
BREVE
PRESENÇA
A
trajetória do flautista fluminense Pattápio Silva, cujo
centenário de morte é comemorado neste ano, revela o talento
do músico autodidata e a determinação de deixar
sua marca na cultura nacional
A vida musical de
Pattápio Silva teve início em uma barbearia, ponto de
encontro de compositores, instrumentistas e poetas populares no Brasil
do final do século 19, segundo revela O Livro de Pattápio
Silva (Irmãos Vitale Editores Brasil, 2000), coordenado pela
pianista e pesquisadora Maria José Carrasqueira, no qual estão
reunidas as nove obras compostas pelo flautista. Negro, filho do barbeiro
Bruno José da Silva, passou a infância entre navalhas,
pincéis e saraus improvisados no estabelecimento do pai, na cidade
de Itaocara, estado do Rio de Janeiro. Mas não foi o ofício
de cuidar do asseio alheio que atraiu o jovem. Seu interesse estava
na música. Autodidata, aos 5 anos construiu uma flauta de bambu
e, ainda menino, ensaiou as primeiras notas em uma versão feita
de lata, logo se tornando uma das principais atrações
da barbearia. "Ele era um prodígio, tinha uma facilidade
enorme com o instrumento", diz Maria José. A veia compositora
se revela também muito cedo, aos 16 anos, quando o flautista
começa a escrever as músicas para a banda da cidade natal.
"Essas bandas eram uma coisa muito importante na parte de lazer,
eram elas que movimentavam a vida musical, porque tinham de tocar tudo
o que fosse o hit do momento." Maria José conta ainda que,
justamente pelo fato de esses grupos terem uma espécie de responsabilidade
de ser muito bem informados sobre o gosto da época, não
raramente incluíam composições de autores europeus
em seu repertório. Foi assim que Pattápio tomou contato
com esse universo e decidiu que queria ser um músico internacional
- leia-se, ser conhecido na Europa.
Aos 20 anos, Pattápio muda-se para o Rio de Janeiro atrás
de possibilidades. Carismático, disciplinado e muito ciente do
que era necessário para realizar seu desejo, o jovem mostrava
preocupação com todo detalhe que considerasse importante
na empreitada. Mesmo com os parcos recursos, fazia questão de
sempre ser visto muito bem trajado. A
noção do que muito tempo depois viria a ser chamado "autopromoção"
levou-o até a acrescentar mais um "t" a seu primeiro
nome, "com a finalidade de criar glamour", como escreve Carmen
Silva Garcia em sua dissertação de mestrado "Pattápio
Silva - Flautista Virtuose, Pioneiro da Belle Époque Brasileira",
defendida no Departamento de Música da Escola de Comunicações
e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP). "Apesar
de todas as dificuldades que a própria sociedade impunha ao mulato
que desejasse participar da cultura dita 'erudita'", segue Carmen
no trabalho, "com seu próprio esforço, confiança
e apoio de alguns poucos admiradores e amigos, Pattápio foi capaz
de chegar ao topo, conquistando todos os prêmios em concursos
dos quais participou." A pianista Maria José Carrasqueira
revela que, apesar do preconceito com o qual o flautista teve de conviver,
não eram tão poucos assim seus admiradores. "Ele
ganha a cidade toda quando se muda para o Rio de Janeiro", afirma.
"Isso acontece, depois, também em São Paulo e no
Paraná." Ainda segundo Maria José, uma prova de que
sua música realmente o ajudava a vencer os obstáculos
está no fato de ele ter sido um dos primeiros a conseguir registrar
suas composições em disco no Brasil, em 1902, período
em que a indústria fonográfica no país dava os
primeiros passos, levada pelas mãos de Frederico Figner, dono
da Casa Edson e Casa Odeon. Esses poderiam ser chamados os selos musicais
da época. "Pattápio sabia que precisava divulgar
suas coisas", conta a pianista. "Tanto é que ele também
é um dos primeiros a ter as obras impressas, e isso então
era muito difícil. Note que, para conseguir um editor que se
dispusesse a investir em seu trabalho, é porque tinha todo um
carisma e uma entrada de público."
TESOURO
NACIONAL
O registro da obra do compositor e instrumentista, embora tenha apresentado
dificuldades em atravessar o tempo - é difícil encontrar
literatura que mencione seu nome ou gravações de suas
músicas -, tem status de tesouro nacional. O flautista Antonio
Carlos Carrasqueira (ou Toninho Carrasqueira), em texto publicado em
O Livro de Pattápio Silva, afirma que deixar de lado a importância
do músico é esquecer uma parte da própria história
do país. "[Pattápio] viveu na época do aparecimento
da música com características mais propriamente brasileiras
(...)", escreve Toninho. "Se pensarmos a música como
o retrato de um momento da história, no caso de Pattápio,
ela é o olhar, o sentir de um jovem (...) Sua música tem
a sinceridade, a graça, a paixão da juventude" -
qualidades essas que encantaram o professor de música e pesquisador
João Dias Carrasqueira, pai de Toninho e Maria José, e
um dos primeiros a se preocupar em resgatar a obra do flautista nos
anos 60, quando iniciou uma empreitada de 25 anos para colocar a música
do jovem compositor na pauta das conversas e na estante dos músicos
brasileiros. "Meu pai foi em sua época o maior divulgador
de Pattápio", explica Maria José. "Tinha todos
os discos dele. Por ser um músico brasileiro consciente da importância
de nossa música e por querer tocar todo o material disponível
para flauta, ele trouxe o Pattápio como exemplo." Daí
vieram o gosto dos irmãos pela obra do flautista e também
o desejo de continuar os planos do pai de fazer o músico não
ser esquecido pelas jovens gerações. "Meu pai deixou
para mim e para meu irmão todas as edições dessas
obras, material que serviu como base para a edição do
livro."
Mesmo sendo contemporâneo de nomes como Heitor Villa-Lobos, Chiquinha
Gonzaga, Joaquim Antonio da Silva Callado, Alberto Nepomuceno e até
de Carlos Gomes - figuras com as quais teve contato -, Pattápio
Silva não ganhou o mesmo lugar na memória dos brasileiros.
E isso, segundo afirma Maria José, se deve a dois fatores, um
mais técnico, relacionado com o fato de que o flautista produziu
numa época em que o mercado musical voltava os olhos e o investimento
para o piano, e outro que leva à eterna questão da falta
de acesso à memória cultural do país. "É
uma questão de fazer as coisas chegarem até as pessoas",
afirma a pianista. "Realizamos uma pesquisa que mostrou que nossas
crianças não cantam mais as tradicionais cirandas nas
escolas, por exemplo. Isso as faz perder o contato com suas próprias
raízes musicais."
Talvez valha a pena incluir entre os motivos desse quase esquecimento
o fato de que o sonho do jovem foi interrompido no auge dos acontecimentos.
O flautista morreu em 1907, aos 26 anos, vítima de uma difteria
que lhe tirou a vida em um mês - em meio à primeira turnê
brasileira. A chance de maior reconhecimento ressurge agora com as comemorações
de seu centenário de morte. Além do espetáculo
realizado no Sesc Vila Mariana (veja boxe Ao Som da Flauta), há
projetos que incluem o lançamento de um CD com algumas de suas
peças e um novo trabalho de divulgação do livro
que reúne suas composições, tudo capitaneado pela
família Carrasqueira. "Não temos datas, mas muitos
planos", conclui Maria José.
Ver boxes:
Ao
som da flauta
A vida na "bela época"
 Ao
som da flauta
Shows
realizados no Sesc Vila Mariana resgatam a obra de Pattápio
Silva
Durante
o mês de março, o Sesc Vila Mariana apresentou,
em sua Praça de Eventos, três shows em homenagem
ao compositor carioca Pattápio Silva. Em E Viva Pattápio!
os grupos Choro de Moça (à esquerda) e Flávio
Sandoval Trio apresentaram releituras de composições
do flautista para que o público pudesse tomar contato
com sua obra, considerada fundamental na história da
música brasileira. Nos dias 3, 17 e 31 de março,
os presentes puderam ouvir, em novas roupagens, peças
como Polca, Cotinha, Primeiro Amor e Margarida.
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A
vida na "bela época"
Compositor surgiu em período histórico que
fez o Brasil respirar ares de primeiro mundo
Da chamada belle époque brasileira, que vai do final
do século 19 até o ano de 1914, quando estoura
a Primeira Guerra Mundial, costuma-se dizer que se tratou mais
de um estado de espírito. O período foi marcado
por um grande entusiasmo causado pelas descobertas tecnológicas
e acontecimentos artísticos que vinham da Europa e que
passaram a incluir o Brasil na rota de seus ecos - sobretudo
em capitais como São Paulo e Rio de Janeiro. O otimismo
estava no ar, iluminado pela luz elétrica recém-chegada
às cidades brasileiras e fomentado pela revolução
nos transportes - que iria substituir o lombo dos burros e cavalos
pelo bonde e pelo automóvel. Algumas cidades começaram
a ganhar redes de esgoto e o vaso sanitário tornava-se
a grande novidade nos banheiros das elites. Para o historiador
Elias Thomé Saliba, autor do livro Raízes do Riso
(Companhia das Letras, 2002), que faz um mapeamento da evolução
do humor no Brasil - muito inspirado nessa época de posturas
afrancesadas -, a belle époque é o "prenúncio
de tudo de bom e ruim que haverá no século 20".
"É uma expressão que revela o otimismo, mas
também a ingenuidade de achar que aqueles benefícios
trariam uma vida melhor a todos." No Brasil, o fim da escravidão,
em 1888, e a proclamação da República,
um ano depois, reforçaram ainda mais as convicções
em relação ao futuro. "É um período
em que as pessoas apostam muito na mudança da história",
conta Saliba. "Só que a desilusão acontece
quando fica claro, por exemplo, que, apesar de ter se tornado
uma república, o país continua nas mãos
da oligarquia."
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