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Teatro

Postado em 30/03/2007

REVISTA E - PORTAL SESCSP

VISÕES DO NORTE

O escritor e diretor de teatro Márcio Souza fala do espetáculo que apresentou em São Paulo e da cena teatral de Manaus

 

 

Márcio Souza nasceu em Manaus, capital do Amazonas, em 1946, e iniciou-se no mundo das letras aos 14 anos, escrevendo críticas de cinema para um jornal local. Em 1965, partiu para estudar ciências sociais na Universidade de São Paulo (USP), mas, depois da estada paulista e de morar 20 anos no Rio de Janeiro, decidiu voltar para o Norte. "Sou de lá, tenho minha família lá", conta em depoimento à Revista E. "Mesmo morando no Rio, eu ia dez vezes por ano a Manaus." Autor de livros e peças de teatro cujo tema são os povos, personagens e fatos históricos da região, o amazonense esteve em São Paulo para apresentar o divertido musical As Folias do Látex, que conta a história do ciclo da borracha e esteve em cartaz no mesmo Teatro Sesc Anchieta, na unidade Consolação, onde estreou a versão original, em 1977. Durante a conversa, Márcio Souza falou sobre o isolamento das produções artísticas nacionais em meio a um país "de proporções continentais", criticou a falta de atuação dos governos na promoção desse diálogo e contou um pouco sobre como funciona o Teatro Experimental do Sesc do Amazonas (Tesc), que dirige atualmente. A seguir, trechos.

 

VISÃO CRÍTICA
O humor é sempre crítico e o drama gera lágrimas. E quando você chora fica com a visão turva, e nós não queríamos ninguém com a visão turva nesse espetáculo. Ao contrário. Por isso optamos por essa linguagem de musical, o vaudeville. As Folias do Látex é um espetáculo que conta o ciclo da borracha de forma bastante ferina, com um fio condutor, a história em si que a gente quis contar, mas com números de mágica, dança, esquetes. Há um com o Euclides da Cunha, o grande analista do ciclo, outro com o cientista francês que descobriu a borracha. Mas nada é contado como uma aula de história e sim como uma grande brincadeira.
Não queria montar essa peça de novo, achava que não iria haver mais interesse. Mas o elenco, todo formado por jovens, se identificou muito com o texto. Os meninos fizeram associações com a precariedade da economia brasileira, com os ciclos que vão provocando crises permanentes e fazendo o povo pagar a conta. Eles perceberam isso no espetáculo. E eles tornaram tudo muito leve, não se preocuparam em demonstrar que são contra isso ou aquilo. E eles passam isso para o espectador, com muito senso de humor e brincadeira. É um outro espírito, diferente da versão de 1976 [ano em que a peça estreou em Manaus para depois sair em turnê nacional no ano seguinte], muito mais leve.

 

DIFERENTES LEITURAS
O público brasileiro é capaz de fazer essas leituras e transferir as realidades. Quando o espetáculo foi para o Nordeste, o público lá fez uma leitura com base na crise agrária na região, dos ciclos econômicos ligados ao campo, da indústria agrária que sempre esteve, periodicamente, em crise. Ou seja, não é uma peça de compreensão difícil para o espectador de fora da Amazônia. O que tem de estranho é que muito raramente se propõe uma visão do Brasil via Norte do país. É a isso que, de certo modo, os espectadores precisam se adaptar no início, para ter essa visão que não é comum. Há pouca interação entre as produções culturais no Brasil. A única forma hegemônica que atinge todo o país - que é cultural, mas raramente artística - é a televisão. A produção artística brasileira é insular. Nós sabemos por notícias, sinais de fumaça, que existem bons movimentos teatrais em Porto Alegre, Recife, Belo Horizonte e mesmo no Rio e em São Paulo - mas o desse eixo é tão isolado quanto o nosso lá do Amazonas. Ficamos cada um com nosso público. Primeiro pelas proporções continentais do Brasil e depois porque houve uma mudança na economia da cultura brasileira. Até o início dos anos 60 o teatro circulava pelo Brasil. Eu vi, ainda adolescente, a montagem de estréia de Boca de Ouro, com elenco original, no Teatro Amazonas, com cenário completo. Os espetáculos chegavam lá, iam de navio! Agora, não sei como eram financiados. Hoje, se você não tem um patrocínio, fica difícil. Essa nossa excursão custa uma fábula. E olha que o grupo não está recebendo altos salários, há só uma pequena bolsa para alimentação. Mas o custo de passagem aérea, de carga e tudo mais torna proibitiva essa integração. É uma pena que não se possa promover esse diálogo.

 

ILHAS DE CULTURA
Os espetáculos que vão para o Amazonas hoje são lastimáveis. São atores da Rede Globo que vão decorando o texto no avião. Eles esquecem falas, riem em cena, coisas inadmissíveis. É esse o teatro que vai para lá. O Antunes Filho, por exemplo, nunca se apresentou em Manaus. A Marika Gidali fazia temporadas regulares com o Ballet Stagium, mas deixou de fazer, por falta de recursos financeiros. Não há um programa que possa distribuir os espetáculos de arte pelo país. A não ser esses caça-níqueis que têm milhões de patrocínios. Nós contamos com a aliança entre o Sesc Amazonas e o Sesc São Paulo. Esses regionais são os únicos dois que têm uma experiência igual, o nosso projeto e o do Antunes são absolutamente semelhantes, e isso nos ofereceu a estrutura necessária. Além do apoio da Secretaria de Cultura do Estado do Amazonas, que entendeu a importância dessa circulação e doou todas as passagens. Agora, como não há uma atribuição de responsabilidades por parte dos aparelhos de cultura do Estado brasileiro, fica difícil saber a quem recorrer. Eu acredito que o fomento dos grupos tinha de ser local, partir das secretarias de cultura municipais. Os governos dos estados deveriam se responsabilizar pela integração interestadual desses espetáculos produzidos nos municípios. E ao governo federal caberia a integração nacional. Mas isso não acontece, porque ninguém sabe quem é quem. Além do fato de que neste país os recursos alocados para a cultura são pífios.

 

O TESC
Nós temos duas linhas de atuação, unificadas pela proposta de pesquisa dentro das artes cênicas - das grandes dramaturgias, das escolas de teatro etc. Agora mesmo, quando voltarmos para Manaus, vamos criar uma escola com um curso de teatro de dois anos, ligada às atividades do grupo e aberta a todos. Essa preocupação com a investigação das artes cênicas engloba buscar as tendências do teatro no século 20, além de cursos práticos de voz, de corpo e de interpretação - são cursos anuais e obrigatórios, todo o elenco tem de participar. Essas duas linhas iluminam o projeto estético e artístico do grupo. O embasamento é esse processo de formação e essas duas vias de um lado investigam o processo histórico da região - As Folias do Látex é produto desse tipo de pesquisa - e, de outro, buscam estabelecer uma aliança com as culturas indígenas e pôr no palco a bagagem milenar dessas culturas. O que é um dos aspectos mais fascinantes do nosso trabalho, porque é como se nós assistíssemos ao nascimento do teatro. Essa bagagem cultural dos povos indígenas vem com um cunho litúrgico, religioso, dos mitos. É como se víssemos a transformação do ritual em teatro. E nós trabalhamos em contato com esse universo, especialmente com os povos do Rio Negro, onde fica Manaus, que possui mais de 30 culturas e línguas diferentes. Em 2004, fizemos um musical sobre a criação do universo, para o Festival Amazonas de Ópera - partindo do mito da criação do mundo, da cosmogonia dos povos do Rio Negro. E temos outro, A Paixão de Ajuricaba, que é uma mistura das duas linhas, processo histórico e universo mítico, e conta a história do líder Ajuricaba que resistiu aos portugueses durante oito anos.


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