VISÕES
DO NORTE
O escritor e diretor de teatro Márcio Souza fala do espetáculo
que apresentou em São Paulo e da cena teatral de Manaus
Márcio
Souza nasceu em Manaus, capital do Amazonas, em 1946, e iniciou-se no
mundo das letras aos 14 anos, escrevendo críticas de cinema para
um jornal local. Em 1965, partiu para estudar ciências sociais
na Universidade de São Paulo (USP), mas, depois da estada paulista
e de morar 20 anos no Rio de Janeiro, decidiu voltar para o Norte. "Sou
de lá, tenho minha família lá", conta em depoimento
à Revista E. "Mesmo morando no Rio, eu ia dez vezes por
ano a Manaus." Autor de livros e peças de teatro cujo tema
são os povos, personagens e fatos históricos da região,
o amazonense esteve em São Paulo para apresentar o divertido
musical As Folias do Látex, que conta a história do ciclo
da borracha e esteve em cartaz no mesmo Teatro Sesc Anchieta, na unidade
Consolação, onde estreou a versão original, em
1977. Durante a conversa, Márcio Souza falou sobre o isolamento
das produções artísticas nacionais em meio a um
país "de proporções continentais", criticou
a falta de atuação dos governos na promoção
desse diálogo e contou um pouco sobre como funciona o Teatro
Experimental do Sesc do Amazonas (Tesc), que dirige atualmente. A seguir,
trechos.
VISÃO
CRÍTICA
O humor é sempre crítico e o drama gera lágrimas.
E quando você chora fica com a visão turva, e nós
não queríamos ninguém com a visão turva
nesse espetáculo. Ao contrário. Por isso optamos por essa
linguagem de musical, o vaudeville. As Folias do Látex é
um espetáculo que conta o ciclo da borracha de forma bastante
ferina, com um fio condutor, a história em si que a gente quis
contar, mas com números de mágica, dança, esquetes.
Há um com o Euclides da Cunha, o grande analista do ciclo, outro
com o cientista francês que descobriu a borracha. Mas nada é
contado como uma aula de história e sim como uma grande brincadeira.
Não queria montar essa peça de novo, achava que não
iria haver mais interesse. Mas o elenco, todo formado por jovens, se
identificou muito com o texto. Os meninos fizeram associações
com a precariedade da economia brasileira, com os ciclos que vão
provocando crises permanentes e fazendo o povo pagar a conta. Eles perceberam
isso no espetáculo. E eles tornaram tudo muito leve, não
se preocuparam em demonstrar que são contra isso ou aquilo. E
eles passam isso para o espectador, com muito senso de humor e brincadeira.
É um outro espírito, diferente da versão de 1976
[ano em que a peça estreou em Manaus para depois sair em turnê
nacional no ano seguinte], muito mais leve.
DIFERENTES LEITURAS
O público brasileiro é capaz de fazer essas leituras e
transferir as realidades. Quando o espetáculo foi para o Nordeste,
o público lá fez uma leitura com base na crise agrária
na região, dos ciclos econômicos ligados ao campo, da indústria
agrária que sempre esteve, periodicamente, em crise. Ou seja,
não é uma peça de compreensão difícil
para o espectador de fora da Amazônia. O que tem de estranho é
que muito raramente se propõe uma visão do Brasil via
Norte do país. É a isso que, de certo modo, os espectadores
precisam se adaptar no início, para ter essa visão que
não é comum. Há pouca interação entre
as produções culturais no Brasil. A única forma
hegemônica que atinge todo o país - que é cultural,
mas raramente artística - é a televisão. A produção
artística brasileira é insular. Nós sabemos por
notícias, sinais de fumaça, que existem bons movimentos
teatrais em Porto Alegre, Recife, Belo Horizonte e mesmo no Rio e em
São Paulo - mas o desse eixo é tão isolado quanto
o nosso lá do Amazonas. Ficamos cada um com nosso público.
Primeiro pelas proporções continentais do Brasil e depois
porque houve uma mudança na economia da cultura brasileira. Até
o início dos anos 60 o teatro circulava pelo Brasil. Eu vi, ainda
adolescente, a montagem de estréia de Boca de Ouro, com elenco
original, no Teatro Amazonas, com cenário completo. Os espetáculos
chegavam lá, iam de navio! Agora, não sei como eram financiados.
Hoje, se você não tem um patrocínio, fica difícil.
Essa nossa excursão custa uma fábula. E olha que o grupo
não está recebendo altos salários, há só
uma pequena bolsa para alimentação. Mas o custo de passagem
aérea, de carga e tudo mais torna proibitiva essa integração.
É uma pena que não se possa promover esse diálogo.
ILHAS DE CULTURA
Os espetáculos que vão para o Amazonas hoje são
lastimáveis. São atores da Rede Globo que vão decorando
o texto no avião. Eles esquecem falas, riem em cena, coisas inadmissíveis.
É esse o teatro que vai para lá. O Antunes Filho, por
exemplo, nunca se apresentou em Manaus. A Marika Gidali fazia temporadas
regulares com o Ballet Stagium, mas deixou de fazer, por falta de recursos
financeiros. Não há um programa que possa distribuir os
espetáculos de arte pelo país. A não ser esses
caça-níqueis que têm milhões de patrocínios.
Nós contamos com a aliança entre o Sesc Amazonas e o Sesc
São Paulo. Esses regionais são os únicos dois que
têm uma experiência igual, o nosso projeto e o do Antunes
são absolutamente semelhantes, e isso nos ofereceu a estrutura
necessária. Além do apoio da Secretaria de Cultura do
Estado do Amazonas, que entendeu a importância dessa circulação
e doou todas as passagens. Agora, como não há uma atribuição
de responsabilidades por parte dos aparelhos de cultura do Estado brasileiro,
fica difícil saber a quem recorrer. Eu acredito que o fomento
dos grupos tinha de ser local, partir das secretarias de cultura municipais.
Os governos dos estados deveriam se responsabilizar pela integração
interestadual desses espetáculos produzidos nos municípios.
E ao governo federal caberia a integração nacional. Mas
isso não acontece, porque ninguém sabe quem é quem.
Além do fato de que neste país os recursos alocados para
a cultura são pífios.
O
TESC
Nós temos duas linhas de atuação, unificadas pela
proposta de pesquisa dentro das artes cênicas - das grandes dramaturgias,
das escolas de teatro etc. Agora mesmo, quando voltarmos para Manaus,
vamos criar uma escola com um curso de teatro de dois anos, ligada às
atividades do grupo e aberta a todos. Essa preocupação
com a investigação das artes cênicas engloba buscar
as tendências do teatro no século 20, além de cursos
práticos de voz, de corpo e de interpretação -
são cursos anuais e obrigatórios, todo o elenco tem de
participar. Essas duas linhas iluminam o projeto estético e artístico
do grupo. O embasamento é esse processo de formação
e essas duas vias de um lado investigam o processo histórico
da região - As Folias do Látex é produto desse
tipo de pesquisa - e, de outro, buscam estabelecer uma aliança
com as culturas indígenas e pôr no palco a bagagem milenar
dessas culturas. O que é um dos aspectos mais fascinantes do
nosso trabalho, porque é como se nós assistíssemos
ao nascimento do teatro. Essa bagagem cultural dos povos indígenas
vem com um cunho litúrgico, religioso, dos mitos. É como
se víssemos a transformação do ritual em teatro.
E nós trabalhamos em contato com esse universo, especialmente
com os povos do Rio Negro, onde fica Manaus, que possui mais de 30 culturas
e línguas diferentes. Em 2004, fizemos um musical sobre a criação
do universo, para o Festival Amazonas de Ópera - partindo do
mito da criação do mundo, da cosmogonia dos povos do Rio
Negro. E temos outro, A Paixão de Ajuricaba, que é uma
mistura das duas linhas, processo histórico e universo mítico,
e conta a história do líder Ajuricaba que resistiu aos
portugueses durante oito anos.
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