Postado em 05/09/2006
Há cem anos nascia Ernesto Geisel, o ditador que desmontou a ditadura
HERBERT CARVALHO
Ele acabou com a tortura de presos políticos no Brasil. Não porque a considerasse um inadmissível desrespeito aos direitos humanos – ao contrário, ele a justificava como meio eficaz de obter confissões –, mas por ter sido afrontado pela "linha dura" militar em seu projeto de abertura "lenta, segura e gradual".
Anticomunista até a medula, reatou as relações do Brasil com a República Popular da China e reconheceu, antes de qualquer outro país do Ocidente, a guerrilha marxista do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), apoiada por tropas cubanas, como legítimo governo angolano, após a independência desse país africano. Em plena Guerra Fria, encerrou o ciclo de alinhamento automático aos Estados Unidos, inaugurado pelos governos militares anteriores ao seu, substituindo-o pela orientação de política externa que ele mesmo batizou de "pragmatismo responsável".
Aos ouvidos dos brasileiros que convivem com inflação baixa e índices de crescimento igualmente nanicos, certamente soará como pré-histórica a lembrança de que há três décadas privilegiava-se o desenvolvimento, ainda que a custo de uma carestia especialmente perversa para com os trabalhadores de baixa renda. E para que o Produto Interno Bruto (PIB) continuasse a crescer 7% ao ano, apesar da crise do petróleo, que anunciava o fim do chamado "milagre brasileiro", havia até um ambicioso Plano Nacional de Desenvolvimento (o II PND) – colocando o Estado na vanguarda do processo –, diante do qual o Plano de Aceleração do Crescimento (PAC) atual não passaria de pálida imitação.
Foi o tempo da construção das hidrelétricas de Itaipu e Tucuruí, do Acordo Nuclear com a Alemanha (que era então a Ocidental) e do início do Programa Nacional do Álcool (Proálcool), obras tidas como "faraônicas" e programas até hoje polêmicos, mas que indiscutivelmente garantiram a base energética do país até a virada do século – a falta de novos investimentos em infra-estrutura depois daquela época resultaria, em 2001, no fantasma do "apagão".
Estamos falando, como a esta altura já perceberam os leitores com mais de 50 anos, do general Ernesto Geisel – cujo centenário de nascimento transcorre neste ano de 2007 – e de seu qüinqüênio de governo (1974-79), que para o bem ou para o mal deixou um legado de marcante influência no Brasil redemocratizado. Como evidência basta mencionar, na esfera social e política, a explosão das greves operárias. Retomadas em 1978, elas projetaram a liderança do hoje presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, e resultaram nas centrais sindicais que, mesmo combalidas e cooptadas, exibem força suficiente para barrar qualquer tentativa de flexibilização das leis trabalhistas.
Em outro aspecto, faz parte da mesma herança o fim das desordens militares que caracterizaram a história do Brasil, da proclamação da República até o dia 12 de outubro de 1977. Nessa data, Geisel humilhou e demitiu o ministro "linha-dura" do Exército, Sylvio Frota, acabando desde então com a ingerência descarada que o titular dessa pasta – hoje diluída no Ministério da Defesa e até recentemente subordinada, por ironia, a um desafeto dos militares, Waldir Pires – sempre tivera sobre os destinos da nação.
Modelo que diferia de suas congêneres latino-americanas pelo rodízio dos generais no poder e pelo simulacro de eleições e instituições políticas que admitia, para afetar uma suposta opção democrática, a ditadura militar brasileira durou 21 anos, de 1964 a 1985. E se não fragmentou o país como ocorreu na Europa pós-queda do Muro de Berlim, nem permitiu que os assassinos e torturadores respondessem por seus crimes, como na vizinha Argentina, deve-se essencialmente à habilidade com que Geisel, secundado pelo fiel escudeiro Golbery do Couto e Silva, conduziu a descompressão do regime. Razão suficiente para que Problemas Brasileiros faça um balanço de seu governo – que alardeou nossa soberania ao mesmo tempo em que inaugurava nosso endividamento externo – e trace o perfil de sua figura contraditória, recordista no uso do AI-5, mas que aboliu esse e outros instrumentos ditatoriais, como a censura à imprensa.
Germanofilia
Filho do imigrante alemão Augusto Guilherme Geisel, natural de Hefborn, em Hessen, e de Lydia Beckmann Geisel, cuja família é originária de Osnabrück, em Hanover (também na Alemanha), Ernesto Geisel nasceu em Bento Gonçalves (RS) no dia 3 de agosto de 1907. Em seus registros militares figura, porém, o ano de 1908. "Havia uma data limite para entrar no colégio militar e, como era procedimento comum na época, muitos alteravam a data de nascimento", confessou o próprio Geisel aos pesquisadores do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas (FGV). Avesso a entrevistas e arredio ao contato com a imprensa, ele concedeu em 1994, dois anos antes de sua morte, com fins exclusivos de registro histórico, um longo depoimento sobre sua vida e governo aos pesquisadores Maria Celina D’Araujo e Celso Castro, publicado em livro em 1997 pela Editora da FGV.
Irmão caçula de Amália, Bernardo, Henrique e Orlando, por ordem cronológica de nascimento, ele seguiria a mesma carreira militar dos dois últimos, mais por falta de opção do que por vocação: em Bento Gonçalves, onde seu pai tornara-se dono de cartório, não havia senão a escola primária. E, na capital Porto Alegre, o Colégio Militar era o único internato disponível para quem provinha de uma família luterana (o que excluía as escolas católicas) sem muitos recursos.
Essas duas vertentes – a herança genética alemã e uma vida passada na caserna desde soldado até general – são apontadas pelo historiador Hélio Silva como a base de seu caráter "metódico, ordenado, organizado e meticuloso". Características que, aliadas à sua preparação na Escola Superior de Guerra (ESG), seriam decisivas na montagem e execução do projeto de abertura, em especial na queda-de-braço com Sylvio Frota.
Em relação à origem alemã, pelo menos dois episódios de seu governo foram atribuídos, por alguns analistas da época, a uma pretensa germanofilia: o Acordo Nuclear Brasil-Alemanha, assinado em Bonn em 1975, e o voto do Brasil na ONU que condenava o sionismo como forma de racismo, atitudes que desagradaram profundamente aos Estados Unidos e estremeceram como nunca antes – nem depois – nossas relações com esse país. Embora outros militares, inclusive seus irmãos, tivessem ascendência germânica, apenas Geisel exibia a postura prussiana que entre seus colegas de farda rendeu-lhe o apelido de "Alemão". No depoimento ao CPDOC, entretanto, ele não admite essa influência nas decisões que tomou:
"Muitas pessoas podem imaginar que tivesse simpatia pelos alemães porque sou descendente de alemães. Mas isso é uma bobagem. Nós nos orientamos para a Alemanha porque considerávamos que, se ao longo do tempo iríamos construir usinas nucleares, tínhamos de ter o ciclo completo da produção da fonte energética, isto é, precisaríamos produzir o urânio enriquecido. E os Estados Unidos sempre foram contrários a isso, sempre quiseram que o Brasil ficasse preso a eles".
Sobre a segunda questão, sua justificativa é no mínimo confusa e simplória: "Estou convencido até hoje de que o sionismo é racista. Não sou inimigo dos judeus, inclusive porque em matéria religiosa sou muito tolerante. Mas quando é que o indivíduo é judeu? Quando a mãe é judia. O judaísmo se transmite pela mãe. Isso não é racismo? Não é uma raça que assim se perpetua? Por que eu não posso declarar isso ao mundo? Contudo, nosso voto provocou uma celeuma danada. Agora o revogaram".
Sorbonne
Após quatro anos de Colégio Militar, Geisel ingressa em 1925 na Escola Militar do Realengo, no Rio de Janeiro, novamente seguindo as pegadas dos irmãos Henrique e Orlando. Mas, diferentemente deles, Ernesto se destacaria como o melhor aluno de ambas as instituições.
Em pleno ciclo das revoltas tenentistas, em 1930 ele próprio torna-se primeiro-tenente da arma de artilharia (a mesma dos irmãos) e adere ao movimento revolucionário deflagrado por Getúlio Vargas no dia 3 de outubro, comandando uma bateria na frente de Itararé, divisa entre Paraná e São Paulo. Em 1931, por indicação de Juarez Távora, assume o Departamento de Segurança Pública do Rio Grande do Norte, mas no ano seguinte volta a comandar uma bateria, desta vez contra os revolucionários paulistas de 1932. Nesse mesmo ano assume a secretaria da Fazenda, Agricultura e Obras Públicas da Paraíba. Promovido a capitão em 1935, participa do combate ao levante comunista na Escola de Aviação Militar, no Campo dos Afonsos, no Rio de Janeiro.
Em 1940, casa-se com a prima Lucy Markus e nasce seu filho Orlando, que morreria prematuramente aos 16 anos, atropelado por um trem na cidade paulista de Osasco, onde Geisel comandou o 2º Grupo de Canhões Antiaéreos. No ano de 1941, ingressa com o irmão Orlando na Escola de Estado-Maior e conhece o capitão Golbery do Couto e Silva, o "Feiticeiro", que ao lado do "Sacerdote" (Geisel) comporia uma dupla "sem precedentes na história do Brasil", conforme as designações e avaliação feitas pelo jornalista Elio Gaspari em sua documentada obra de quatro volumes sobre a ditadura militar (A Ditadura Envergonhada, A Ditadura Escancarada, A Ditadura Derrotada e A Ditadura Encurralada, pela Companhia das Letras).
Em 1945, nasce sua filha Amália Lucy, e Geisel, recém-chegado de cursos e estágios em escolas militares dos EUA, participa das operações militares que desencadeiam a deposição de Vargas e o fim do Estado Novo.
Após dois anos e meio como adido militar no Uruguai, matricula-se na Escola Superior de Guerra – recém-organizada e comandada pelo general Osvaldo Cordeiro de Farias –, o que seria decisivo para o rumo posterior de sua vida e do próprio país.
A justificativa formal para a criação da ESG era o conceito de "guerra total", já que desde o conflito mundial de 1914-18 a guerra havia deixado de ser um problema exclusivo dos militares, para envolver também os civis, que a partir da retaguarda deveriam garantir, na continuidade da produção industrial, as bases materiais da vitória – como acabou acontecendo na 2ª Guerra Mundial, em parte decidida pela maior capacidade de produção, sobretudo dos Estados Unidos, em relação aos países do Eixo.
Organismo misto de militares e civis voluntários, assessorado em seu início por oficiais norte-americanos, a ESG rapidamente se tornou, no contexto da Guerra Fria, um bastião conservador e anticomunista por excelência. Instituição formuladora da doutrina de segurança nacional, ela passaria a identificar os sindicatos de trabalhadores e partidos de esquerda como um inimigo interno a ser vigiado e reprimido. Os oficiais ali diplomados tornaram-se conhecidos como a "Sorbonne" do exército, que teve entre seus expoentes, além de Geisel e Golbery, o primeiro presidente do ciclo militar e líder do golpe de 1964, Humberto de Alencar Castello Branco. Durante o segundo governo de Getúlio Vargas, em 1954, foi da ESG que surgiu o "Manifesto dos Coronéis", redigido por Golbery, contra o aumento de 100% do salário mínimo decretado pelo ministro do Trabalho, João Goulart. Apesar de concordar com seu conteúdo, Geisel – promovido a coronel e diplomado na ESG no ano anterior – recusou-se a assinar, por considerá-lo um ato de indisciplina. "Sempre fui, dentro do exército, muito independente. Nunca fui de grupo", ele se justificaria, 40 anos depois.
Petróleo e poder
A partir de 1955, quando é nomeado subchefe do Gabinete Militar da Presidência da República (o chefe era Juarez Távora), no governo João Café Filho, Geisel liga seu nome às principais crises políticas e militares que desembocariam no golpe de 64 – e também depois, até assumir a chefia do governo –, atuando sempre nos bastidores. Em novembro desse ano, porém, diverge do irmão Orlando – que apóia o contra-golpe do general Lott para garantir a posse de Juscelino Kubitschek.
Em 1957, é designado representante do exército no Conselho Nacional do Petróleo. Sua trajetória em relação ao tema petróleo seria longa e contraditória, oscilando de posições nacionalistas extremadas – como a briga que manteve contra as refinarias particulares, sobretudo a de Capuava (SP) – até os contratos de risco com empresas estrangeiras, admitidos em seu governo.
Em 1961, Geisel, já como general-de-brigada, e Orlando estão no olho do furacão causado pela renúncia de Jânio Quadros, ele no Comando Militar de Brasília e o irmão como chefe de gabinete do ministro da Guerra, Odílio Denys, que ao lado dos demais ministros militares divulgara um manifesto – novamente da lavra de Golbery – contra a posse do vice-presidente João Goulart. Apesar de ter chegado a sugerir, por intermédio do irmão, o uso da força contra o III Exército, que apoiava o governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, na defesa da legalidade constitucional, Geisel acaba por aceitar a solução parlamentarista para a crise, negociada com Tancredo Neves, e dá garantias para Jango ir a Brasília assumir a presidência.
Após o golpe de 64, no qual tem atuação apagada, pois estava no burocrático posto de subchefe do Departamento de Provisão Geral do Exército, assume o Gabinete Militar e a Secretaria do Conselho de Segurança Nacional no governo Castello Branco, ao mesmo tempo em que Golbery cria e dirige o Serviço Nacional de Informações – o SNI, de triste memória. Em seguida, pouco antes da posse de Arthur da Costa e Silva – o segundo general presidente, expoente da linha dura, que afasta a "Sorbonne" do centro do poder –, é nomeado ministro do Superior Tribunal Militar (STM).
Em 1969, aposenta-se no STM e passa para a reserva, depois de uma pancreatite que quase o matou. É o período do auge da ditadura militar e de seu obscurantismo: com base no AI-5, baixado em dezembro de 1968, cassam-se parlamentares e ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), professores são expulsos das universidades, a imprensa e as artes são censuradas, a tortura alastra-se nos quartéis e presos políticos começam a desaparecer. Escolhido por uma inédita votação entre oficiais-generais das três armas para ocupar a presidência, após a isquemia cerebral que afastou Costa e Silva, Emílio Garrastazu Médici convida Geisel para outra presidência, a da Petrobras. Será nesse posto que ele reunirá colaboradores civis, como Shigeaki Ueki e Humberto Barreto, e militares, como Moraes Rego e Heitor Aquino, que mais tarde fariam parte de seu governo, e iniciará sua preparação para ser o próximo ditador de plantão. Quem garante esse desígnio é ninguém menos que o ministro do Exército de Médici: seu irmão Orlando Geisel.
II PND
De acordo com Elio Gaspari, o Geisel que se prepara, aos 66 anos, para assumir o comando do país era um homem "sem prazeres nem sonhos, regido por hábitos e obrigações". Era também um desconhecido dos brasileiros de então, como continua a ser para os jovens de hoje, já que nenhuma emissora de TV pensaria em fazer uma minissérie sobre um general da ditadura. Apesar de quase meio século de serviço público, ele não tinha equipe nem projeto, mas iria delineá-los a partir daquela "cabeça racional, nacionalista, autoritária e moralista", segundo Gaspari.
Anunciado oficialmente por Médici em junho de 1973, demite-se da Petrobras no mês seguinte e recolhe-se a uma casa do Ministério da Agricultura no Jardim Botânico, no Rio de Janeiro. Auxiliado por Golbery, mentor do projeto de abertura, pelo coronel Moraes Rego e pelo capitão Heitor Aquino, escolhe os 20 ministros em pouco mais de dois meses. Na equipe se destacariam Golbery no Gabinete Civil e o general Hugo Abreu no Gabinete Militar. No Ministério do Exército, Geisel recusa-se a manter o irmão, que morreria em 1979 sem nunca mais visitá-lo. Nomeia para o cargo o general Dale Coutinho, que, entretanto, morre meses depois e é substituído por Sylvio Frota, o antagonista da distensão política. No Ministério da Justiça, coloca um anticomunista ferrenho, Armando Falcão, que se notabilizaria pelo bordão "nada a declarar" nos contatos com a imprensa e por emprestar seu nome para a draconiana lei de propaganda política na TV, que permitia apenas a exibição de uma foto 3x4 e o currículo resumido de cada candidato. A ala nacionalista dos empresários estava representada por Severo Gomes no Ministério da Indústria e Comércio (que ocupara a pasta da Agricultura no governo Castello Branco), responsável pela criação do Proálcool, mas que se demitiria antes do final do governo, rompendo com os militares.
Finalmente, os ministros da Fazenda, Mário Henrique Simonsen, do Planejamento, João Paulo dos Reis Velloso, das Minas e Energia, Shigeaki Ueki – conhecido como o "japonesinho do Geisel" – e das Relações Exteriores, Antônio Azeredo da Silveira, seriam os encarregados de encontrar meios, dentro e fora do país, para enfrentar o que Gaspari chamou de "mãe de todas as encrencas": nos últimos três meses de 1973, o preço do petróleo saltara de US$ 2,90 para US$ 11,65 o barril.
O Brasil de então estava longe da proclamada auto-suficiência atual: importava 80% do petróleo que consumia e, na ausência das grandes hidrelétricas posteriormente construídas, dependia de combustíveis fósseis para 44% de seu consumo de energia elétrica. Dessa equação nasceriam o II PND e a política externa "pragmática e responsável", o primeiro para planejar as grandes obras de infra-estrutura e de ampliação da matriz energética para o álcool e para o átomo – e a segunda para bajular os árabes e outros países produtores, que nadavam nos petrodólares necessários ao financiamento dos projetos. O próprio Geisel explica, no depoimento ao CPDOC, sua opção pelo crescimento naquela conjuntura adversa: "Não havia no país capitais disponíveis. Existiam ricos, mas estavam pouco dispostos a enfrentar o problema do desenvolvimento. Coube então ao governo, com os meios de que podia dispor, inclusive o crédito externo, assumir a tarefa". E completa: "Simonsen arrancava os cabelos e vinha a mim com o problema da inflação. Mas nosso problema número 1 não era esse e sim o de desenvolver o país. Para tanto tivemos de recorrer ao crédito externo. Havia muito dinheiro disponível no exterior, os célebres petrodólares. E o Brasil tinha muito crédito". Os efeitos colaterais dessa estratégia logo se fariam sentir: endividamento que sufocaria o país nos 20 anos seguintes, crescimento do papel do Estado na economia e carestia de vida. Esta última teria sérias e imediatas conseqüências políticas.
Pacote de Abril
Na eleição para a Câmara dos Deputados e um terço do Senado, em 1974, esperava-se mais uma tranqüila vitória da Aliança Renovadora Nacional (Arena), partido de sustentação do regime militar, criado em 1966. Com os partidos de esquerda banidos e seus líderes exilados havia dez anos, o único opositor consentido, o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), era tão frágil que havia sido formado com parlamentares emprestados pela Arena. Também eram conhecidos como os partidos do "sim" (MDB) e o do "sim, senhor" (Arena).
Assim, houve um terremoto quando as urnas se abriram: o MDB elegeu 16 senadores, dez a mais que a Arena, obteve maioria em algumas Assembléias Legislativas, inclusive na de São Paulo, e avançou para mais de um terço das cadeiras na Câmara dos Deputados. Explicando ao povo pela televisão o efeito da inflação sobre os salários congelados, a oposição obteve uma vitória consagradora, que se repetiria dois anos depois nas eleições municipais de 1976, quando ficou com as maiores prefeituras do país – à exceção das capitais, cujos prefeitos eram nomeados.
Acuado pelos sucessivos desastres eleitorais, Geisel partiu para a ignorância: em 1977, decretou o recesso do Congresso com base no AI-5 e editou o Pacote de Abril, que mantinha como indiretas as eleições para governador, criava a figura do senador "biônico" (eleito indiretamente), ampliava para seis anos o mandato do próximo presidente da República e mudava o critério de composição das bancadas na Câmara dos Deputados, o que até hoje causa a sub-representação de eleitores dos estados do sul e sudeste em relação a outras regiões do país.
Por outro lado, em 12 de outubro desse ano, demite Sylvio Frota, que galvanizava a insatisfação de parte da tropa com o fim da censura à imprensa e das torturas. O país fica 24 horas em suspense, enquanto Geisel e Frota disputam o apoio dos demais generais em Brasília, mas ao final do dia estava afastado o principal obstáculo para fazer de João Baptista de Oliveira Figueiredo, ministro-chefe do SNI, um sucessor que finalmente restituísse o poder aos civis.
Ao final de seu mandato, o metalúrgico Luiz Inácio da Silva – ainda sem o Lula incorporado ao nome – alçava-se das greves operárias do ABC para as capas de revistas como uma liderança política que sintetizava a herança do governo Geisel: era a cara de um país que tinha visto crescer o bolo sem dividi-lo e que não aceitava mais sufocar os gritos de liberdade e insatisfação de suas donas de casa, estudantes e trabalhadores. A abertura era irreversível, mas garantiria, também, a impunidade de assassinos e torturadores.