Postado em 05/09/2006
De grão em grão, cresce a polêmica sobre sementes modificadas
EVANILDO DA SILVEIRA
Nove anos depois de ter sido autorizado o cultivo comercial da primeira planta transgênica no Brasil, a soja Roundup Ready, da Monsanto, a polêmica sobre o assunto está mais viva do que nunca no país. A liberação de mais uma espécie desse tipo, o milho LibertyLink, da Bayer CropScience, no dia 16 de maio passado, só veio reacender a controvérsia. A própria Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), responsável pela Política Nacional de Biossegurança (PNB) e pela concessão de licenças aos organismos geneticamente modificados (OGM), está dividida. De um lado – a maioria – estão os que defendem essa nova tecnologia e acreditam que o Brasil não pode abrir mão dela. De outro, os que pregam cautela e exigem atenção para os potenciais riscos que as novas espécies geradas por engenharia genética podem trazer à saúde humana e ao meio ambiente.
Criada pela lei nº 8.974, de 5 de janeiro de 1995, a CTNBio somente passou a funcionar com regularidade dez anos depois, a partir de sua reestruturação pela lei nº 11.105, de 24 de março de 2005. Em seu artigo 10, essa norma legal define o órgão como uma instância colegiada multidisciplinar de caráter consultivo e deliberativo, integrante do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), que tem como objetivo assessorar tecnicamente o governo na formulação da política relativa aos OGM e seus derivados, bem como no estabelecimento de normas de segurança referentes à autorização de atividades que envolvam pesquisa e uso comercial desses organismos.
A lei determina ainda que o órgão acompanhe o desenvolvimento e o progresso técnico e científico nas áreas de biossegurança, biotecnologia, bioética e afins, "com o objetivo de aumentar sua capacitação para a proteção da saúde humana, dos animais e das plantas e do meio ambiente". A CTNBio é composta de 27 membros titulares e 27 suplentes – "cidadãos brasileiros de reconhecida competência técnica, de notória atuação e saber científicos, com grau acadêmico de doutor e com destacada atividade profissional nas áreas de biossegurança, biotecnologia, biologia, saúde humana e animal ou meio ambiente" –, designados pelo ministro da Ciência e Tecnologia.
Sua primeira reunião foi realizada em 15 de fevereiro de 2006 e desde então vem acontecendo uma por mês. Nesse período, a CTNBio tem analisado os pedidos de autorização de uso de transgênicos para fins de pesquisa ou comerciais. Foram aprovados aproximadamente 180 pleitos distintos de pesquisa e apenas uma licença comercial, a do milho da Bayer. No entanto, essa liberação está suspensa por decisão da Justiça Federal do Paraná, que atendeu à solicitação de liminar das organizações não-governamentais (ONGs) Terra de Direitos, Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa (AS-PTA) e Associação Nacional dos Pequenos Agricultores (Anpa).
Resistência a herbicida
O milho LibertyLink tem em seu genoma um gene da bactéria natural do solo Streptomyces viridochromogenes, inserido pelos cientistas da Bayer. Ele concede maior resistência a um herbicida à base de glufosinato de amônio, produzido pela própria empresa alemã, para combater plantas daninhas. Os ambientalistas alegam que, como o produto não afeta o milho, os agricultores vão usá-lo em grandes quantidades, colocando em perigo o ambiente e a saúde humana.
A Bayer nega a existência de risco. "Essas alegações não têm fundamento, e os estudos avaliados pelos órgãos reguladores mais exigentes do mundo, incluindo os do Brasil, reconhecem as sementes LibertyLink como seguras", explica o gerente de tecnologia da área de BioScience da Bayer CropScience, André Abreu. "O uso e consumo do milho LibertyLink são autorizados em países como Estados Unidos, Canadá, Japão e Argentina, entre outros. Vale enfatizar também que a comercialização do produto foi aprovada em todos os países da União Européia."
Seja como for, essa liberação gerou controvérsia sobre o trabalho da CTNBio. Para a maioria de seus componentes, ela vem cumprindo sua função. Para outros, nem tanto. Entre os primeiros está a bióloga e professora de bioquímica da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) Patricia Machado Bueno Fernandes, membro do colegiado como especialista em meio ambiente. "Talvez pareça que o órgão funciona de maneira lenta, mas havia uma grande quantidade de processos parados", diz. "Temos trabalhado com afinco nas subcomissões setoriais e levado os resultados para a plenária e, com isso, avançamos bastante na pauta."
O diretor do Laboratório de Imunologia Viral do Instituto Butantan, Carlos Augusto Pereira, doutor em microbiologia, que foi membro titular da comissão como especialista da área animal até maio, também avalia que o órgão vem realizando seu trabalho de maneira satisfatória. "Ele vem desempenhando um papel importante, promovendo, mesmo que indiretamente, uma ampla discussão sobre o tema ‘transgênicos’. É um passo decisivo para o controle e o monitoramento do uso dos organismos geneticamente modificados", explica.
Dentre os que não concordam com essa avaliação está o agrônomo Fabio Dal Soglio, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e presidente da Associação Brasileira de Agroecologia (ABA), também membro titular do colegiado como especialista em agricultura familiar. "A CTNBio deveria ser formada por um grupo de cientistas que representasse diferentes áreas do conhecimento, que definiria, com base no que existe de mais atual em biossegurança, as normas de procedimentos de pesquisa com organismos geneticamente modificados", diz.
Sem normas
Na prática, segundo Dal Soglio, isso não funciona bem assim. "A comissão ainda não fixou as normas de biossegurança, conforme manda a lei", alerta. "Também não usa o conhecimento atual para analisar os pleitos e recomendou a liberação comercial de variedade transgênica, mesmo com indícios de que existem problemas de biossegurança que deveriam ser considerados, conforme o princípio da precaução."
O agrônomo e professor titular da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Rubens Onofre Nodari, representante do Ministério do Meio Ambiente (MMA) no colegiado, também acusa o órgão de não cumprir seu papel e desrespeitar a lei. "O decreto 5.591/2005 concedeu o prazo de 120 dias para a revisão das normas da CTNBio, e o processo ainda não foi concluído, decorridos 19 meses", critica. "Além disso, a análise da avaliação de risco para processos de liberação comercial não é feita."
A questão mais grave, no entanto, segundo ele, está no exame dos processos, no qual "o avanço tecnológico em si tem sido mais importante que os riscos ou efeitos adversos que um produto pode causar ao meio ambiente ou à saúde humana". Nodari atribui esses problemas "à falta de discussão científica sobre as informações ou dados apresentados nos processos e à não observância do princípio da precaução, determinado em lei".
O presidente da comissão, Walter Colli, que é médico bioquímico e professor titular da Universidade de São Paulo (USP), rebate essas acusações. Ele garante que o princípio da precaução – que, grosso modo, recomenda que se houver alguma dúvida quanto aos riscos referentes aos transgênicos não se deve liberá-los – não é ignorado. "Mas esse princípio é extremamente elástico e depende da interpretação do freguês, o que pode levar até à inação, isto é, a não fazer nada", diz. "Por exemplo, o automóvel teria sido inventado se se soubesse que ele iria produzir tantos acidentes de tráfego no Brasil? Ou o país é que não deveria ter sido descoberto em 1500, por precaução, por produzir tantos acidentes de tráfego no século 21?"
Colli também não tem papas na língua para responder àqueles que criticam o órgão pelo fato de ainda não ter elaborado as normas de biossegurança e monitoramento determinadas pela lei. "Existe um tipo de pessoa que insiste em fazer regras e mais regras para justificar sua propensão de jamais decidir", afirma. "É o chamado animus legiferandi. Para que estabelecer regras de monitoramento e coexistência sem antes aprovar [a liberação de OGM]? Para perder tempo? A CTNBio está elaborando essas regras, que servirão, pelo menos, para todos os tipos de milho."
Tesouras biológicas
A história dessa polêmica tecnologia começou em 1970, quando Hamilton Othanel Smith e Kent Wilcox descobriram as enzimas de restrição, espécies de tesouras biológicas que permitem cortar em pedaços o DNA (código genético de todos os seres vivos), isolando trechos ou genes dele. Isso quebrou a barreira genética entre as espécies, tornando possível, teoricamente, a transferência de pedaços do genoma de umas para outras. Em 1974, os pesquisadores Stanley Cohen, de Stanford, e Herbert Boyer, da Universidade da Califórnia, colocaram isso em prática pela primeira vez, combinando o material genético de um anfíbio com o de uma bactéria (Escherichia coli). Estava criada a chamada técnica do DNA recombinante ou "engenharia genética", que abriu caminho para os transgênicos, organismos que têm um gene de outra espécie inserido em seu genoma.
Desde então, essa tecnologia não parou de se desenvolver e de ser usada. Em 1982 foi produzido um animal com ela (um camundongo) e iniciou-se a comercialização da primeira droga recombinante, a insulina humana, obtida por meio de uma bactéria na qual foi inserido um gene humano responsável pela produção desse hormônio. No ano seguinte, surgiu a primeira planta geneticamente modificada, o tabaco GM, e em 1994 começou a ser vendido nos supermercados dos Estados Unidos o primeiro produto transgênico, o tomate Flavr Savr.
No Brasil, a primeira planta desse tipo liberada, a soja Roundup Ready, nunca chegou de fato a ser comercializada livremente. Uma série de ações, impetradas na Justiça por movimentos ambientalistas e de defesa dos consumidores, impediu seu plantio legal. No entanto, ela passou a ser cultivada ilegalmente, em especial no Rio Grande do Sul, o que obrigou o governo a editar uma medida provisória, em 2003, liberando a comercialização da safra. Por tudo isso, a polêmica nunca arrefeceu.
Os defensores dos OGM citam os pontos positivos dessa tecnologia para explicar sua posição, entre eles o aumento da produtividade nas safras, maior resistência das plantas às pragas – o que reduziria o uso de agrotóxicos –, a simplificação das operações agrícolas e a diminuição da fome no mundo. "A maioria das pessoas só pensa em transgênicos como plantas produtoras de toxinas que matam insetos", diz a bióloga Patricia. "Nem sequer notam a grande quantidade de produtos no mercado que são obtidos transgenicamente, como fármacos, cosméticos, produtos de limpeza e vacinas."
Efeitos desconhecidos
Quem é contra essa tecnologia, por sua vez, ressalta seus pontos negativos, como os possíveis danos à saúde humana e animal, a resistência a alguns antibióticos, reações alérgicas, alterações no metabolismo humano e riscos imprevisíveis ao ambiente. Nodari, da UFSC, aborda outros aspectos da questão e amplia a lista de desvantagens. Uma delas é o fato de os produtos serem patenteados. "São, portanto, de altíssimo interesse econômico, além de gerar dependência tecnológica dos agricultores em relação às grandes empresas fornecedoras de sementes", explica. "Sem mencionar que não são realizados estudos de impacto ambiental ou sobre situações de risco à saúde humana, o que deixa desprotegidos usuários e consumidores. Também não há monitoramento pós-liberação comercial nem rotulagem – em outras palavras, não há como conhecer os efeitos causados por eles."
Para Colli, ser contra ou a favor dos OGM é uma falsa questão. "De fato, há grupos que são contrários a eles, por princípio, como é o caso do Greenpeace e seus simpatizantes", diz. "Eles fazem tamanho bulício que quando se reage a eles parece que há favoráveis versus contrários. Seus argumentos às vezes irritam, e as reações parecem excessivamente intensas. Não se pode, entretanto, ser a favor ou contra uma metodologia, pois é disso que se trata. É como se fosse possível ser a favor ou contra a cirurgia. Veja que a mesma coisa vem ocorrendo no debate acerca do uso de células-tronco embrionárias para pesquisa."
De acordo com Colli, como se trata de uma técnica nova, é preciso analisar caso a caso. Ele lembra que por meio da manipulação genética produz-se, por exemplo, a insulina humana, que não provoca reação alérgica alguma nos diabéticos, os quais até bem pouco tempo atrás tomavam a insulina de porco, semelhante à humana, mas não igual. "Isso sem mencionar o sabão em pó que se usa para lavar roupas e que contém muitas enzimas proteolíticas e lipolíticas transgênicas", acrescenta. "E a quimosina, com a qual se faz o queijo, até o dos franceses? É transgênica. E as vacinas contra câncer de colo uterino, hepatite B, dengue, gripe aviária? São todas geneticamente manipuladas, porque se revelam mais seguras que as vacinas atenuadas. Todos esses produtos são transgênicos, ou derivados deles, não polêmicos."
O Greenpeace nega que seja contra os OGM por princípio e diz que não combate os de uso médico, que são testados, controlados e trazem muitos benefícios. "Somos contra sua utilização na agricultura, em ambiente aberto, sem controle", explica Sérgio Leitão, diretor de Políticas Públicas da organização. "Não há garantia de que as plantas transgênicas não irão contaminar as culturas orgânicas pela polinização." Em outras palavras, Leitão acredita que as espécies transgênicas podem cruzar com as não-transgênicas. Por isso, diz ele, é preciso controle e monitoramento para garantir a coexistência dos dois sistemas de produção.
Difícil convivência
Complicada mesmo parece ser a convivência num mesmo órgão de defensores de posições tão antagônicas. O exemplo mais recente disso foi o pedido de afastamento da CTNBio de um de seus membros titulares, no dia seguinte à concessão de licença comercial ao milho LibertyLink. A pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz Lia Giraldo da Silva Augusto, representante do Fórum Brasileiro de Organizações Não-Governamentais, decidiu se desligar e saiu atirando. Numa carta encaminhada ao presidente da comissão e aos ministros da Ciência e Tecnologia, Sergio Rezende, e do Meio Ambiente, Marina Silva, que a nomeou para o cargo, ela acusa a comissão de praticar "uma série de artimanhas obscurantistas com o propósito de considerar as questões de biossegurança como dificuldades ao avanço da biotecnologia".
Segundo Lia, o colegiado é composto por uma maioria de autoridades em biotecnologia, interessadas diretamente no seu desenvolvimento. "Há poucos especialistas em biossegurança, capazes de avaliar riscos para a saúde e para o meio ambiente", afirma. "O comportamento da maioria de seus membros é de crença em uma ciência da monocausalidade. Entretanto, estamos tratando de questões complexas, com muitas incertezas e com conseqüências sobre as quais não temos controle, especialmente quando se trata de liberação de OGM no ambiente."
Colli contesta as afirmações de Lia. A seu ver, a comissão vem cumprindo sua função e "a maioria de seus membros" é formada por cientistas responsáveis. "Embora respeite a posição dela, devo dizer que a considero arrogante, porque ela não está levando na devida conta a história de cada um dos membros da CTNBio e suas competências", critica. "É muita pretensão achar que tem razão, juntamente com mais quatro votantes, contra 17 com opinião oposta e que poderiam ser 20 se três não tivessem faltado por problemas particulares." Colli se refere à votação da liberação do milho transgênico da Bayer, que teve 17 votos a favor, quatro contra e um pedido de mais estudos.
Em sua opinião, houve muito alarde sobre a saída de Lia. "Foi tanta propaganda em torno de seu afastamento que dá a impressão que todos os que ficaram são incompetentes", diz. Ele também afirma que os reais motivos da saída de Lia não têm a ver com os procedimentos da comissão. "A conselheira Lia Giraldo não se demitiu em protesto, pois sabíamos que ela estava para sair havia seis meses", afirma. "A razão de seu afastamento, segundo ela sempre nos disse, era uma mudança para o exterior, para a Inglaterra, talvez, para um pós-doutorado. Ao se demitir, provavelmente tomada pela emoção da aprovação do primeiro milho, ela aproveitou e ligou as duas coisas."
Lia explica que, de fato, anunciou em novembro de 2006 que se afastaria do órgão, mas que só faria isso depois de concluir todos os pareceres que estavam sob seus cuidados, em especial o do milho da Bayer. "Eu queria inserir em meu parecer sobre esse produto as contribuições da audiência pública relativa ao assunto, que ocorreu em março de 2007", explica. "Como a secretaria da CTNBio disponibilizou (incompletamente) os documentos dessa audiência para todos os seus membros apenas na reunião de abril, só pude entregar meu parecer em maio. Essa é a razão de eu ter me desligado somente nesse mês, apesar de ter anunciado a saída em novembro de 2006."
A ex-conselheira reitera, no entanto, as causas de seu afastamento. "As razões de meu desligamento já estavam definidas desde aquela época", garante. "Como pode ser visto em minha declaração de motivos, nem mesmo menciono o problema do milho (que seria apenas um agravante a mais entre as razões já expostas)." Lia diz ainda que não há arrogância em suas críticas, "apenas o reconhecimento e a indignação ante posturas cientificistas sobre questões tão importantes para a sociedade". De qualquer forma, nada indica que sua saída vá servir para acalmar os ânimos em relação aos transgênicos. As discussões deverão ser acirradas nas próximas reuniões da CTNBio, que tem em sua pauta dez pedidos de licença de OGM para analisar.