia: "Que engraçado, a vida desse Walcyr Carrasco é tão parecida com a do Caio, mas afinal os dois são gaúchos..." (Walcyr não é gaúcho, sua vida não é parecida com a de Caio, mas eu não o conhecia na época.) De repente dei um pulo na cadeira: "Mas esta é a biografia do Caio!" (E eu que tinha jurado...) Descobriu-se logo o equívoco, a secretaria trocara as fitas gravadas pelos dois escritores, e Nilza editara a "do Caio" com os dados do Walcyr. Tive de aceitar terminar o trabalho. Mas fiquei pensando sobre essa estranha, muito estranha coincidência – como o livro, se me lembro bem, só saiu no início de 1996, Caio já estaria então no hospital, muito mal, ou teria já morrido (faleceu em Porto Alegre, em 25 de fevereiro de 1996). Estou nitidamente lembrada da sensação que tive na época, de que Caio me forçara a escrever sobre ele. Como agora, será?

Um sábio em altas esferas

José Guilherme Merquior, ao contrário de Caio Fernando Abreu, foi homem de vida pessoal e profissional extremamente abrigada, até uneventful – se não levarmos em consideração as múltiplas peripécias da grande aventura do espírito em que se empenhou. De vasta e valiosa obra, vertida em 25 livros de ensaios (crítica literária, filosofia, ciência política, estética) – um patrimônio cultural que bem justifica a definição dada por Eduardo Portella: "...ele foi a mais fascinante máquina de pensar do Brasil pós-modernista – irreverente, agudo, sábio".

Conheci Merquior no que me parece hoje ser uma outra vida que tive – no período de 18 anos (1955-1973) que passei no Itamaraty, de início como diplomata de carreira eu própria, e depois, quando a Casa me impôs a demissão, por motivo de casamento com colega, como mulher de Sérgio Paulo Rouanet. Foi no nosso apartamento de Botafogo, trazido por Sérgio, que o vi pela primeira vez, embora já nos conhecêssemos "de artigos", pois nós três colaborávamos no Suplemento Literário do "Jornal do Brasil", dirigido por Reynaldo Jardim (que fora meu colega na Faculdade Cásper Líbero...). Merquior parecia um menino, conservou sempre essa característica, rosto corado e redondo, dono de uma gentileza sem par, uma quase ingenuidade, por trás dos óculos de míope, único atestado de sua grande intelectualidade – declarou, mais tarde, que durante a vida toda procurara "estudar 100 páginas por dia", apesar das rigorosas incumbências da carreira diplomática, em que também brilhou.

Naqueles dois ou três anos (1964-1967) que passamos no Rio de Janeiro, entre um posto e outro, como é obrigatório na carreira, nosso apartamento tornou-se cenário de freqüentes e sofisticados debates do grupo formado por Rouanet e Merquior, Leandro Konder, Eduardo Portella. Aos quais somava-se o convívio freqüente com Maria Luiza e Marcílio Marques Moreira, com Ruth e Antônio Houaiss, e com outros colegas diplomatas, escritores, artistas, jornalistas – estávamos todos perplexos e desolados, esquerdistas convictos que éramos, mas colhidos nas engrenagens da carreira. Enfim, nos defendendo como podíamos da recente catástrofe política que se abatera sobre o país – da qual Houaiss havia sido uma das principais vítimas, cassado e demitido do ministério nas primeiras levas do golpe de 1964.

Naquele tempo Merquior era definidamente marxista. Lembro-o entusiasmado, obcecado com Lukács, falando de Gramsci, sob perigo de ser cassado naquele início de carreira como "comunista" – um risco que também Rouanet correu. O melhor biógrafo de Merquior, José Mário Pereira, conta como ele teve de responder a inquérito por vários atos que constituíam pecados mortais, para os militares: fizera conferências no Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb) – órgão formulador do desenvolvimentismo juscelinista –, participara de um festival de cinema russo no Museu de Arte Moderna (MAM) e, em Brasília, ajudara a coordenar uma exposição de fotógrafos cubanos... Foi suficiente, porém, que seu entusiasmo esquerdista fosse se transformando, com o acúmulo de saber e o exame acurado da "superstição ideológica", em crítica, e que sua visão política o levasse a tentar criar um sistema próprio de pensamento, desvinculado de partidarismos (um "liberalismo-moderno que não possui complexos frente à questão social, que ele assume", um renovado "iluminismo"), para que começasse a sofrer o mais acirrado, cotidiano e feroz combate de toda a intelligentzia tupiniquim, e a ser tachado de "reacionário" e "intelectual orgânico da ditadura". Nem toda a intelligentzia – Leandro Konder, por exemplo, um dos últimos comunistas convictos e integrais que ainda temos, manteve-se sempre seu amigo, seu grande admirador.

Só que a história do que se passou realmente dentro do Ministério das Relações Exteriores naquele tempo do terror, do denuncismo de colegas, da situação extremamente precária que tivemos de enfrentar como funcionários de um governo ditatorial, não foi ainda contada. Basta lembrar que um dos primeiros IPMs (Inquéritos Policiais Militares) do país foi realizado dentro da "célula comunista" da Delegação do Brasil junto à ONU, em Nova York – com alguns resultados trágicos, como o caso de Houaiss, mencionado acima, mas também com os laivos de ridículo de que se revestiu a grande caçada: um de nossos colegas se viu em apuros e foi até removido para um país africano, como pessoa altamente perigosa – seu único crime fora ter-se matriculado em um curso de chinês, para "estimular os neurônios estudando uma língua difícil".

Em 1959, com 18 anos, Merquior começara a escrever para o Jornal do Brasil bem fundamentados artigos de crítica literária, não hesitando em devastar reputações de poetas bem conhecidos. Manteve sempre uma independência crítica, um vigor intelectual que o arrastou para controvérsias acirradas – as duas mais populares foram, nos anos 1980, a que manteve com o psicanalista Eduardo Mascarenhas, e outra, com Marilena Chauí, em que a acusou de plagiar o filósofo Claude Lefort. Como diz José Mário Pereira, "a filósofa paulista revidou batendo na velha tecla de direita versus esquerda. O fato é que se armou uma tempestade em São Paulo, com direito até a abaixo-assinado e outras reações azedas contra ele".

Para se defender o enfant terrible contra-atacava, em acesso de contida fúria: "... Será minha culpa se, em nosso meio intelectual, volta e meia ainda se valoriza mais a sacação do que a fundamentação, o palpite do que o argumento, a alegre usurpação de idéias alheias do que o cuidado em identificar tradições de pesquisa e linhagens de pensamento?"

Mas um grande espírito, como o do professor Antonio Candido, sempre o reconheceu "como um dos maiores críticos que o Brasil teve", capaz de fazer desse trabalho "uma investigação que não se satisfazia em descrever e avaliar os textos, mas desejava descobrir o sentimento entesourado e em seguida ligá-lo a outros produtos da cultura". Hoje, em dias que felizmente já não são tão dilacerados por ideologias oportunistas e cobrança de posições dogmáticas, a figura singular de José Guilherme Merquior ressurge das cinzas do ostracismo e do "patrulhamento", para vir entregar seu legado de saber às novas gerações. 

 

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