Postado em 05/09/2006
Milton Vargas, engenheiro, professor e filósofo, fala sobre o futuro do homem moderno
CECÍLIA PRADA
Milton Vargas / Foto: Julia Toro
Se o espanto diante deste mundo, da vida, suas multiformas, foi sempre a característica principal do bicho humano em seu constante questionamento do universo, mais do que nunca o homem comum do século 21 sente no seu cotidiano, no jornal que tenta ler no café-da-manhã, no noticiário que filtra através de sua rotina, desafios que parecem superar sua própria capacidade de entendimento. E muitas vezes exageradas cobranças de "tomada de posição" que só conseguem deixá-lo mais confuso e estraçalhado. Pois a aceleração das conquistas científicas e tecnológicas mostra-se em vários pontos descompassada com as conseqüências nocivas à própria espécie humana – dois exemplos estão no atual debate sobre o aquecimento global e na controvérsia acerca do incremento das pesquisas sobre células-tronco e suas recombinações.
Esses são temas que há muito constituem objeto de estudo de cientistas e intelectuais capazes de sobrepor vários âmbitos indagativos à sua reflexão, e mesmo à sua atividade diária. Um exemplo disso é a vida de Milton Vargas, engenheiro eletricista e civil, professor emérito da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP), especializado em mecânica de solos, de brilhante carreira como engenheiro geotécnico de elevada reputação nacional, com trabalhos realizados principalmente através da Themag Engenharia, da qual é um dos diretores. E que conseguiu tornar-se ainda filósofo, escritor e historiador. Seus numerosos livros, mais de uma centena de artigos e dezenas de crônicas sobre filosofia e história da ciência, publicadas na "Folha de S. Paulo", o levaram à Academia Paulista de Letras, da qual hoje, aos 93 anos, é o decano – nasceu em Niterói (RJ), em 1914.
É autor de livros técnicos, dos quais Introdução à Mecânica dos Solos recebeu em 1978 os prêmios Jabuti e Roberto Simonsen. Além disso publicou, entre 1981 e 2001, Verdade e Ciência, Para uma Filosofia da Tecnologia, Poesias e Verdade, História da Técnica e da Tecnologia no Brasil (da qual foi organizador) e, em 2001, História da Ciência e da Tecnologia no Brasil: Uma Súmula.
É também membro fundador do Instituto Brasileiro de Filosofia e foi agraciado com o título de doutor honoris causa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). O Centro Acadêmico de Engenharia Civil da Poli-USP leva o nome de "Professor Milton Vargas", em sua homenagem.
Problemas Brasileiros – Professor, a que se deve o interesse que o senhor cultivou toda a vida pela filosofia, embora tenha seguido uma profissão tão técnica?
Milton Vargas – Devo isso à minha formação, na infância e na adolescência, no Colégio de São Bento, em São Paulo, onde o ensino procura sempre abranger os vários aspectos que integram a personalidade humana. Conservei toda a vida meu interesse por essa base de educação humanista, imprescindível.
PB – Vamos aprofundar então essa questão da tecnologia e da ética. Como a vê?
Milton – Antes de mais nada, e para ter uma idéia exata do que estamos falando, seria bom lembrar a definição de "tecnologia", para que seja usada em sentido preciso. Então o que é: o conjunto de saberes e instrumentos capazes de resolver problemas técnicos, com base em conhecimentos científicos. Alimentada pela ciência, a tecnologia fornece elementos a seus agentes executores, a engenharia, a indústria, a agricultura, a pecuária, etc. Mas não é só isso. Também as profissões liberais, como a medicina e o direito, se alimentam do saber e dos instrumentos tecnológicos para resolver problemas de saúde e justiça. Por isso, podemos dizer que o sistema tecnológico está profundamente inserido no mundo moderno. Não é possível pensar um sem o outro.
PB – Há um momento histórico exato que caracterize a irrupção da chamada "tecnologia moderna"?
Milton – É uma coisa muito arbitrária procurar encontrar pontos exatos de deflexão no curso da história, datar o "surgimento" deste ou daquele fenômeno. A técnica é tão antiga quanto a humanidade. No referente à tecnologia, um desses momentos, porém, é inconteste: foi quando Galileu Galilei, já cego e condenado à reclusão perpétua pela Inquisição, escreveu Discorsi e Dimostrazioni Matematiche intorno a Due Nuove Scienze, publicado em 1638 na Holanda. Nessa obra, ele aplica uma teoria científica da mecânica racional à solução de um problema técnico de resistência dos materiais. Mais precisamente: o problema do cálculo de uma viga em balanço. Antes disso, os arquitetos escolhiam os tamanhos das vigas em balanço baseados em conhecimentos empíricos, pessoais ou tradicionais. Aliás, essas duas tendências, a empírica e a científica, desenvolveram-se paralelamente nos séculos seguintes. E até hoje vemos que o papel dos técnicos não desapareceu, principalmente na engenharia. São eles, apesar de não diplomados em escolas superiores, que garantem o projeto, a construção e a operação dos instrumentos de pesquisa.
PB – Dizem que "na prática a teoria é outra"...
Milton – Sim, a voz do povo tem razão... Veja, a industrialização da sociedade européia até o fim do século 19 processou-se em concordância com o espetacular desenvolvimento do conhecimento científico e o aprimoramento da habilidade técnica. Aliás, discordei sempre do termo genérico "sociedade industrial"... Acho-o meio impróprio.
PB – Como assim?
Milton – A industrialização não foi um fenômeno homogêneo, não chegou a englobar toda a sociedade européia, pois nela havia também uma cultura humanista resistente ao total domínio da mentalidade industrial. Felizmente. Pois a essa persistência humanista devemos a inegável atuação das instâncias sociais críticas no sistema técnico-industrial. Ou seja, as preocupações de origem ética, ecológica, atuantes e mais necessárias do que nunca, hoje.
PB – O senhor tem se referido, em seus escritos, à necessidade de uma instância crítica que chamou de "filtros sociais", aplicável aos desvirtuamentos tecnológicos. O que seriam esses filtros?
Milton – São, em suma, constituídos pela somatória das opiniões formadas numa sociedade, a respeito da conveniência, adequação, qualidade e efeitos da adoção de certa tecnologia. Essas opiniões, embora formadas a partir de manifestações de organismos estranhos à tecnologia, vêm a incluir-se no sistema tecnológico, a partir de sua aceitação ou refutação.
PB – Um exemplo prático?
Milton – A atual obrigatoriedade dos relatórios de impacto ambiental nos projetos de engenharia. Já é um sinal da inclusão dos "filtros sociais" no sistema tecnológico. Isto é, tanto de órgãos de gerenciamento e de políticas científica e tecnológica específicas, como de outros que se ocupam da defesa ambiental, a imprensa, a literatura, a própria opinião pública. O que já pode ser notado é que, por mais agressivos que pareçam alguns ataques, as opiniões formadas através desses órgãos tendem a se incorporar ao próprio sistema tecnológico. Quando os ambientalistas, por exemplo, denunciam a poluição produzida pelas fábricas, recorre-se à própria tecnologia para resolver o problema.
PB – Com os graves problemas que a humanidade enfrenta hoje – aquecimento global, manipulação genética, radiação, etc. –, seria fundamental incluir na tecnologia uma teoria dos valores e uma ética?
Milton – Ao primeiro exame, isso pareceria desarrazoado, porque a tecnologia é uma aplicação de conhecimentos científicos, e tais conhecimentos não incluem nem valores nem ética. Não podem ser obstados pela alegação de serem bons ou maus, benéficos ou perniciosos. A história já nos deu exemplos dramáticos em que o conhecimento científico foi impedido, ou prejudicado, por razões políticas, religiosas ou éticas. O mais conhecido, vale lembrar sempre, é o caso de Galileu Galilei, obrigado a renunciar diante das ameaças da Inquisição à teoria heliocêntrica de Copérnico, que defendia, para declarar solenemente que a Terra estava parada no centro do universo.
PB – As questões envolvidas hoje, porém, representam uma ameaça à própria sobrevivência da espécie humana...
Milton – Não há dúvida. Esse é o debate mais atual que existe, mais premente. No sistema industrial anterior, essa inclusão, quer dizer, a preocupação ética, estava totalmente ausente. Foi preciso que a humanidade se conscientizasse dos perigos que a energia nuclear, a biotecnologia e a automatização eletrônica podem apresentar, para que essas instâncias axiológicas, éticas e morais fossem sendo lentamente aceitas. Isso foi possível, porém, porque a tecnologia pode não ser considerada neutra – como o são as ciências.
PB – Pode explicar isso?
Milton – Em vez de a tecnologia ser considerada como a aplicação das ciências, deve ser compreendida como a utilização delas, para servir a um certo fim. Ora, esse "servir para" implica certo comportamento humano em relação às tecnologias. Portanto, uma ética, não tanto por parte dos próprios tecnólogos mas muito mais por parte dos que as utilizam e decidem sobre sua utilização.
PB – Os interesses comerciais, as preferências pessoais, não interferem sobre, digamos, a pureza de intenções desses organismos, ou indivíduos, que representam os "filtros sociais"?
Milton – Sem dúvida alguma. Sofremos com as contradições que já se tornaram inerentes ao sistema tecnológico. Os "filtros sociais" já existentes podem funcionar mal, por ignorância ou falta de sensibilidade. E isso tanto por parte dos executores da tecnologia como de seus críticos. Eles podem ser controlados por grupos e indivíduos mal-intencionados, que jogam com as ambigüidades sociais, a debilidade das próprias instituições. Temos também de lidar concretamente com o fato de o controle tecnológico ou as limitações à pesquisa científica serem feitos por políticos e governantes, que representam interesses de partidos e lobbies, de ideologias, das indústrias...
PB – Como no caso de Bush, que vetou a pesquisa sobre células-tronco.
Milton – Exatamente.
PB – Estaríamos nos aproximando daquele pesadelo descrito por Huxley em Admirável Mundo Novo?
Milton – Em certos aspectos, já o estamos vivendo...
PB – Essas preocupações de natureza filosófica estão desenvolvidas nos numerosos artigos e livros que o senhor escreveu e publicou, no correr de sua vida.
Milton – Sim, eu me preocupo muito com esses problemas, na minha dupla reflexão, porque sou um homem da técnica, mas, como já disse, na prática e no ensino procurei sempre lidar com os aspectos humanos e sociais ligados a esse tema. São questões de ordem filosófica que interferem diretamente na vida humana, em especial no que concerne à inviolável liberdade do homem. Pretender que cientistas ou tecnólogos recuem diante da verdade resultante de suas pesquisas em nome de um bem-estar social é menosprezar o amor à verdade que caracteriza todo pesquisador. E deixar de utilizar as tecnologias relacionadas à energia nuclear, à computação eletrônica ou à genética, por serem consideradas "perigosas" para a humanidade, seria renunciar ao mundo contemporâneo. Mas hoje é imprescindível desenvolver um novo conceito de responsabilidade coletiva. Aos cientistas e tecnólogos não caberia restringir ou não levar a cabo suas pesquisas, mas divulgar todos os perigos e riscos decorrentes delas. Como já se faz no campo da bioética, centrada na questão tão perigosa da tecnologia do DNA recombinante.
PB – Ouve-se falar muito em compra de tecnologia, por parte dos países em desenvolvimento, em relação aos do chamado Primeiro Mundo. É correto isso?
Milton – Isso não existe. Não se pode comprar ou vender tecnologia, como se fosse uma mercadoria. Ela é um saber que se aprende, isso sim. A tecnologia tem de ser entendida como a utilização de conhecimentos científicos para a satisfação das autênticas necessidades materiais de um povo. Só se importaria tecnologia se houvesse conhecimento prévio dos princípios científicos sobre os quais ela se baseia.
PB – Como se deu a introdução, no Brasil, da pesquisa tecnológica?
Milton – Em 1898 foi criado, na Escola Politécnica de São Paulo, um Gabinete de Resistência de Materiais que só se firmou, porém, em 1926, quando foi transformado, por Ary Torres, no Laboratório de Ensaios de Materiais (LEM). Visava-se principalmente pesquisar as propriedades mecânicas e químicas dos materiais componentes do concreto armado. Em 1934, esse laboratório foi convertido no Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT), existente até hoje. No Rio de Janeiro, a Estação Experimental de Combustíveis e Minérios (EECM), criada em 1922, foi depois transformada no Instituto Nacional de Tecnologia (INT).
PB – O senhor pertence à primeira geração formada pela Universidade de São Paulo. Qual o papel desempenhado pela USP no desenvolvimento das ciências, no Brasil?
Milton – A pesquisa científica básica consolidou-se com a criação das Universidades de São Paulo e do Rio de Janeiro. A primeira universidade brasileira, realmente efetiva e duradoura, foi a de São Paulo, criada por Armando de Salles Oliveira em 1934. Seu núcleo foi a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, organizada por Theodoro Ramos e Paulo Duarte, que foram incumbidos da contratação de professores europeus para as áreas de ciências exatas e ciências humanas. A USP reuniu faculdades bem mais antigas, já existentes – a de Direito, que data de 1827, as de Medicina e de Medicina Veterinária, a Escola Superior de Agricultura (de Piracicaba) e a Escola Politécnica, que fora fundada em 1894 e na qual me formei, na turma de 1938. Com a vinda de professores estrangeiros houve de fato uma reestruturação radical do ensino superior no Brasil. No campo das ciências, destacaram-se, na matemática, o professor Luigi Fantappié, e, na física, o grande cientista Gleb Wataghin. A criação da Faculdade de Filosofia da Universidade do Brasil, no Rio de Janeiro, em 1938, completou o quadro dessa primeira geração, brilhante, de universitários brasileiros.
PB – Rio de Janeiro e São Paulo eram então obrigatoriamente os centros da vida cultural do país?
Milton – Sem dúvida. Somente após a 2ª Guerra Mundial é que as universidades se espalharam por todo o território nacional, onde, com exceção da antiga Universidade do Paraná, só havia escolas superiores isoladas.
PB – Sua vida acadêmica, professor, foi desenvolvida integralmente na Politécnica de São Paulo. Poderia falar um pouco dessa escola?
Milton – A criação da Politécnica de São Paulo talvez tenha sido o primeiro acontecimento importante da República Velha, não só no que se refere à história da ciência, mas da nossa tecnologia, pois se deu em moldes bem diferentes da do Rio de Janeiro. Isso aconteceu no final do governo de Floriano Peixoto, em 15 de fevereiro de 1894, por projeto do então deputado estadual Antonio Francisco de Paula Souza. Nela, não se enfatizava somente o caráter científico de cursos básicos de matemáticas e de ciências naturais, mas surgiam também cursos específicos. Como o de resistência dos materiais e estabilidade das construções, ministrados pelo próprio Paula Souza. E tiveram início os laboratórios de caráter tecnológico, dos quais já falei.
PB – Como vê o desenvolvimento científico e tecnológico do Brasil, nas últimas décadas?
Milton – Do início dos anos 1980 até o final do regime militar, em 1985, estivemos em crise, em compasso de espera. O crescimento desmesurado da inflação e os chamados choques do petróleo causaram um grave período de recessão geral, e com isso as atividades de pesquisa declinaram muito, subsistindo apenas em nível universitário. Houve uma grande evasão de cientistas, que acabaram conseguindo notoriedade no exterior. Nos vários governos, de 1985 em diante, procurou-se reabilitar as atividades de pesquisa científica e tecnológica, com projetos específicos e a criação de órgãos importantes. O CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico], por exemplo, tem investido muito em bolsas, visando formar mestres e doutores. No final dos anos 1980 e início dos 90, houve expressivo crescimento da produção científica brasileira, com repercussão no exterior. Acho que o importante, hoje, é que os órgãos públicos pretendem programar e financiar pesquisas não somente através de verbas oficiais, mas procurando também despertar o interesse de indústrias e empresas de vários ramos em relação a essas atividades.