A
MESMA MOEDA

ilustrações:
www.marcosgaruti.com
A visão
calcada em fatos concretos oferecida pela ciência e a livre interpretação
da realidade que inspira a arte não necessariamente representam
times adversários no campo do conhecimento humano. Exemplo histórico
de que ambas as áreas se complementam, em vez de divergir uma
da outra, é o cientista e pintor italiano Leonardo da Vinci,
que tanto criou a Mona Lisa, ícone da arte mundial, como também
foi um dos primeiros a desvendar a anatomia humana com seu famoso desenho
Homem Vitruviano. Colaboradoras da seção Em Pauta desta
edição, a doutora em ciências pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Tania C. Araújo-Jorge e a doutora
em comunicação e semiótica pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) Ana Maria
Haddad Baptista dissertam sobre o tema.
Convergências
entre arte e ciência
por
Ana Maria Haddad Baptista
Nos
dias atuais, as relações entre arte e ciência parecem,
à primeira vista, quase irreconciliáveis. As artes em
geral, como pintura, música, literatura e outras mais, são
vistas como setores distantes de uma racionalidade e objetividade.
O artista é visto como um ser afastado da realidade. Um grande
sonhador, com universos impossíveis de ser concretizados. Às
vezes, comparado a um louco, cheio de alucinações, dotado
de poderes "sobrenaturais", porque cria a partir de uma inspiração
baseada no nada, sem nenhum indício de um repertório no
amplo sentido da expressão.
O cientista, na maioria das vezes, é visto como aquele ser compenetrado,
sério, totalmente racional e que pode provar a verdade a qualquer
momento. Além do mais, a arte, geralmente, é vista como
distante de qualquer tipo de conhecimento e a ciência como portadora
e detentora de saberes absolutos e inquestionáveis.
Entretanto, as coisas não são tão simples como
parecem. Existem relações importantes entre arte e ciência
que devem ser pensadas.
Muitos ignoram que arte e ciência ao longo da história
da humanidade sempre tiveram e têm profundos entrelaçamentos,
assim como possuem muitos pontos em comum. Entretanto, tais considerações
devem ser bastante ponderadas, visto que nenhum fato ou acontecimento
pode ser analisado somente à luz do presente, isto é,
deve ser analisado no contexto em que ocorreu.
As relações entre arte e ciência se deram de maneiras
diferentes dependendo da época. Por quê? Porque cada época
da história da humanidade possibilitou conceitos e objetivos
diferentes tanto para a arte como para a ciência. Na Antiguidade
grega, por exemplo, os poemas de Homero eram tidos como modelo de literatura
e história, assim como deveriam ser lidos por todos aqueles que
ambicionassem uma formação sólida. A poesia tinha
conotação e valor diferentes em relação
à de hoje, visto que o poeta era considerado um mestre da verdade,
aquele que teria o poder de tornar visíveis determinados fatos
e acontecimentos. As famosas Musas, prolongadoras da memória,
revelavam ao poeta certas verdades que só ele poderia conhecer
e materializar, posteriormente, para os outros homens. Naturalmente,
os conceitos de poesia e verdade eram distintos em relação
aos da atualidade. No mesmo período não havia a figura
do cientista. Havia a do filósofo natural, que não coincide
com a figura do cientista tal como a entendemos nos dias de hoje.
Como é de conhecimento geral, na época do Renasci-mento,
Leonardo da Vinci (1452-1519) e tantos outros artistas possuíam
formação em diversas áreas, tais como matemática,
astronomia e muitos outros setores do conhecimento. Tal tipo de formação
era um todo que se completava. A maioria dos pintores renascentistas
estudava profundamente anatomia, geometria, matemática. Enfim,
arte e ciência caminhavam juntas e se integravam naturalmente.
Havia unidade entre as áreas. O conhecimento não era compartimentado.
Era muito natural que médicos fossem também poetas escultores
ou pintores.
Basicamente, a partir do século 17, os diversos campos do conhecimento
aos poucos se separaram. Houve a famosa fragmentação dos
saberes. A especialização, voltada para elementos intrínsecos
a áreas cada vez mais específicas, gradualmente foi legitimada
por uma série de fatores que não se reduzem, como pensa
a maioria, somente ao aumento de informações.
Entretanto, uma coisa é certa: a fragmentação do
conhecimento retirou do homem a visão do todo, da unidade e da
integração que sempre existiu e existe entre arte e ciência,
para ficar apenas com um exemplo.
Ciência e arte são e sempre foram um profundo diálogo
entre o homem e a natureza em diversos níveis. A forma da materialização
e produção conceitual de ambas é que é,
parcialmente, diferente. O cientista parte de hipóteses para
uma resposta que visa a uma verdade. Para tal tipo de empreitada usa,
predominantemente, uma lógica, uma racionalidade e uma perspectiva
ancorada na objetividade daquilo que pretende concretizar. O artista,
em geral, parte de possibilidades, da percepção e da sensibilidade,
que também devem ser materializadas. Contudo, aqui vai uma importante
indagação: será que, ao formular uma hipótese,
que na essência é apenas um pressuposto, o cientista não
usa de modo obrigatório a intuição? Como formular
uma hipótese sem intuir e, por que não, sem sonhar?
Por um outro lado, como o artista pretende materializar seu trabalho
se não por meio de elementos objetivos e materiais? Sabe-se,
por exemplo, que, Fernando Pessoa (1888-1935), famoso poeta português,
estudou com muita dedicação filosofia, psicologia e ciências
em geral para entender melhor os diversos níveis da natureza.
Um outro exemplo é o famoso escritor argentino Jorge Luis Borges
(1899-1986), estudioso sistemático de filosofia e matemática
- justamente para entender melhor sua grande obsessão, ou seja,
questionamentos relativos ao tempo e à memória. Machado
de Assis, famoso escritor brasileiro (1839-1908), também foi
um grande estudioso de história e filosofia. Gilberto Freyre
(1900-1987), antropólogo brasileiro, foi um grande cultivador
de literatura, até mesmo para perceber de maneira mais aguda
características de nosso povo, além de conhecer música
e pintura. Guimarães Rosa, médico, enquanto exercia sua
profissão já escrevia e, posteriormente, ficou mais famoso
por sua escritura do que pela medicina, que com certeza lhe deu muito
material para a literatura.
Conclui-se facilmente que ambos, artistas e cientistas, precisam dos
mesmos componentes para que cheguem a seus objetivos, o que varia é
o grau, a predominância desses componentes: sensibilidade, razão,
objetividade, subjetividade, percepção, pressupostos,
repertórios específicos de áreas de conhecimento,
entre tantos outros que poderiam ser destacados. Quanto maior o repertório
geral, tanto de artistas como de cientistas, melhor será a abrangência
das relações e perspectivas a respeito do universo.
Contudo, o que julgamos importante destacar são, principalmente,
dois pontos: tanto a arte como a ciência possuem um compromisso
com a verdade e com a possibilidade.
Não fossem os físicos, os biólogos, os matemáticos,
talvez nos dias de hoje tivéssemos menos respostas às
questões que sempre incomodaram a humanidade. Não que
a ciência tenha respostas absolutas para todas as questões,
longe disso. A ciência não possui respostas definitivas.
Ela trabalha, conforme se sabe, em busca das leis gerais e universais,
mas o cientista consciente sabe que a ciência é cheia de
limitações, não há como se pensar, atualmente,
em verdades absolutas e verdades finais. A ciência admite que,
a cada nova descoberta científica, o que a sustenta é
mais uma perspectiva, mais uma possibilidade em relação
a determinado objeto. Mas o seu compromisso deve ser com a verdade.
Por outro lado, o que seria de nosso olhar sem a ternura velada de um
Monet? Ou sem a audácia de Dalí?
Todas as formas artísticas, em princípio, não possuem
compromisso com a verdade, não resta a menor dúvida. Pintores,
escritores, músicos e outros, de modo geral, podem sonhar à
vontade. Contudo, aqui vão dois pontos importantes: toda "irrealidade"
tem como pano de fundo o real. Além do mais, é no distanciamento
que podem, e isso já é de conhecimento geral, ser reveladas
grandes verdades, até insuspeitadas. Nesse sentido, queiramos
ou não, artistas e cientistas estão na mesma empreitada.
Arte e ciência, enquanto prolongadoras de sensibilidade e racionalidade,
despertam a humanidade para a inventividade, para os sonhos, para a
indignação e para a paixão. Ninguém permanece
inalterado após ter contemplado a sensibilidade, inventividade,
criatividade e objetividade possibilitadas pelas teorias de Eisntein.
Somos, também, profundamente surpreendidos ao deparar com o grau
de universalidade, exatidão, experimentação e percepção
das obras de Dostoiévski.
Artistas e cientistas materializam suas obras de uma forma ou de outra
para torná-las visíveis e inteligíveis para nós.
No entanto, jamais teremos acesso ao processo de criação
de ambos. Eternamente será um mistério e, como tal, encantador!
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ANA MARIA
HADDAD BAPTISTA É DOUTORA EM COMUNICAÇÃO
E SEMIÓTICA,
COM PÓS-DOUTORADO EM HISTÓRIA DA CIÊNCIA PELA
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO (PUC/SP)
Relações
entre ciência, arte e educação: relevância
e inovação
por
Tania C. Araújo-Jorge
A presença da ciência e da tecnolo-gia no dia-a-dia das
pessoas é hoje amplamente reconhecida. Assuntos dos mais relevantes
centram-se em temas científicos, como novas vacinas e terapias,
alimentos transgênicos, biocombustíveis, clonagem genética,
mudanças climáticas e outros. Decisões políticas
importantes para a sociedade muitas vezes precisam ser tomadas com base
em conhecimentos científicos diferenciados daqueles do senso
comum. O desenvolvimento científico e tecnológico tornou-se
um fator crucial para o bem-estar social a tal ponto que a Unesco [Organização
das Nações Unidas para a Educação, a Ciência
e a Cultura] já utiliza desde 2000 um sistema de distinção
entre os povos com base na capacidade de criar ou não o conhecimento
científico. Em seus estudos sobre economia da pobreza, na Universidade
Harvard, Jeffrey Sachs conclui que "ciência e tecnologia
são hoje mais excludentes que o capital", e "o mundo
de hoje é dividido não pela ideologia, mas pela tecnologia",
destacando que ciência e tecnologia definem hoje o futuro de um
povo, sua capacidade de inovar e de adaptar as tecnologias desenvolvidas
em outros lugares.
No entanto, apesar da crescente qualidade e quantidade da pesquisa cientifica
brasileira, que já contribui com 1,7% da produção
mundial de conhecimento, é sofrível o desempenho de jovens
brasileiros em provas que medem habilidades cientificas e rendimento
em matemática. Esse quadro evidencia uma enorme carência
de formação de qualidade para professores de ciências,
capazes de desenvolver nas atuais e nas próximas gerações
de crianças e jovens um raciocínio crítico, com
condutas questionadoras e propositivas voltadas para a solução
dos problemas da vida diária. Advêm daí propostas
governamentais de políticas de divulgação e educação
científicas, que vêm sendo ardua--mente construídas
para implementação urgente no país, envolvendo
cientistas, educadores e outros atores sociais.
Artistas têm uma sensibilidade apurada para a percepção
dos problemas da sociedade e comumente sintetizam e antecipam questões
cruciais. No seu premiado disco Quanta, de 1995, Arnaldo Antunes e Gilberto
Gil nos apresentam a música A Ciência em Si. Entre mensagens
mágicas e encantadoras, os versos nos dizem: "A ciência
não se aprende, a ciência apreende a ciência em si";
"A ciência não se ensina, a ciência insemina
a ciência em si"; e "A ciência não avança,
a ciência alcança a ciência em si". Aqui está,
a meu ver, um importante elo nas relações entre arte e
ciência: a arte pode sensibilizar a percepção, via
expansão de nossos sentidos, de nossos olhares, e nos facilitar
o encontro de novas idéias e soluções. O cardiologista
e músico Richard Bing defendia que "a ciência e a
medicina são tanto uma busca de harmonia e beleza na natureza
como o são a música e a arte. Ambas requerem uma invenção
de novos conceitos e idéias, e novos caminhos de percepção.
Ambas requerem a mesma sensibilidade emocional e física a padrões,
ritmos, consistência, novidade, metáfora e analogia. Requerem
um refinado uso dos sentidos em conjunção com a mente
e as mãos".
Grandes cientistas, como Galileu Galilei e Leonardo da Vinci, transitaram
pelas vias de conexão entre a ciência e a arte, ao desenvolver
o conhecimento e o comunicar das mais diferentes formas. Deixaram legados
inestimáveis à humanidade. Um estudo sobre 73 cientistas
de grande sucesso, dentre os quais muitos laureados com o Prêmio
Nobel, realizado pela equipe do cientista Robert Root-Bernstein, da
Universidade de Michigan nos Estados Unidos, identificou um grande percentual
de vocações artísticas, evidenciando 25 músicos
e compositores, 29 pintores, escultores, gravadores, desenhistas, 17
poetas, novelistas e teatrólogos. Recolhendo, estudando e interpretando
as histórias contadas por pensadores, artistas e cientistas eminentes,
o estudo conclui que através da arte os cientistas encontram
as ferramentas para tornar explícita a beleza, seja na arte,
seja na ciência: "Um cientista, como um pintor ou poeta ou
compositor, é um realizador e descobridor de padrões.
Os padrões do cientista, como os do pintor, do poeta ou do compositor,
devem ser belos; idéias, como as cores ou palavras ou notas,
devem ficar juntas de modo harmônico. A beleza é o primeiro
teste nas ciências e nas artes: não há lugar permanente
para a ciência feia ou não inspirada". E defendem
que os conjuntos de talentos para arte e ciência devam ser considerados
complementares, a se reforçar mutuamente. Consideram que o que
o cientista pode fazer depende não apenas do que ele sabe, mas
de sua personalidade, suas crenças, suas habilidades e sua prática
nos campos da arte.
Essa proposta não é assim tão nova, pois desde
a época em que os primeiros portugueses chegaram ao Brasil Leonardo
da Vinci já nos dizia, em seu livro sobre a metodologia das descobertas:
"Para [ter] uma mente completa, estude a arte da ciência,
estude a ciência da arte, aprenda a enxergar, perceba que tudo
se conecta a tudo". Este é um referencial básico
que justifica o esforço para introduzir formalmente ciência
e arte na programação curricular de uma instituição
científica que forme cientistas e educadores, reinserindo a ciência
como elemento da cultura. É isso que procuramos fazer no Instituto
Oswaldo Cruz: integrar na educação o exercício,
o treino e a educação da imaginação criativa,
aprofundando a idéia de Albert Einstein de que "a imaginação
é mais importante do que o conhecimento".
Em meu laboratório, temos desenvolvido ciência e arte como
uma linha de pesquisa em ensino e criatividade, e como estratégia
pedagógica. Cientistas e artistas lidam com as inquietações
da descoberta, as regras, com as heranças culturais e transformações
do conhecimento ao longo dos anos. Reunimos cientistas e artistas no
mesmo espaço de trabalho e debate e possibilitamos que desenvolvam
seus estudos estabelecendo diálogos de modo constante. Ligada
a todas as áreas de conhecimento e facilitadora para o trabalho
interdisciplinar, a arte pode proporcionar a junção, a
integração de transversalidade em todos os espaços
de educação, seja informais, seja tradicionais como os
espaços escolares. Assim, as atividades de pesquisadores e estudantes
nessa linha pretendem sensibilizar e capacitar professores a realizar
esse trabalho nas escolas, a ampliar seu repertório expressivo,
seu alcance na sociedade através do teatro e de outras formas
de expressão artística, nas quais o conhecimento estará
sendo transmitido sob uma linguagem e um mundo visual diferenciados.
Pretendemos tentar comprovar nossa hipótese de que é possível
sensibilizar o professor para um ensino mais criativo e desenvolver
estratégias que aumentem a criatividade na formação
dos cientistas, praticando um ensino que estimule a imaginação.
O ser humano nunca viveu sem utilizar a arte como forma de expressão,
uma indicação de que a linguagem da arte é a própria
linguagem da humanidade. Por isso, e para isso, a arte precisa ser mais
bem compreendida e valorizada na educação, em todos os
níveis de ensino, desde o ensino fundamental, em toda e qualquer
escola, até o ensino de pós-graduação, para
a formação de docentes e cientistas com orientação
holística. A arte pode se combinar com a ciência como parte
de uma estratégia pedagógica explícita para a educação
científica da população. Atividades de ciência
e arte possibilitam o desenvolvimento de novas intuições
e compreensões através da incorporação do
processo artístico a outros processos investigativos. Ajudam
a construir um discurso interno e público sobre a relação
entre arte, ciência, atividades humanas e tópicos relacionados
a atividades multidisciplinares e multiculturais. A arte precisa ser
incluída na educação científica não
apenas para tornar as coisas mais belas, apesar de freqüentemente
isso acontecer, mas primariamente porque os artistas fazem descobertas
sobre a natureza diferentes daquelas que fazem os cientistas, sejam
eles físicos, biólogos, geólogos ou outros especialistas.
Além disso, os artistas usam bases diferentes para tomar decisões
enquanto criam suas obras - seus experimentos. Mas tanto artistas como
cientistas nos ajudam a notar e a apreciar as coisas da natureza que
aprendemos a ignorar, ou que nunca nos ensinaram a ver. Tanto a arte
como a ciência são necessárias para o completo entendimento
da natureza e de seus efeitos nas pessoas.
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TANIA C. ARAÚJO-JORGE
É PESQUISADORA TITULAR E ATUALDIRETORA
DO INSTITUTO
OSWALDO CRUZ NO RIO DE JANEIRO E DOUTORA EM CIÊNCIAS PELA
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO (UFRJ)
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