Postado em 05/09/2006
Com improviso e carisma, ex-pugilista reintegra excluídos através do esporte
EUGENIO DOS SANTOS
Nilson Garrido
Foto: Thais Taverna
Primeiro foi no vale do Anhangabaú. Depois, no Bexiga. E agora na Mooca, nos baixos da Radial Leste. O Cora Garrido Boxe, ou Projeto Viver, é uma inusitada mistura de instituição social, academia de ginástica, desportos e artes marciais que tenta a difícil tarefa de ressocializar as camadas mais pobres e marginalizadas da população de São Paulo por meio do esporte, atuando in loco, ou seja, embaixo de viadutos. Sem fins lucrativos, sem verbas públicas nem parceiros privados, o projeto sobrevive há dois anos unicamente de doações – e muito jogo de pernas e cintura. Em um ano e meio no Bexiga, reuniu quase 2 mil freqüentadores cadastrados e angariou não só aceitação como a integração com os moradores do bairro. E acaba de conseguir, com a subprefeitura da Mooca, uma área sob o Viaduto Alcântara Machado, na Radial Leste. Segundo o projeto aprovado, em breve o Viver poderá contar, além de área para academia de ginástica e ringue para a prática de artes marciais, também com duas quadras poliesportivas, pista de cooper, playground e até vestiários.
A iniciativa para a criação do projeto surgiu em maio de 2005, quando o ex-pugilista Nilson Garrido trabalhava como segurança no vale do Anhangabaú e, presenciando o cotidiano de pequenos delitos, uso de drogas e espiral de marginalização dos moradores de rua, decidiu encontrar um modo de colocar esse pessoal para se movimentar e praticar esportes. A idéia principal sempre foi levar os esportes às populações marginalizadas do centro de São Paulo.
Figura controvertida dentro do conturbado universo do boxe, Garrido teve uma carreira de "relativo sucesso", como define. Mas foi como professor e treinador que experimentou seus melhores – e piores – momentos dentro do esporte (ver texto abaixo). Garrido improvisou alguns equipamentos para treino, como pneus de caminhão que se transformaram em sacos de areia, ou molas e amortecedores usados como equipamentos de musculação, e instalou-os sob a passarela do Terminal Bandeira, em frente à estação Anhangabaú do metrô. "Comecei a fazer um trabalho social por impulso, intuitivamente, ilegalmente. Quando a polícia viu, me pediu explicações, e até fui parar na delegacia." Foi quando surgiu a ajuda estratégica de Corina Batista de Oliveira, a Cora, como prefere ser chamada, que encampou a iniciativa de Garrido e ajudou-o a institucionalizar o Viver.
Cora, que responde pela parte social do projeto, tem 56 anos e é funcionária pública do Centro de Vigilância Sanitária, além de integrante do Conselho de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra do Estado de São Paulo. "A idéia de Garrido era oferecer a prática de esportes como pretexto para atrair populações em extrema vulnerabilidade social, principalmente moradores de rua, albergados, catadores de material reciclável, crianças e adolescentes em situação de risco, e promover ações sociais. Nossa iniciativa foi requisitar formalmente o espaço sob a passarela", diz ela. Como explica o professor Garrido, o projeto se baseava na idéia de que quem pratica esportes tende a se valorizar, afastar-se de drogas e vícios e estabelecer objetivos. "Quem treina não se entrega. A missão do projeto é reciclar pessoas."
Apresentação
Em janeiro de 2006, quando a prefeitura solicitou a área sob a passarela no Anhangabaú para reformas, o grupo se transferiu para os baixos do Viaduto do Café, na esquina das ruas João Passalacqua e Santo Antonio, no bairro do Bexiga. Com um espaço de quase 2 mil metros quadrados para ocupar, Garrido levou seus equipamentos improvisados, acrescentando um ringue de boxe que estava em sua academia na zona leste. No Bexiga, a insólita trupe atraiu a curiosidade dos moradores do bairro. O início foi um pouco mais conturbado. O local era utilizado como depósito de recicláveis e também como estacionamento clandestino, e eles sofreram ameaças e tentativas de expulsão. Sem se intimidar, o ex-pugilista pendurou uma placa com a autorização da prefeitura e seguiu adiante, apresentando-se para associações de bairro e outras lideranças comunitárias do Bexiga para explicar as intenções do projeto.
"Hoje a relação com a comunidade é 100%", garante Garrido. Alguns moradores da região começaram a freqüentar a academia e as doações foram aumentando – alimentos, móveis, roupas, calçados, brinquedos, eletroeletrônicos, computadores, etc. Foi também organizado um sistema de coleta de comida em restaurantes da região e cerca de 30 refeições são distribuídas diariamente. "Muitos donos de restaurante não gostam de jogar comida fora, com tantas pessoas passando necessidade. Mas também não a distribuem, para evitar o aglomeramento na porta dos estabelecimentos, e aceitam a parceria", explica Cora.
O visual inusitado, com ringue e equipamentos improvisados sob o viaduto, atraiu também a atenção da mídia e de interessados por esporte. Quando o Viver apareceu no programa "Pânico!", no final do ano passado, a rede de academias Runner doou equipamentos seminovos no valor aproximado de R$ 15 mil. Com a academia aparelhada, cresceu a freqüência. Hoje o projeto conta com luz, água, sala de leitura, biblioteca com 2 mil volumes, brinquedoteca e computadores, e tem cerca de 1,8 mil freqüentadores cadastrados. Diariamente passam por lá, das 8h30 às 23h00, quase uma centena de pessoas. Os que podem contribuir pagam uma taxa mensal de R$ 20, muito inferior aos R$ 100, em média, que cobra uma academia.
Integração
Jaílton de Jesus de Souza é o monitor que está há mais tempo com Garrido. Sua entrada no projeto foi motivada pelo interesse por boxe. Aluno dedicado, trabalhava na reciclagem de lixo de dia, treinava à noite e dormia no barracão. Há cinco meses, atua também como instrutor de boxe na Biocompany, uma academia na Rua Augusta, onde dá aulas três vezes por semana.
"A freqüência, hoje, é assim: uns 30% são moradores da região do Bexiga, em busca de esporte. Outros 30% vêm pelo boxe, amadores, profissionais, ex-boxeadores. Outros 30% são albergados ou moradores de rua. Uns vêm pela comida, outros para esfriar a cabeça, ler um livro, conversar, descansar. É um refúgio para eles", explica Aparecido Lúcio, outro monitor do projeto.
Os exemplos são variados. Como Carlos da Cruz "Balboa", um garoto de 12 anos, filho de uma família de classe média do bairro, que faz aulas de boxe no Viver. Ele conta que teve de insistir muito para que seus pais dessem permissão para treinar no local. Ou Alaor Vieira, 52 anos, corpo tatuado e moldado por fisicultura, que trabalha como produtor de eventos. "Venho pela energia, pela força que existe aqui. É diferente."
Nesse período no Bexiga, o Viver também promoveu uma série de eventos, como campeonatos de boxe amador, festas, apresentações de capoeira, oficinas de artesanato, cursos de reciclagem de materiais, além de palestras sobre geração de renda, orientação profissional, moradia popular e prevenção às drogas. Promoveu a grafitagem artística dos baixos do viaduto e até um desfile de moda, com a participação de moradores de rua como modelos. Três clipes foram filmados no espaço, entre eles o da cantora Negra Li. E também, entre junho e agosto, a primeira edição do Som(Ar), um curso de discotecagem itinerante, que deve ser levado a diferentes comunidades, idealizado por Geórgia Martins, moradora do bairro. O projeto oferecia, em junho, prática de musculação, cursos de boxe, reforço escolar e introdução à informática. Mas por lá também já passaram cursos de jiu-jítsu, capoeira e até línguas, sempre com instrutores voluntários.
A segunda unidade, que está funcionando desde junho na altura do número 1.200 da Radial Leste, na Mooca, teve o apoio da subprefeitura, que forneceu a iluminação e providenciará água e obras de infra-estrutura. A área, denominada Primeiro Núcleo da Zona Leste, visa atrair moradores em situação de rua e demais interessados na prática de esportes. Segundo o autor do projeto de engenharia, Francisco Carlos Ricardo, coordenador de projetos e obras da subprefeitura da Mooca, ele terá, na primeira etapa, área para academia e duas quadras poliesportivas. Posteriormente, deverá contar com campo de bocha, playground, vestiários feminino e masculino, pista de skate e de cooper. O projeto será implantado em etapas, e outros parceiros estão sendo estudados para as áreas ainda vazias. "O decreto nº 48.378, de maio deste ano, permite ações para a ocupação dos baixos dos viadutos", explica ele. São áreas constantemente invadidas, principalmente por carroceiros que utilizam o espaço para realizar triagem de lixo de forma inadequada, e até por desmanches de carros.
Tempos modernos
Nos baixos do Alcântara Machado, ao atravessar uma quadra improvisada, onde alguns garotos jogam futebol, chega-se ao "escritório" de Garrido. Ao fundo, estão montadas a biblioteca e a sala de leitura, os computadores, as brinquedotecas, os dois ringues e os aparelhos para musculação. Tudo bem organizado, limpo e iluminado, com tapumes e estantes de livros à guisa de divisórias entre os ambientes. Ao ver a máquina fotográfica, um senhor se alvoroça. É Ayrton Magalhães, 53 anos, repórter fotográfico que nos anos 1970 trabalhava em veículos como "Folha de S. Paulo" e a revista "IstoÉ". Nos anos 1980, realizou principalmente fotos de cena para filmes, entre eles longas-metragens de Hector Babenco e Ana Carolina. Com a crise do cinema nacional, Ayrton passou a viver de trabalhos eventuais como fotógrafo e mais tarde optou pela informática – fez cursos, comprou uma ilha de edição e uma câmera de vídeo. Em cinco anos, "faliu de vez", como resume. Foi quando um amigo lhe indicou o Projeto Viver, para onde levou dois computadores, câmera de vídeo, de foto, CDs e livros. Talvez seja uma das primeiras ilhas de edição de vídeo a operar em tais condições em todo o mundo. Embaixo do viaduto, com sua tecnologia moderna, já apelidaram Ayrton, carinhosamente, de "Bill Gates".
Natural de Olinda, 50 anos, médio ligeiro, Nilson Garrido ganhou notoriedade no restrito círculo do boxe em São Paulo, principalmente como professor e treinador. Nos anos 1990, mestre Garrido montou em Itaquera, na zona leste de São Paulo, uma academia de boxe que utilizava técnicas nada ortodoxas de treinamento – equipamentos improvisados, como geladeiras ou pneus de caminhão que se transformaram em sacos de areia, eixos de caminhão usados como halteres e amortecedores no lugar de equipamentos de musculação. Além disso, os alunos também treinavam quebrando pedras em uma pedreira abandonada. "Antes de Sylvester Stallone fazer isso no filme, eu já fazia. Fui discípulo do legendário Baltazar. O que importa é a vontade."
Como treinador, Garrido conseguiu, com seu estilo rústico de boxe, fazer um campeão brasileiro e sul-americano, na categoria meio-pesado – seu filho e pupilo, Fabio Garrido. Nessa função também conheceu a face mais dolorosa que um esporte como o boxe pode apresentar a quem o pratica. Em 2004, Fabio foi duramente golpeado e ficou desmaiado no ringue, recebendo oxigênio, sem esboçar nenhuma reação. Internado, passou 15 dias em uma UTI, recuperou-se e voltou a lutar. É principalmente devido a essa experiência que Garrido credita sua conversão às causas sociais.
A expulsão de populações pobres do centro
Em junho foi lançado em livro um dossiê, elaborado pelo Fórum Centro Vivo, que reúne documentos sobre a situação de violação dos direitos humanos de cinco grupos que moram ou dependem do centro de São Paulo para sobreviver: sem-teto, catadores de material reciclável, população de rua, crianças e adolescentes em situação de risco e trabalhadores ambulantes. O dossiê, com 360 páginas, é endossado por 81 entidades, entre pastorais e organizações de base, organizações não-governamentais de direitos humanos, e tem por objetivo discutir propostas e políticas para a região central da cidade. O texto está disponível na internet (http://dossie.centrovivo.org) e foi encaminhado a diversas autoridades municipais, estaduais e federais.
Como registra o documento, já há algum tempo diversos projetos e propostas de revitalização da área central de São Paulo vêm sendo parcial ou pontualmente implementados pelos diversos governos locais. A gestão Marta Suplicy instituiu o Programa Ação Centro e, não obstante a criação de canais de interlocução com entidades e a previsão de produção de habitação social na região, por intermédio do Programa Morar no Centro, é alvo de críticas devido à prioridade dada aos aspectos da valorização imobiliária da região e à baixa proporção de recursos destinada a projetos de inclusão social.
Já a atual gestão Serra/Kassab é acusada de buscar a revitalização do centro por meio de verdadeiro processo de "higienização" ou "limpeza social" da região. Exemplos disso seriam a construção de rampas e muros sob viadutos, o despejo, em prédios invadidos, e as ações de repressão ao comércio ambulante.