UM
LEITOR DE SALÃO
por
Wilson Bueno

ilustrações:
www.marcosgaruti.com
Depois de uma semana
sem receber um pedido sequer de leitura por nenhum salão da Cidade
Nova ou da Cidade Velha, as economias rarefeitas, decido bater às
portas das casas a oferecer os meus préstimos, que vão
da apresentação de versos livres a longas cartas de amor,
sobretudo as de Schiller, que, de meu repertório, são
as que causam o maior sucesso. Fecham-me invariavelmente a porta na
cara, com uma insensibilidade que me põe alguma vez prostrado.
Mas insisto, nunca me deixei derrotar pela má vontade, mesmo
de platéias tidas e havidas como inóspitas, nem vou me
deixar abater agora por mães ou pais de família para quem
a poesia é uma coisa tão inútil - e sem qualidades
- quanto as nuvens. Desconhecem com certeza a função das
nuvens e, por suposto, a da poesia, ignorantes e domésticos;
prosaicos, e cotidianos para além do ridículo.
A chuva fina, e a neve que a ela se segue, continua intermitente, com
longos períodos em que sopra apenas o vento que nos congela o
nariz. Impossível esquecer o velho Hermann, meu pai, desde sempre
meu pai - "Já te disse e outra vez te digo: essas poesias,
além de serem coisa de mocinha, não matam a fome de ninguém!"
Ou então, mais brando: "Arranja um ofício, meu filho.
Esquece essas coisas de versos e livros..." Adianta agora dar razão
ao pai?
Encolhidos em suas casas, só uma coisa anima os nossos concidadãos
- abrigar-se no aconchego dos lares, ao calor das lareiras e dos livros
silenciosos. Aceito que prefiram a leitura às expansões
dramáticas com que, mediante pagamento, irrisório, mas
ainda assim pagamento, costumo cercar, modéstia à parte,
de brilho e leveza as minhas apresentações. Ler é
ato solitário e extremamente prazeroso, e ninguém melhor
do que eu para assinalar isto, leitor contumaz de Schiller e, sobretudo,
de Breugmann, meu poeta preferido e de quem sei inúmeros poemas
de cor, ainda que Schiller continue imbatível nos salões.
Insisto com os clientes mais antigos e estes, ainda que declinem de
meus préstimos, determinados em não aceitar que lhes invadam
as salas a minha (falsa) alegria e os meus gestos peripatéticos,
consolam-me abrindo as recheadas carteiras, a me estender, generosos,
algumas vezes muito mais do que a rigor mereceriam as minhas leituras.
A primeira, a segunda e até uma terceira vez, ainda tudo são
flores a mitigar a culpa que faz os meus clientes mais antigos abdicarem
do autêntico espetáculo com que costumo acontecer nos salões,
e ainda pagarem por isso, reconhecidos de meus préstimos pelo
passado. Mas é na quarta ou na quinta vez que, já do portão,
quase me expulsam da frente de suas residências; e humilham-me
o engenho pequeno, por vezes duramente.
Não esqueço aquela vez em que o pai, vendo-me chegar à
casa sobraçando um volume de Breugmann, descobriu que eu o furtara
da biblioteca da cidade. Exigiu que retirasse a camisa e chicoteou-me
as costas impiedosamente com o cinto de couro. Quase sem poder andar,
obrigou-me a acompanhá-lo ao Centro Jurisdicional onde havia
duas enormes estantes a que chamavam, com certa pompa interiorana, de
Biblioteca Professor Hans Ingesfeuer. Os olhos inchados de chorar, ainda
assim fui obrigado a indicar, com exatidão, o local exato de
onde o volume havia sido tirado. O velho Hermann era um gigante cioso
de suas ovelhas domésticas. Ai que fugissem às regras,
às leis, aos ditames da ordem e do progresso.
Festas de aniversário, casamentos, bodas, bar-mitzvás,
e até a dois ou três sepultamentos já fui convocado,
devo confessar, para leituras fúnebres à beira de ricos
caixões marchetados de prata.
Desde o mês passado, só chuva e neve, mais neve que chuva,
castigam inclementes nossa cidade e empurram cada vez mais nossos concidadãos
para o interior das casas. E os levam a negar, agora sem mais delongas,
os meus muitas vezes desesperados oferecimentos.
Confesso, talvez me repetindo, que me anima a necessidade terminal de
suprir a despensa de casa, onde já tudo escasseia, além
de providenciar a lenha e o carvão destinados a alimentar lareira
e fogão, respectivamente.
Até
mesmo a vaga indicação de que um certo médico de
aldeia próxima à nossa cidade apreciava as leituras de
salão, indiferente aos dias maus, a promover seletos encontros
regados a vinho, queijos e canções, me levou pressuroso,
em combalida sege, a enfrentar a nevasca furiosa para chegar até
lá, aos confins do burgo onde, agora, nossos concidadãos
nem sequer saem de casa; não porque não precisem, mas
pela razão simples de que as ruas estão praticamente intransitáveis
e nossos concidadãos no geral prezam suas vidas e as de seus
familiares. Não precisa dizer que o médico de aldeia,
um pouco apalermado, negou que estivesse atrás de leitor de salão,
insistindo em lembrar que a última vez a dar uma festa em sua
casa foi por ocasião do bar-mitzvá do filho mais novo,
hoje jovem oficial de nossas guarnições militares sediadas
na capital. Retornar na combalida sege, enfrentando chuva, neve, lama
e frio, foi ainda mais frustrante, não houvesse se mostrado,
também, extremamente penoso.
Houve uma ocasião em que o pai me flagrou, tarde da noite, a
lamparina ainda acesa, mergulhado na leitura de Madame Bovary, de Flaubert.
Àquela época o livro provocara um ruidoso escândalo
na censura. De desconhecido, o romance caiu, por efeito, na boca do
povo e inexistiu um pai de família que não o interditasse
em seu lar, mesmo ignorando que, se atravessa o livro alguma coisa de
erótico ou até de pornográfico, são nuanças,
laivos imperceptíveis de secreta sensualidade. Não precisa
acrescentar que Hermann me arrancou o livro das mãos e, com o
gesto, quase me arranca junto os braços. As garras enormes, rasgou
o livro ao meio e o lançou, possesso, em dois pedaços,
contra a parede. Apagou, com tempestuoso sopro, a chama da lamparina
e mesmo no escuro a jogou com força ao solo. Cacos de vidro voaram
com estrépito. Senti, forte, o cheiro do querosene a derramar
sobre o piso. Afundei no colchão, acho que indiscernível
sob as cobertas, mas ainda assim a ouvir os impropérios abafados
do gigante que me prometia, para a manhã seguinte, uma "camaçada
de pau", que era, segundo ele, a única coisa que me cabia
na vida.
Arruina-me pensar que, pela terceira semana consecutiva, quase não
como, emagreço muito e só me salva de uma severa hipotermia
o casacão de que ainda disponho, posto que três outros
já os troquei, em franca desvantagem, por víveres e lenha
igualmente consumidos. Mesmo no que diz respeito a essa última,
nossos concidadãos andam avaros; o produto rareia no mercado
e advertem pelo rádio, as autoridades, de que pode faltar de
vez; um colapso no fornecimento e nossos concidadãos arriscam
perecer congelados.
Sofro por vezes algum delírio, as nevascas não cessam,
víveres, lenha e carvão acabaram totalmente. Pelos delírios
retorno às casas de antes e, como em sonho, dormitando faminto
na cama, me revejo a fazer ecoar os assoalhos nos grandes verões
de nossa cidade, a caprichosa "marcação" de
meus números inolvidáveis - aqui um Shakespeare, ali Schiller,
outra vez o inefável Breugmann, romântico e suicida, capaz
de, em versos maviosos, dar-nos o canto da cotovia ou, em outros trechos,
o escorrer das águas da montanha. Quando retorno a mim, por vezes
me assusto: penso que, esquálido, só o rosto de fora das
cobertas, fechadas todas as janelas da casa, ali onde a neve já
escurece as vidraças.
Decido, enfim, fazer as vontades do pai.
Debaixo dos cobertores, suporto e choro em agonia a ausência de
dinheiro até mesmo para o mísero carvão da cozinha.
A fome aperta e eu não sou propriamente o que se possa chamar
de um artista da fome. Na despensa, sobra-me apenas, solitária,
uma lata de salsichas. Lembro, de novo, o velho Hermann e suas imprecações:
"Até quando vais assim inócuo, com as poesias de
mocinha?" Pesada ainda hoje essa onipresença do gigante,
espezinhando-me sob os tacões como se eu fora uma espécie
minúscula de formiga. Ah, o velho Hermann!...
Abro a porta do escritório; vou direto ao canto da estante em
que luzem os volumes encadernados de F. Breugmann (1782-1825). Procuro
os Poemas Reunidos. Estou com muito frio e muita fome, creio que já
o disse. Os dedos gelados, ainda assim abro à página 62,
direto em sua carta de suicida, o poema Neblina. Sigo os olhos ali até
mais ou menos o nono verso. A rigor, estou muito longe de tudo - de
Breugmann, dessa cidade corrosiva e desse inverno de sombra e desesperança.
Porém, a cada segundo que passa, mais próximo, medula
e nervos, estou é do gigante - "Por que não te matas?
Por que não te mataste ainda, meu Deus?"
A exemplo do que Breugmann anota em sua carta de suicida, eu também,
o revólver engatilhado contra a fronte, saiba profundamente quem
me ler - daqui a alguns segundos não serei sequer o primeiro
a ficar sabendo.
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WILSON BUENO
É AUTOR, ENTRE OUTROS LIVROS, DE BOLERO'S BAR (TRAVESSIA EDITORES,
2007)
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