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Os retirantes, de volta ao nordeste

Postado em 01/11/2005

Desemprego, alto custo de vida e falta de segurança reduzem fascínio da cidade grande

MIGUEL NÍTOLO


Arte PB

"Agora pensando segui otra tria,
Chamando a famia
Começa a dizê:
Eu vendo meu burro, meu jegue e o cavalo,
Nós vamo a São Palo
Vivê ou morrê."
                Patativa do Assaré

É uma cena que se repete há cem anos e, como mostram os relatórios oficiais, veio ganhando expressão à medida que o tempo avançava. Ficou evidente nos anos 1930, com a expansão da produção agrícola no estado de São Paulo, e ainda mais pujante na década de 1960, com o boom experimentado pela construção civil na capital e pelo acelerado processo de industrialização puxado pelo setor automobilístico, que começava a se desenvolver nos municípios do ABC. Primeiro eles somavam alguns milhares; depois passaram a ser contados aos milhões. O contingente de nordestinos que deixaram o estado de origem, fugindo da fome, da miséria e da seca atrás de melhores oportunidades e condições de vida no sudeste, em especial na cidade de São Paulo, mudou para sempre a cara do Brasil. Algo parecido com o legado herdado das imigrações européia e japonesa, que contribuiu extraordinariamente para o desenvolvimento da nação e ainda hoje se faz sentir. O movimento interno de pessoas do nordeste em direção aos estados do sul, no entanto, é uma coisa bem maior, quase uma epopéia expressada em números grandiosos e que só poderiam mesmo ganhar vida num país de dimensões continentais fustigado por problemas de toda ordem nos planos econômico e social.

É sabido que, entre os anos 1940 e 1980, cerca de 57 milhões de brasileiros mudaram de cidade ou trocaram de região. E que, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), com base no censo de 2000, de cada cem brasileiros 16 residiam em estados que não lhes serviram de berço. Ceará, Bahia, Minas Gerais, Paraíba e Pernambuco são as unidades da Federação de onde mais partem grandes levas de migrantes, segundo Luiz Bassegio, secretário do Serviço Pastoral dos Migrantes da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e do Grito dos Excluídos Continental. O destino preferencial dessas pessoas, como se sabe, foi e continua sendo São Paulo. "A industrialização e a urbanização da capital paulista sempre atraíram os brasileiros do nordeste", observa a socióloga Dulce Maria Tourinho Baptista, docente da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo. "Dadas as precárias condições de vida no lugar de origem, eles continuam correndo atrás de uma vida melhor, alimentados pela ilusão de que São Paulo é a resposta a seus desafios", diz. Essa interpretação da cidade como local do emprego e da boa qualidade de vida, no entanto, começou a ruir anos atrás, fazendo com que parcela considerável dos migrantes passasse a observar melhor o destino de suas andanças antes de se aventurar na direção do sudeste.

Isso está cristalino nos números do último censo do IBGE e nos registros dos estudiosos do assunto. A migração continua ativa, mas seu padrão mudou na década passada: segundo pesquisas realizadas, São Paulo está mandando mais gente embora do que recebendo. O fenômeno se manifesta em todo o estado, com destaque para a Região Metropolitana da capital paulista, constituída de 38 municípios onde moram 18 milhões de pessoas (censo de 2000). "É difícil ter números precisos sobre o caminho de volta, mesmo porque há muita gente que se vai por conta própria e não é contabilizada nas rodoviárias", diz Bassegio. Dados tabulados pelo IBGE mostram que, de 1991 a 2000, teriam saído do estado rumo a outros pontos do território nacional 468 mil pessoas (os nordestinos puxam a lista) e chegado, no mesmo período, 400 mil. A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), do IBGE, também indica o abrandamento da migração. José Marcos Pinto da Cunha, demógrafo e pesquisador do Núcleo de Estudos de População (Nepo) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), diz que, com base nos números da Pnad de 2004, divulgados no final de 2005, é possível concluir que a migração recuou em torno de 29%. "Não se trata de uma redução calculada em função do aumento do retorno, embora ambos os fenômenos possam ter relação (ou seja, se mais pessoas voltam talvez isso implique diminuição da ida). Não é possível fazer uma associação direta, até porque parece que está havendo um processo de ‘circularidade’ da migração", explica ele.

Fato é que, apesar de todos os problemas, o sudeste persiste exercendo um fascínio sobre os migrantes. Isso se explica por uma série de fatores, como a continuada preferência pela cidade de São Paulo, onde, em relação a algumas outras capitais, o migrante tem mais chances de sobreviver.

"Periferização"

A vocação da cidade do trânsito caótico e das enchentes era, até recentemente, ser o coração da indústria nacional. Hoje, a grande metrópole, que também é um destacado centro financeiro, se transforma aceleradamente num núcleo global nos moldes de outras importantes capitais mundiais – um lugar onde a mão-de-obra não-qualificada vai paulatinamente perdendo espaços em favor da profissionalização. A verdade é que, assim como São Paulo, algumas cidades da região também viram o número de nordestinos encolher, a exemplo de Francisco Morato, cuja população era composta de 47,77% de migrantes em 1991, e que chegou a 2000 com 38%; Itaquaquecetuba (47,59% e 39,03%); Barueri (38,97% e 32,46%); Ferraz de Vasconcelos (40,85% e 35,55%) e Vargem Grande Paulista (36,95% e 32,32%).

Apesar dessa expressiva redução, a forte presença de migrantes ainda registrada nos municípios que compõem a Grande São Paulo é um reflexo do que se convencionou chamar de "periferização" da cidade. Como viver na capital é muito mais caro, "quem chega vai morar nas periferias da periferia ou ainda nas vizinhas cidades-dormitórios", diz Lucia Bógus, do Núcleo de Estudos e Pesquisas Urbanas do Departamento de Sociologia da PUC de São Paulo.

A par do custo de vida, o desemprego também assusta. "Antes, a pessoa chegava a São Paulo e já se empregava. Agora, as famílias que teoricamente poderiam receber um parente em casa, mesmo que temporariamente, já não o fazem pois seria um peso a mais para quem tem um ou mais desempregados para sustentar", diz Bassegio, da CNBB.

O adeus a São Paulo, portanto, parece compor uma tendência irrefreável, e ninguém coloca em dúvida que o próximo censo exibirá números ainda mais encorpados acerca dos migrantes que estão indo embora. "Cheguei há 38 anos e no início sofri muito, mas sobrevivi, uma vida de luta que é bem conhecida dos meus irmãos nordestinos", diz Francisca Chaves Rodrigues, a Francis Bezerra, presidenta do Conselho Estadual de Participação e Desenvolvimento Nordestino (Copane) da Secretaria da Justiça e Defesa da Cidadania de São Paulo. Ela conhece a história dos migrantes como poucos. Natural de Bacabal, no Maranhão, chegou à capital paulista aos 18 anos de idade, acompanhada apenas dos três filhos pequenos. Diz que "comeu o pão que o diabo amassou" e que, diante de tanto sofrimento, entende com pesar as razões que levam muitos migrantes a arrumar as malas e fazer o caminho de volta.

Desemprego

Apelidado de migração de retorno, o fenômeno decorre, dentre outras coisas, da elevada taxa de desemprego amargada pelos paulistanos e dos baixos salários pagos às pessoas com pouca ou nenhuma capacitação. "Há duas ou três décadas, o tempo consumido pelo migrante para conseguir um emprego não era mais que uma semana ou um mês, na pior das hipóteses", explica Bassegio. "Agora, não só é mais demorado como quase não se encontra trabalho. Além disso, há os sérios problemas da falta de moradia e da violência."

Pesquisas indicam que um terço dos nordestinos da Região Metropolitana de São Paulo trabalha na construção civil e em serviços domésticos, e parte deles ganha somente R$ 350 por mês, dinheiro insuficiente para levar uma vida com dignidade e decência numa cidade com o porte, as exigências e a complexidade da capital paulista. Isso, é claro, quando têm a carteira assinada e os direitos trabalhistas respeitados. Além disso, segundo o demógrafo José Marcos, a transformação no mundo do trabalho é uma das maiores responsáveis pela migração de retorno. "Desde os anos 1980, o emprego na indústria e na construção civil vem diminuindo, e esses eram exatamente os setores que tradicionalmente absorviam a mão-de-obra pouco qualificada." Ele argumenta que, além do fechamento de vagas, há a "precarização" do trabalho, principalmente no setor de serviços. "A Pnad indica que o rendimento em São Paulo, em 2004, foi 5,3% menor que o registrado no ano anterior e que a renda per capita dos pobres não chega a um salário mínimo."

Muitos não conseguem trabalho, voltam para o estado de origem, sossegam um tempo, depois retornam e assim sucessivamente. "A pessoa que migra é excluída tanto no seu local de origem quanto no de destino", comenta Lucia Bógus. Ela destaca que cada região brasileira já tem seu "estoque populacional" de trabalhadores não-qualificados, mas que nos últimos anos isso estaria fugindo do controle. "A profissão do faz-tudo acabou", afirma Francis Bezerra, referindo-se à mão-de-obra não-especializada que ainda procura trabalho em São Paulo. "O indivíduo, hoje, tem de ser qualificado, ter uma profissão, estar antenado na globalização. São Paulo já não é mais a galinha dos ovos de ouro", afirma. Complementando, a pesquisadora Lucia Bógus alerta para o fato de que "sem trabalho e sem espaço na sociedade, muitos migrantes podem acabar ingressando na criminalidade ou no mercado informal".

A Pnad 2004 mostra que grande parte das pessoas que desistem de viver nos grandes núcleos retornam para regiões pobres, o que indica que a volta não está associada ao surgimento de melhores oportunidades nas cidades natais. Não há ainda uma comprovação a esse respeito, mas, de acordo com José Marcos, da Unicamp, é possível que os programas de transferência de renda (extensão da aposentadoria rural, por exemplo) estejam dando certo "fôlego" para as regiões carentes, estimulando a permanência de seus residentes. "Mesmo que irrisórios, esses recursos garantem a subsistência. Isso pode estar segurando os potenciais migrantes em seu local de origem e, quem sabe, atraindo de volta aqueles que não se encaixaram em São Paulo." O pesquisador deixa claro que não está sendo categórico quanto a isso. Apenas diz que, segundo alguns estudos, a economia de muitas cidades pequenas gira em torno da aposentadoria rural. Seja como for, "o migrante que retorna não é mais o mesmo", afirma a socióloga Dulce.

Rede familiar

"Acontece hoje no Brasil uma maior circulação da população devido às facilidades de transporte, à existência de um mercado de trabalho nacionalizado (para não dizer globalizado), a uma grande flexibilidade no emprego e, sobretudo, ao suporte da rede familiar", diz Sidnei Marco Dornelas, pesquisador do Centro de Estudos Migratórios (CEM), de São Paulo. Ele explica que os nordestinos sempre migraram apoiados por essa rede e que é por meio dela que, muitas vezes, se sentem tentados a largar tudo e sair atrás das oportunidades de trabalho. "Na verdade, não existe mais a figura do ‘retirante’ dos anos 1960, pois a pós-modernidade penetrou em todos os rincões do Brasil, tendo a televisão por carro-chefe. É com essa mentalidade e municiado de informações que ele migra e circula pelo país", acentua Dornelas. O técnico do CEM salienta que não são apenas os menos afortunados que empreendem o caminho de volta. Muitos dizem adeus a São Paulo assim que se aposentam: vão embora para se estabelecer com alguma forma de negócio, não raramente, fora de seu estado de origem. "A rede familiar dos migrantes se estende por todo o território nacional, o que faz com que haja mais alternativas para esses deslocamentos", esclarece.

Dulce Baptista, da PUC-SP, explica que, além do apoio familiar, tem se destacado o papel das chamadas redes sociais – associações e entidades não-governamentais –, que acompanham todo o processo migratório. "É inestimável a significância de seu capital social e de seu papel comunitário e simbólico. Elas atuam como base e apoio para viabilizar a migração e concretizar a adaptação do migrante à cidade", acentua. Dulce comenta que tem havido mudanças tanto nos processos migratórios quanto nas próprias redes sociais.

A presença cada vez maior de migrantes nas operações de corte da cana-de-açúcar e alguns outros trabalhos correlatos no interior de São Paulo decorre, em boa dose, do papel exercido por elas. A reportagem de Problemas Brasileiros conversou com trabalhadores braçais oriundos do nordeste que prestam serviço em usinas na região de Bauru. Nessa modalidade de migração, a pessoa passa algum tempo fora de casa, mas não chega a mudar de endereço. No caso da cana-de-açúcar, os migrantes são contratados para trabalhar apenas enquanto durar a safra, coisa de sete ou oito meses. "Chegamos em abril graças à indicação de um conhecido que mora aqui há mais de 20 anos e vamos embora em novembro", disse Francisco Filomeno, de 32 anos, no interior paulista pela segunda vez. Assim como dezenas de outros trabalhadores, ele e seu primo, Manuel de Souza, de 35 anos, com quem divide o aluguel da casa onde vivem temporariamente (R$ 250), vieram de Paulistana, na microrregião do alto-médio Canindé, no interior do Piauí. "Minha idéia é voltar no ano que vem e nos próximos também." Filomeno diz que só no quarteirão onde reside atualmente há 16 trabalhadores braçais naturais da mesma região, moradores da zona rural e pais de família. "Todos os meses mandamos parte do salário para casa", conta João José de Carvalho, de 36 anos, vizinho de Filomeno e pela primeira vez no interior de São Paulo. Os três não cortam cana, tarefa que está sendo confiada a outros migrantes de diversos pontos do país. Seus afazeres na usina resumem-se ao trabalho de empacotar e empilhar os sacos de açúcar. A rede social funcionou no caso de Filomeno, Souza e Carvalho, e ajudou a melhorar sensivelmente o padrão de vida de seus familiares.

Ainda no âmbito da solidariedade, Francis Bezerra, do Copane, tem desenvolvido um trabalho exemplar, oferecendo ajuda e dando amparo aos migrantes que moram ou tentam a vida em São Paulo. Membro do corpo diretivo da Associação dos Nordestinos do Estado de São Paulo (Anesp) – entidade estabelecida no bairro paulistano do Pari e fundada há 22 anos –, Francis diz que não se esqueceu do desconforto do pau-de-arara que um dia a trouxe ao sul e, no mesmo diapasão, dos momentos de aflição dos primeiros dias na grande metrópole. "Não tinha onde dormir, não tinha trabalho, não tinha onde bater", recorda. "A perseverança e a vontade de vencer, no entanto, traçaram o meu caminho e me trouxeram até aqui." O aqui a que Francis se refere é uma entidade que vive, hoje, de ajudar os carentes. Ela diz que tem orgulho do "Cidadão do Amanhã", uma iniciativa que dá atendimento a mil crianças nos campos social, educacional e esportivo. "Aqui elas aprendem capoeira e computação, encenam peças teatrais e recebem reforço escolar, para citar apenas alguns cursos." Francis informa que 80% da clientela é constituída por filhos e netos de nordestinos. Diz que esse é o tipo de informação que não procura levantar, porque o objetivo da Anesp é ajudar indistintamente aqueles que estão pedindo socorro. "Temos aqui uma padaria comunitária que chamamos de Maria Bonita, onde as mulheres aprendem a fazer pão e ganham por isso. Elas levam o produto de seu aprendizado para casa; parte é consumida pela família, parte é comercializada com os vizinhos." Francis esclarece que as "padeiras" não precisam arcar com o custo das matérias-primas caso comprovem que o dinheiro recebido pela venda dos pães foi aplicado na aquisição de alimentos para o lar. Enfim, um trabalho solidário que tem tido o mérito de contribuir para o bem-estar de quem abandonou sua terra na esperança de concretizar um sonho na maior parte das vezes inatingível. 

 

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