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Em Pauta

Postado em 30/03/2007

REVISTA E - PORTAL SESCSP

A MESMA MOEDA

 

 


ilustrações: www.marcosgaruti.com

 

A visão calcada em fatos concretos oferecida pela ciência e a livre interpretação da realidade que inspira a arte não necessariamente representam times adversários no campo do conhecimento humano. Exemplo histórico de que ambas as áreas se complementam, em vez de divergir uma da outra, é o cientista e pintor italiano Leonardo da Vinci, que tanto criou a Mona Lisa, ícone da arte mundial, como também foi um dos primeiros a desvendar a anatomia humana com seu famoso desenho Homem Vitruviano. Colaboradoras da seção Em Pauta desta edição, a doutora em ciências pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Tania C. Araújo-Jorge e a doutora em comunicação e semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) Ana Maria Haddad Baptista dissertam sobre o tema.

 

Convergências entre arte e ciência

 

por Ana Maria Haddad Baptista


Nos dias atuais, as relações entre arte e ciência parecem, à primeira vista, quase irreconciliáveis. As artes em geral, como pintura, música, literatura e outras mais, são vistas como setores distantes de uma racionalidade e objetividade.
O artista é visto como um ser afastado da realidade. Um grande sonhador, com universos impossíveis de ser concretizados. Às vezes, comparado a um louco, cheio de alucinações, dotado de poderes "sobrenaturais", porque cria a partir de uma inspiração baseada no nada, sem nenhum indício de um repertório no amplo sentido da expressão.
O cientista, na maioria das vezes, é visto como aquele ser compenetrado, sério, totalmente racional e que pode provar a verdade a qualquer momento. Além do mais, a arte, geralmente, é vista como distante de qualquer tipo de conhecimento e a ciência como portadora e detentora de saberes absolutos e inquestionáveis.
Entretanto, as coisas não são tão simples como parecem. Existem relações importantes entre arte e ciência que devem ser pensadas.
Muitos ignoram que arte e ciência ao longo da história da humanidade sempre tiveram e têm profundos entrelaçamentos, assim como possuem muitos pontos em comum. Entretanto, tais considerações devem ser bastante ponderadas, visto que nenhum fato ou acontecimento pode ser analisado somente à luz do presente, isto é, deve ser analisado no contexto em que ocorreu.
As relações entre arte e ciência se deram de maneiras diferentes dependendo da época. Por quê? Porque cada época da história da humanidade possibilitou conceitos e objetivos diferentes tanto para a arte como para a ciência. Na Antiguidade grega, por exemplo, os poemas de Homero eram tidos como modelo de literatura e história, assim como deveriam ser lidos por todos aqueles que ambicionassem uma formação sólida. A poesia tinha conotação e valor diferentes em relação à de hoje, visto que o poeta era considerado um mestre da verdade, aquele que teria o poder de tornar visíveis determinados fatos e acontecimentos. As famosas Musas, prolongadoras da memória, revelavam ao poeta certas verdades que só ele poderia conhecer e materializar, posteriormente, para os outros homens. Naturalmente, os conceitos de poesia e verdade eram distintos em relação aos da atualidade. No mesmo período não havia a figura do cientista. Havia a do filósofo natural, que não coincide com a figura do cientista tal como a entendemos nos dias de hoje.
Como é de conhecimento geral, na época do Renasci-mento, Leonardo da Vinci (1452-1519) e tantos outros artistas possuíam formação em diversas áreas, tais como matemática, astronomia e muitos outros setores do conhecimento. Tal tipo de formação era um todo que se completava. A maioria dos pintores renascentistas estudava profundamente anatomia, geometria, matemática. Enfim, arte e ciência caminhavam juntas e se integravam naturalmente. Havia unidade entre as áreas. O conhecimento não era compartimentado. Era muito natural que médicos fossem também poetas escultores ou pintores.
Basicamente, a partir do século 17, os diversos campos do conhecimento aos poucos se separaram. Houve a famosa fragmentação dos saberes. A especialização, voltada para elementos intrínsecos a áreas cada vez mais específicas, gradualmente foi legitimada por uma série de fatores que não se reduzem, como pensa a maioria, somente ao aumento de informações.
Entretanto, uma coisa é certa: a fragmentação do conhecimento retirou do homem a visão do todo, da unidade e da integração que sempre existiu e existe entre arte e ciência, para ficar apenas com um exemplo.
Ciência e arte são e sempre foram um profundo diálogo entre o homem e a natureza em diversos níveis. A forma da materialização e produção conceitual de ambas é que é, parcialmente, diferente. O cientista parte de hipóteses para uma resposta que visa a uma verdade. Para tal tipo de empreitada usa, predominantemente, uma lógica, uma racionalidade e uma perspectiva ancorada na objetividade daquilo que pretende concretizar. O artista, em geral, parte de possibilidades, da percepção e da sensibilidade, que também devem ser materializadas. Contudo, aqui vai uma importante indagação: será que, ao formular uma hipótese, que na essência é apenas um pressuposto, o cientista não usa de modo obrigatório a intuição? Como formular uma hipótese sem intuir e, por que não, sem sonhar?
Por um outro lado, como o artista pretende materializar seu trabalho se não por meio de elementos objetivos e materiais? Sabe-se, por exemplo, que, Fernando Pessoa (1888-1935), famoso poeta português, estudou com muita dedicação filosofia, psicologia e ciências em geral para entender melhor os diversos níveis da natureza. Um outro exemplo é o famoso escritor argentino Jorge Luis Borges (1899-1986), estudioso sistemático de filosofia e matemática - justamente para entender melhor sua grande obsessão, ou seja, questionamentos relativos ao tempo e à memória. Machado de Assis, famoso escritor brasileiro (1839-1908), também foi um grande estudioso de história e filosofia. Gilberto Freyre (1900-1987), antropólogo brasileiro, foi um grande cultivador de literatura, até mesmo para perceber de maneira mais aguda características de nosso povo, além de conhecer música e pintura. Guimarães Rosa, médico, enquanto exercia sua profissão já escrevia e, posteriormente, ficou mais famoso por sua escritura do que pela medicina, que com certeza lhe deu muito material para a literatura.
Conclui-se facilmente que ambos, artistas e cientistas, precisam dos mesmos componentes para que cheguem a seus objetivos, o que varia é o grau, a predominância desses componentes: sensibilidade, razão, objetividade, subjetividade, percepção, pressupostos, repertórios específicos de áreas de conhecimento, entre tantos outros que poderiam ser destacados. Quanto maior o repertório geral, tanto de artistas como de cientistas, melhor será a abrangência das relações e perspectivas a respeito do universo.
Contudo, o que julgamos importante destacar são, principalmente, dois pontos: tanto a arte como a ciência possuem um compromisso com a verdade e com a possibilidade.
Não fossem os físicos, os biólogos, os matemáticos, talvez nos dias de hoje tivéssemos menos respostas às questões que sempre incomodaram a humanidade. Não que a ciência tenha respostas absolutas para todas as questões, longe disso. A ciência não possui respostas definitivas. Ela trabalha, conforme se sabe, em busca das leis gerais e universais, mas o cientista consciente sabe que a ciência é cheia de limitações, não há como se pensar, atualmente, em verdades absolutas e verdades finais. A ciência admite que, a cada nova descoberta científica, o que a sustenta é mais uma perspectiva, mais uma possibilidade em relação a determinado objeto. Mas o seu compromisso deve ser com a verdade. Por outro lado, o que seria de nosso olhar sem a ternura velada de um Monet? Ou sem a audácia de Dalí?
Todas as formas artísticas, em princípio, não possuem compromisso com a verdade, não resta a menor dúvida. Pintores, escritores, músicos e outros, de modo geral, podem sonhar à vontade. Contudo, aqui vão dois pontos importantes: toda "irrealidade" tem como pano de fundo o real. Além do mais, é no distanciamento que podem, e isso já é de conhecimento geral, ser reveladas grandes verdades, até insuspeitadas. Nesse sentido, queiramos ou não, artistas e cientistas estão na mesma empreitada.
Arte e ciência, enquanto prolongadoras de sensibilidade e racionalidade, despertam a humanidade para a inventividade, para os sonhos, para a indignação e para a paixão. Ninguém permanece inalterado após ter contemplado a sensibilidade, inventividade, criatividade e objetividade possibilitadas pelas teorias de Eisntein. Somos, também, profundamente surpreendidos ao deparar com o grau de universalidade, exatidão, experimentação e percepção das obras de Dostoiévski.
Artistas e cientistas materializam suas obras de uma forma ou de outra para torná-las visíveis e inteligíveis para nós. No entanto, jamais teremos acesso ao processo de criação de ambos. Eternamente será um mistério e, como tal, encantador!

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ANA MARIA HADDAD BAPTISTA É DOUTORA EM COMUNICAÇÃO
E SEMIÓTICA, COM PÓS-DOUTORADO EM HISTÓRIA DA CIÊNCIA PELA
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO (PUC/SP)

 


Relações entre ciência, arte e educação: relevância e inovação

 

por Tania C. Araújo-Jorge


A presença da ciência e da tecnolo-gia no dia-a-dia das pessoas é hoje amplamente reconhecida. Assuntos dos mais relevantes centram-se em temas científicos, como novas vacinas e terapias, alimentos transgênicos, biocombustíveis, clonagem genética, mudanças climáticas e outros. Decisões políticas importantes para a sociedade muitas vezes precisam ser tomadas com base em conhecimentos científicos diferenciados daqueles do senso comum. O desenvolvimento científico e tecnológico tornou-se um fator crucial para o bem-estar social a tal ponto que a Unesco [Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura] já utiliza desde 2000 um sistema de distinção entre os povos com base na capacidade de criar ou não o conhecimento científico. Em seus estudos sobre economia da pobreza, na Universidade Harvard, Jeffrey Sachs conclui que "ciência e tecnologia são hoje mais excludentes que o capital", e "o mundo de hoje é dividido não pela ideologia, mas pela tecnologia", destacando que ciência e tecnologia definem hoje o futuro de um povo, sua capacidade de inovar e de adaptar as tecnologias desenvolvidas em outros lugares.
No entanto, apesar da crescente qualidade e quantidade da pesquisa cientifica brasileira, que já contribui com 1,7% da produção mundial de conhecimento, é sofrível o desempenho de jovens brasileiros em provas que medem habilidades cientificas e rendimento em matemática. Esse quadro evidencia uma enorme carência de formação de qualidade para professores de ciências, capazes de desenvolver nas atuais e nas próximas gerações de crianças e jovens um raciocínio crítico, com condutas questionadoras e propositivas voltadas para a solução dos problemas da vida diária. Advêm daí propostas governamentais de políticas de divulgação e educação científicas, que vêm sendo ardua--mente construídas para implementação urgente no país, envolvendo cientistas, educadores e outros atores sociais.
Artistas têm uma sensibilidade apurada para a percepção dos problemas da sociedade e comumente sintetizam e antecipam questões cruciais. No seu premiado disco Quanta, de 1995, Arnaldo Antunes e Gilberto Gil nos apresentam a música A Ciência em Si. Entre mensagens mágicas e encantadoras, os versos nos dizem: "A ciência não se aprende, a ciência apreende a ciência em si"; "A ciência não se ensina, a ciência insemina a ciência em si"; e "A ciência não avança, a ciência alcança a ciência em si". Aqui está, a meu ver, um importante elo nas relações entre arte e ciência: a arte pode sensibilizar a percepção, via expansão de nossos sentidos, de nossos olhares, e nos facilitar o encontro de novas idéias e soluções. O cardiologista e músico Richard Bing defendia que "a ciência e a medicina são tanto uma busca de harmonia e beleza na natureza como o são a música e a arte. Ambas requerem uma invenção de novos conceitos e idéias, e novos caminhos de percepção. Ambas requerem a mesma sensibilidade emocional e física a padrões, ritmos, consistência, novidade, metáfora e analogia. Requerem um refinado uso dos sentidos em conjunção com a mente e as mãos".
Grandes cientistas, como Galileu Galilei e Leonardo da Vinci, transitaram pelas vias de conexão entre a ciência e a arte, ao desenvolver o conhecimento e o comunicar das mais diferentes formas. Deixaram legados inestimáveis à humanidade. Um estudo sobre 73 cientistas de grande sucesso, dentre os quais muitos laureados com o Prêmio Nobel, realizado pela equipe do cientista Robert Root-Bernstein, da Universidade de Michigan nos Estados Unidos, identificou um grande percentual de vocações artísticas, evidenciando 25 músicos e compositores, 29 pintores, escultores, gravadores, desenhistas, 17 poetas, novelistas e teatrólogos. Recolhendo, estudando e interpretando as histórias contadas por pensadores, artistas e cientistas eminentes, o estudo conclui que através da arte os cientistas encontram as ferramentas para tornar explícita a beleza, seja na arte, seja na ciência: "Um cientista, como um pintor ou poeta ou compositor, é um realizador e descobridor de padrões. Os padrões do cientista, como os do pintor, do poeta ou do compositor, devem ser belos; idéias, como as cores ou palavras ou notas, devem ficar juntas de modo harmônico. A beleza é o primeiro teste nas ciências e nas artes: não há lugar permanente para a ciência feia ou não inspirada". E defendem que os conjuntos de talentos para arte e ciência devam ser considerados complementares, a se reforçar mutuamente. Consideram que o que o cientista pode fazer depende não apenas do que ele sabe, mas de sua personalidade, suas crenças, suas habilidades e sua prática nos campos da arte.
Essa proposta não é assim tão nova, pois desde a época em que os primeiros portugueses chegaram ao Brasil Leonardo da Vinci já nos dizia, em seu livro sobre a metodologia das descobertas: "Para [ter] uma mente completa, estude a arte da ciência, estude a ciência da arte, aprenda a enxergar, perceba que tudo se conecta a tudo". Este é um referencial básico que justifica o esforço para introduzir formalmente ciência e arte na programação curricular de uma instituição científica que forme cientistas e educadores, reinserindo a ciência como elemento da cultura. É isso que procuramos fazer no Instituto Oswaldo Cruz: integrar na educação o exercício, o treino e a educação da imaginação criativa, aprofundando a idéia de Albert Einstein de que "a imaginação é mais importante do que o conhecimento".
Em meu laboratório, temos desenvolvido ciência e arte como uma linha de pesquisa em ensino e criatividade, e como estratégia pedagógica. Cientistas e artistas lidam com as inquietações da descoberta, as regras, com as heranças culturais e transformações do conhecimento ao longo dos anos. Reunimos cientistas e artistas no mesmo espaço de trabalho e debate e possibilitamos que desenvolvam seus estudos estabelecendo diálogos de modo constante. Ligada a todas as áreas de conhecimento e facilitadora para o trabalho interdisciplinar, a arte pode proporcionar a junção, a integração de transversalidade em todos os espaços de educação, seja informais, seja tradicionais como os espaços escolares. Assim, as atividades de pesquisadores e estudantes nessa linha pretendem sensibilizar e capacitar professores a realizar esse trabalho nas escolas, a ampliar seu repertório expressivo, seu alcance na sociedade através do teatro e de outras formas de expressão artística, nas quais o conhecimento estará sendo transmitido sob uma linguagem e um mundo visual diferenciados. Pretendemos tentar comprovar nossa hipótese de que é possível sensibilizar o professor para um ensino mais criativo e desenvolver estratégias que aumentem a criatividade na formação dos cientistas, praticando um ensino que estimule a imaginação.
O ser humano nunca viveu sem utilizar a arte como forma de expressão, uma indicação de que a linguagem da arte é a própria linguagem da humanidade. Por isso, e para isso, a arte precisa ser mais bem compreendida e valorizada na educação, em todos os níveis de ensino, desde o ensino fundamental, em toda e qualquer escola, até o ensino de pós-graduação, para a formação de docentes e cientistas com orientação holística. A arte pode se combinar com a ciência como parte de uma estratégia pedagógica explícita para a educação científica da população. Atividades de ciência e arte possibilitam o desenvolvimento de novas intuições e compreensões através da incorporação do processo artístico a outros processos investigativos. Ajudam a construir um discurso interno e público sobre a relação entre arte, ciência, atividades humanas e tópicos relacionados a atividades multidisciplinares e multiculturais. A arte precisa ser incluída na educação científica não apenas para tornar as coisas mais belas, apesar de freqüentemente isso acontecer, mas primariamente porque os artistas fazem descobertas sobre a natureza diferentes daquelas que fazem os cientistas, sejam eles físicos, biólogos, geólogos ou outros especialistas. Além disso, os artistas usam bases diferentes para tomar decisões enquanto criam suas obras - seus experimentos. Mas tanto artistas como cientistas nos ajudam a notar e a apreciar as coisas da natureza que aprendemos a ignorar, ou que nunca nos ensinaram a ver. Tanto a arte como a ciência são necessárias para o completo entendimento da natureza e de seus efeitos nas pessoas.

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TANIA C. ARAÚJO-JORGE É PESQUISADORA TITULAR E ATUALDIRETORA DO INSTITUTO
OSWALDO CRUZ NO RIO DE JANEIRO E DOUTORA EM CIÊNCIAS PELA
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO (UFRJ)

 

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