
por
Katia Rubio
Antes de chegar
à psicologia do esporte, ciência que analisa o aspecto
social da prática esportiva, a professora da Escola de Educação
Física e Esporte da Universidade de São Paulo (USP) Katia
Rubio passou pela educação física, pelo jornalismo
e pela publicidade. "Depois da propaganda, parei tudo e fui fazer
psicologia", disse no encontro que teve, em abril, com o Conselho
Editorial da Revista E. "Dentro dessa área derivei para
o esporte, que exerceu um papel fundamental na minha vida. Quer dizer,
a minha relação com essa área, além de ser
profissional, é quase visceral." Atualmente, Katia Rubio
estuda o fenômeno esportivo no mundo contemporâneo. Concentra-se
nos fatores por trás da realização de grandes eventos
esportivos, como os Jogos Pan-Americanos e os Jogos Olímpicos,
investigando qual o papel do esporte na afirmação da cultura
dos países que recebem essas competições. Durante
o bate-papo, a convidada da seção Encontros desta edição
falou ainda sobre o esporte nas sociedades pós-Segunda Guerra
Mundial, da ascensão social que ele pode propiciar e do uso de
doping para aumentar o rendimento em diversas modalidades. A seguir,
trechos.
Guerra e esporte
O esporte ocupou um lugar de destaque na sociedade do século
20, principalmente ao servir como metáfora dos campos de batalha.
Após viver duas grandes guerras mundiais, o mundo se encontra
exaurido pelas batalhas e conflitos. A população civil
e mesmo a militar não queria mais ver tanta morte por causa de
uma diplomacia ineficiente. E, logo após a Segunda Guerra, era
criado o cenário da guerra fria, no qual dois blocos [o socialista,
liderado pela antiga União Soviética, e o capitalista,
cujo expoente eram os Estados Unidos] disputavam a hegemonia do mundo.
Nesse contexto histórico, a guerra declarada foi transferida
para o cenário esportivo. Ou seja, não era mais preciso
ir a campo para lutar e matar. O confronto se transferiu para a piscina,
para as quadras ou para as pistas. Podemos observar, então, a
criação de um espaço privilegiado para o confronto
entre esses dois blocos nos quais se dividiu o mundo da década
de 50 em diante, tendo a prática esportiva como referência.
Tanto no bloco socialista quanto no capitalista o atleta buscava conquistar
um espaço singular - mesmo antes do período de profissionalização
pelo qual o esporte passou a partir da década de 80. O atleta
era aquele que ia para uma competição e, quando vencia,
conquistava mais do que uma vitória para si, era principalmente
para seu país diante do oponente - e isso valia tanto para a
União Soviética quanto para os Estados Unidos. Assim,
criou-se o imaginário esportivo contemporâneo, ou seja,
o esporte ganhou espaço na sociedade, tornando-se um campo de
projeção das dinâmicas sociais.
Ascensão
social
No mundo contemporâneo, o esporte é uma das poucas oportunidades
que o indivíduo tem de ascensão social. O sujeito sem
condições de pagar as melhores escolas, sem acesso à
melhor universidade, mas com físico privilegiado e nível
de habilidade fora da média, consegue furar essa lógica,
construída socialmente, de que o espaço social é
daquele que pôde construí-lo. Temos aí o Joaquim
Cruz [campeão olímpico dos 800 metros nos Jogos Olímpicos
de Los Angeles, em 1984, medalha de prata na mesma prova nos Jogos Olímpicos
de Seul, em 1988, e duas vezes campeão pan-americano, em Indianápolis,
em 1987, e em Mar del Plata, em 1995]. Ele é filho de um candango
que saiu do Piauí para construir Brasília e fazia parte
do que hoje chamamos de sem-teto. Temos o Robson Caetano [entre outras
conquistas, medalha de bronze nos 200 metros nos Jogos Olímpicos
de Seul, em 1988, campeão pan-americano dos 100 e dos 200 metros
em Havana, em 1991], que foi flanelinha e sentiu na própria família
a força do tráfico no Rio de Janeiro. Exemplos de nomes
que pegaram carona no esporte e fugiram da profecia auto-realizadora
da exclusão. E, dependendo da estrutura que o atleta tiver -
o que chamamos de psicodinâmica -, a carreira esportiva poderá
ser vivida de forma plena ou não. Ou seja, esse atleta faz um
resultado, mas sua carreira independe apenas dessa marca. Há
uma série de outros fatores que farão esse atleta ser
longevo ou não. Por exemplo, vemos um sujeito que bate um recorde
e, de repente, some, ninguém nunca mais fala dele. Onde ele foi
parar? Resta então a questão: o que faz um atleta disputar
cinco edições de Jogos Olímpicos ou ter apenas
um resultado?
Doping
Certa vez conversava com uma colega que trabalha com uma modalidade
específica e perguntei sobre um atleta que havia surgido do nada
em uma edição dos Jogos Olímpicos e que se tornou
a bola da vez aqui no Brasil [os nomes não puderam ser revelados].
Passado algum tempo, esse atleta sumiu. Perguntei o que havia acontecido
com ele - afinal, eu sabia que ele tinha ido treinar fora do Brasil
etc. Essa colega me respondeu que ele havia sido "fabricado",
ou seja, chegou ao resultado usando doping. De fato, ninguém
surge do além, do nada. Os resultados são construídos
em um processo de treinamento. Quando essa lógica é quebrada,
ainda mais no mundo contemporâneo, onde o acesso a drogas é
muito fácil, logo se percebe. Todos acompanham as marcas de todos.
Alguém fabricado em laboratório desponta do nada, em dois
anos consegue a vaga olímpica, vai treinar fora do Brasil e depois
some. Isso é mais que um mistério. Para a psicologia do
esporte, lidar com a questão do doping é um grande dilema.
Território
mental
Para o atleta ser olímpico, ele depende de uma série de
coisas. O Alexander Popov, que foi um dos grandes nadadores do mundo,
declarou a uma revista brasileira que 50% de seu treinamento era feito
dentro da piscina e o restante no campo mental. E que o Gustavo Borges
era uma pessoa que tinha mais chances do que ele, mas só não
o batia porque fazia treinamento apenas na piscina. Ou seja, todo mundo
tem acesso às técnicas, aos projetos de treinamento. E,
com a internet, você acompanha as provas do mundo inteiro em tempo
real. O que faz a diferença é a busca do que o outro ainda
não está fazendo. Aí chegamos ao território
mental, onde há muito que descobrir. Então, esse sujeito
que começa a despontar para um resultado não o faz de
um dia para o outro, ele acumula vitórias parciais até
chegar a uma prova nacional ou internacional. Mas, até chegar
a esse ponto, ele já apareceu em outros lugares. Ou seja, dependendo
de como o atleta lida com o desejo de sucesso, ele se constrói
para ser um grande atleta ou para fazer um único grande resultado.
"Todo
mundo tem acesso às técnicas, aos projetos de treinamento.
O que faz a diferença é a busca do que o outro ainda não
está fazendo. Aí chegamos ao território mental,
onde há muito que descobrir"
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