FLASH MOB
por João Batista Ferreira

ilustrações: www.marcosgaruti.com
Para Mônica
A primeira vez foi na esquina da Paulista com a Augusta, num abre e fecha de sinal. Tiramos os sapatos, tênis, sandálias, chinelos e outros calçados dos pés e começamos a bater no asfalto, sobre as faixas brancas da passagem de pedestres. Algumas pessoas nos olharam como se tentassem entender aquele martelar desencontrado e confuso que, de repente, no primeiro sinal aberto para pedestres depois das 13 horas de uma quarta-feira, se fez no breve espaço entre uma calçada e outra, em meio a passos apressados, buzinas próximas e distantes, barulhos dos motores de carros, ônibus, motos com entregas e uma espécie de eletricidade morna e calorenta dos movimentos da avenida, que pareciam subitamente suspensos no ar sobre nossas cabeças recolhidas sobre o asfalto.
Como havia sol, ficou combinado, depois de muitas discussões, que as pancadas deveriam ser dirigidas para as faixas brancas, mas evitando bater nas sombras que duplicariam nossos movimentos no chão, como ressaltavam os últimos e-mails que, semanas antes, comecei a receber com mais regularidade, quase todos os dias, e passaram a sinalizar uma inusitada contagem regressiva.
À medida que as mensagens chegavam, a adesão dos participantes foi aumentando. As combinações sobre o que as pessoas deveriam fazer, se bateriam nas faixas ou nas sombras, os tipos mais adequados de calçados, sons e ritmos que poderiam ser produzidos, cores das roupas, nariz de palhaço, entre outras propostas, provocaram discussões que se desdobraram na troca de algumas mensagens ofensivas. Uma das polêmicas se relacionava à necessidade da existência de coordenação e uniformidade em um movimento que se propunha espontâneo.
E assim foram se sucedendo as propostas, as defesas e os ataques, mais ou menos veementes, dos grupos que se formaram em torno delas.
Os dias passaram e, quando percebi, estava ali, batendo no chão da avenida que cruzei talvez milhares de vezes. O tempo para atravessar a faixa sempre pareceu muito curto. Chegava a acelerar um pouco o passo para alcançar o outro lado com o sinal ainda aberto. Mas, naquele dia, o tempo era outro.
Durante a travessia, foi possível perceber algumas pessoas mais próximas. Houve tempo para ver a mulher de cabelo crespo e escuro, camiseta branca e jeans rasgados, que iniciou o percurso logo na minha frente. Quando o sinal abriu, ela baixou a cabeça e se concentrou na primeira faixa. Ficou por ali, enquanto espancava o tênis vermelho contra o que parecia ser um pedaço de chave incrustado na resina branca manchada de óleo.
Poucos segundos antes, ainda na calçada, estávamos bem próximos. Naquele momento, misturados aos outros anônimos espancadores, esperávamos. Entregues à relativa imprevisibilidade do instante em que o primeiro sinal verde de pedestres - logo depois das 13 horas daquela quarta-feira - estabeleceria novamente uma trilha provisória para a travessia da avenida.
Deixei a mulher de cabelo crespo e escuro para trás. Avancei mais algumas faixas. A meu lado, com óculos de armação pesada, cabelo raspado e pele muito clara, um garoto batia um sapato de borracha e se deslocava quase na mesma velocidade que eu. Ele sorriu e, algumas batidas depois, me perguntou que história era aquela de não acertar as sombras. Respondi com um sorriso de quem não sabia.
O cara de boné que estava perto dele ouviu e disse que não era necessário explicar. O cara de boné continuou falando, mas não entendi o que disse. Foi então que percebeu a menina sardenta e com tatuagem no pescoço que cruzou com ele, marcando um ritmo rápido com uma sandália branca. O cara de boné começou a bater um sapato de pano num ritmo parecido e estabeleceu com ela um rápido contato.
O garoto com óculos de armação pesada chegou a dizer alguma coisa para ele - algo sobre desfazer os caminhos seguros ou algo assim, coisa que também mal escutei, pois tivemos de nos desviar de uma contracorrente de pernas aceleradas e intensas que terminaram por afastar nossos caminhos.
Esse movimento fez com que me aproximasse da mulher de vestido marrom e tiara preta que usava um nariz de plástico vermelho de palhaço e fazia muito barulho com um tamanco de madeira. Um homem de terno e gravata esbarrou nela com uma pasta executiva. Ela levantou o tamanco de modo ostensivo e ameaçou acertar o pé direito dele, enfiado num sapato preto e brilhante. O homem de terno levantou o pé e se desviou depressa. Enquanto se afastava, disse que ela era maluca.
Ao chegar perto do canteiro central, algumas batidas pareciam ter incorporado um ritmo semelhante ao proposto pela menina sardenta e o cara de boné. O ritmo lembrava vagamente o que se poderia imaginar de uma minúscula bateria de samba. Ou talvez o esboço de uma batida de reggae. Naquelas marcações, possivelmente, estavam as pessoas das mensagens com sugestões de ritmos. Houve muitos e-mails contrários e essas discordâncias pareciam ter se materializado nas outras batidas, cada vez mais fortes - uma resposta que deliberadamente tentava estabelecer um ritmo desencontrado e dissonante àquele articulado pela bateria, reggae ou o que quer que fosse aquilo.
Um pouco depois, comecei a ouvir sons de vozes que lembravam cantos indígenas e se associavam a um ritmo diferente, com batidas cadenciadas. As vozes foram ficando mais intensas. Percebi que esse movimento era claramente coordenado pelo homem de quem me aproximei quando alcancei a metade da segunda pista. Ele usava um grande brinco de madeira, cabelo comprido e camiseta regata colorida. Estava bastante agitado e se movimentava muito.
Quando finalmente alcancei a outra calçada, a luz verde começava a piscar. Muitas pessoas ainda batiam no chão. O sinal mudou para vermelho. Uma torrente de buzinas aflitas imediatamente saltou dos veículos em direção à faixa de pedestres.
Duas meninas gêmeas, um pouco à frente de outras pessoas que pararam para ver o que era aquilo, tiravam fotos com os celulares apontados para um homem de camisa azul que permaneceu no caminho. Ele estava com uma das mãos levantada para um enorme ônibus de turistas, enquanto batia mais um pouco uma botina sobre a faixa com marcas de pneu. Três policiais que estavam ao lado da guarita cinza, do outro lado da avenida, que até então observavam tudo, se movimentaram na direção dele. Ao perceber a aproximação, o homem jogou beijos para os motoristas. Fez um gesto largo e caricato de um mestre-sala que liberava a passagem da avenida e se afastou rapidamente.
Uma mulher que pedia esmola numa cadeira de rodas, próxima à entrada da estação de metrô onde eu estava, puxou minha calça e olhou para mim, inerte por um instante. Então começou a sacudir a lata com moedas, com a intensidade de quem parecia ter incorporado um dos ritmos dos sapatos martelando o asfalto.
As calçadas dos dois lados ficaram tomadas por pequenas multidões. Algumas pessoas então se cumprimentaram, se apresentaram, tentaram se reconhecer. A maior parte - e eu me incluía nela - mal sabia de quem tinha recebido as mensagens.
Ainda tentei localizar no lugar onde iniciei a travessia, quase na porta de uma agência bancária, a mulher de cabelo crespo e escuro que ficou batendo na chave e provavelmente não prosseguiu. No meio de tanta gente, havia uma mulher muito parecida com ela. Mas não tive certeza. E daquela distância seria difícil identificar novamente o que restaria daquele olhar estático, mergulhado na chave soterrada no asfalto.
Assim, de forma muito rápida, fomos nos dispersando. Não cheguei a encontrar o garoto com óculos de armação pesada, cabelo raspado e pele muito clara nem a mulher com nariz de palhaço. Vi a menina sardenta com tatuagem no pescoço e o cara de boné conversando perto da banca de revistas. O cara com o brinco de madeira, bem perto deles, falava exaltado e gesticulava para algumas pessoas ao redor.
Aos poucos, voltamos a nos integrar ao que, de certa forma, poderia ser confundido com o fluxo de uma multidão maior, que logo se espalharia por todas aquelas ruas. Uma multidão de pessoas que se movimentavam em caminhadas dispersas, que terminariam por se afastar daquele breve espaço entre uma calçada e outra, deixando para trás um silêncio denso de buzinas próximas e distantes, barulhos dos motores de carros, ônibus, motos com entregas e certa eletricidade morna e calorenta dos movimentos da avenida, que pareciam subitamente ter evaporado no ar.
A primeira vez foi assim, na esquina da Paulista com a Augusta.
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JOÃO BATISTA FERREIRA É AUTOR DO LIVRO DE CONTOS
O DOCE VERMELHO DAS BETERRABAS (7LETRAS, 2006)
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