Postado em 05/09/2006
Tecnologia e novas modalidades de serviços impõem mudanças no mercado de trabalho
OSWALDO RIBAS
Basta abrir os cadernos de classificados de empregos de qualquer dos principais jornais do país para observar anúncios de vagas no mercado de trabalho que há dois, três anos seriam quase obra de ficção científica. Uma escola virtual de administração de empresas busca, por exemplo, um professor de ensino a distância; já a corretora de valores quer um especialista em inteligência de mercado; outra empresa, voltada a soluções para web, seleciona webmasters com especialização em VoIP. Vira-se a página e uma transportadora contrata para início imediato um diretor de logística para vendas online, enquanto uma empresa que aluga escritórios virtuais quer um gerente on demand (que atua profissionalmente apenas em determinados períodos).
Na outra ponta, nesses mesmos classificados de jornais é raro, quase impossível, deparar com anúncios de vagas para caixa de banco, telefonista, engenheiro do setor têxtil, cobrador de ônibus, embalador para linha de montagem da indústria alimentícia. Ocupações como essas, que já empregaram milhões de pessoas, são hoje consideradas atividades profissionais em risco de extinção.
Num movimento que lembra o que vem ocorrendo com algumas espécies animais e vegetais que não estão conseguindo se adaptar às mudanças climáticas e à degradação ambiental, as transformações tecno-sociais no Brasil estão tendo um efeito avassalador sobre o fenômeno da empregabilidade, termo que exprime o grau de capacidade dos indivíduos ou categorias profissionais de encontrar trabalho no mercado.
Num ambiente socioeconômico em contínua mudança, uma profissão ou ocupação que até há pouco tempo poderia ser considerada estável, sólida, pode agora estar se transformando num beco sem saída profissional. Recentemente, a empresa LP Displays, líder nacional na fabricação de tubos de imagem para televisão, fechou as portas e demitiu todos os funcionários em São José dos Campos, Manaus e Recife. O motivo? Os tubos de TV ficaram obsoletos depois do surgimento das TVs de plasma e de cristal líquido (LCD). As vendas despencaram, e a empresa se tornou inviável financeiramente. A saída foi fechar suas fábricas no Brasil. Qual o futuro dos funcionários desse que até não muito tempo atrás era um promissor segmento de negócios?
"Os avanços tecnológicos constituem os principais fatores de mudança no mercado de trabalho", explica Marcia Machado de Campos, gerente-geral da Machado de Campos Consultoria em Recursos Humanos, especializada em recolocação profissional. A seu ver, contudo, essa não é a única causa do desaparecimento de algumas profissões e do surgimento de outras no mercado; a seu lado, a tecnologia tem também uma sociedade crescentemente baseada na prestação de serviços, e esses dois fatores, juntos, estão moldando a nova força de trabalho.
"Parte da mão-de-obra está sendo substituída pela internet, pelos robôs, pela automação, e parte está buscando alternativas criativas de trabalho, incluindo formas inéditas de empreendedorismo", acrescenta. "O funcionário que não está se dispondo a inovar, a reciclar seus conceitos e capacitações está fadado à morte profissional", sentencia.
Na avaliação dos especialistas, as profissões que irão ao poucos sumir do mercado são aquelas chamadas de intermediárias. Um exemplo disso são os carteiros, cuja categoria profissional, devido ao fácil acesso à internet, tende a encolher e perder importância. Assim é também com cargos bastante populares, como os de corretor de imóveis e agente de viagens, que estariam com os dias contados e também poderiam desaparecer do mercado de trabalho. Hoje, graças à tecnologia, argumentam os técnicos, é possível visitar virtualmente um imóvel pelo computador ou comprar um pacote turístico. Basta ter acesso à internet e uma placa de vídeo em 3D para poder ver, de casa ou do escritório, todos os cômodos de um apartamento ou hotel na tela do computador e ainda receber explicações sobre o imóvel ou roteiro turístico por e-mail. Até a aquisição do pacote turístico, com passagem aérea e estadia em hotel, já está disponível na internet por boleto virtual ou cartão de crédito.
Em breve, com a certificação digital, prevê-se que também as atividades dos cartórios de registro civil venham a ser executadas via web, o que, em tese, abre caminho para a venda e locação de imóveis pela internet, supostamente prescindindo das comissões dos intermediários. Seriam, assim, os cartórios outro setor a passar por profunda reestruturação?
Entre as ocupações que tendem a desaparecer, ou quase, do mercado de trabalho estão ainda a das telefonistas, que vêm sendo substituídas pelo atendimento eletrônico; a dos caixas de banco, devido ao surgimento dos caixas eletrônicos, do internet banking e agora do mobile banking; a dos arquivistas, que não têm mais lugar nos modernos bancos de dados, e até a das recepcionistas e secretárias. "Atualmente, há recursos disponíveis que dispensam a utilização em tempo integral de uma secretária, como o correio de voz, as agendas e correios eletrônicos e os celulares, que acessam diretamente a fonte, dispensando os intermediários de plantão", admite Marcia. Além disso, o mercado está cada vez menos formal, com um número menor de funcionários contratados pelo regime da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e mais prestadores de serviço na condição de pessoa jurídica, que arcam com sua própria carga tributária.
Duas perguntas básicas
"Quando avaliamos nossa situação no mercado de trabalho, temos de fazer duas perguntas básicas: já há máquinas desempenhando nossas funções? Nosso setor de atividades está sufocado por força de uma nova tecnologia ou uma concorrência imbatível? Se em uma delas a resposta for afirmativa, não adianta tapar o sol com a peneira, os riscos são dramáticos e para enfrentá-los é preciso pensar em soluções radicais", aconselha Sérgio Augusto Lopes, o principal executivo de recursos humanos da Qualicorp, que está entre os maiores grupos no Brasil do setor de seguros e benefícios.
Hoje em dia, por falta de orientação ou desconhecimento do mercado, Lopes diz ser comum ver economistas que ganham a vida como taxistas, pedagogas que vendem produtos de beleza de porta em porta ou operários da indústria automobilística que montam bancas em feiras livres. Bastante provável será presenciar diretores de empresas fabricantes de tubos de imagem também improvisando, muitas vezes na informalidade, seu ganha-pão.
"Com exceção de uma ínfima minoria, todo mundo tem de trabalhar e, certamente, quem está à procura de um emprego enfrenta hoje os concorrentes de carne e osso e também as máquinas", afirma Lopes. Para se enquadrar no perfil ideal exigido atualmente pelo mercado de trabalho, ele considera que, no mínimo, o funcionário precisa estar familiarizado com a internet e a informática, saber um segundo e um terceiro idioma, "que sempre ajuda bastante", e os que aspiram a empregos no setor de serviços têm também de estar sintonizados com novas necessidades da sociedade, que está se tornando mais complexa, mais velha e, por que não, mais rica.
Conforme sua percepção, há uma mudança de paradigma em curso no mercado de trabalho. "Estamos entrando numa era pós-moderna, de gestão do conhecimento, o que permite que tudo aconteça mais rapidamente", diz. "Se fica difícil para o profissional da área manter-se atualizado com o ritmo das mudanças, imagine então para as pessoas de modo geral. Muitas ocupações e profissionais estão se tornando obsoletos, mas há também uma vibrante onda de oportunidades para os que sabem para onde caminha o mercado de trabalho e estão se adiantando", acrescenta.
E para onde vai o gigantesco mercado brasileiro, em que aproximadamente 60 milhões de pessoas, das mais diferentes camadas sociais e competências, negociam o preço de sua mão-de-obra, as contratações, os benefícios e também as demissões e rescisões trabalhistas?
"O mercado de trabalho espelha o desenvolvimento das forças produtivas de uma nação e, no Brasil, num ambiente de crescente globalização e concorrência em escala mundial, nota-se uma complexa rede de influências que está provocando o sucateamento de setores industriais inteiros, enquanto, por outro lado, há atividades agrícolas tradicionais se revalorizando, como a da cana-de-açúcar, e novos nichos de mercado se criando com a demanda por profissionais de setores estratégicos, como o de infraestrutura e energia", relata André Bocater, diretor-geral da Case Consulting, do grupo Catho, uma das maiores empresas de recrutamento e seleção do país, especializada em executivos.
"Vivemos no Brasil um momento muito especial. Se vemos desemprego estrutural de um lado, é interessante notar também que há um boom em vários setores antes adormecidos no país." Bocater cita a área de petróleo e gás, por exemplo, puxada evidentemente pela Petrobras, onde existe uma extraordinária demanda por engenheiros que tenham alguma expertise em jazidas petrolíferas ou exploração de gás natural.
"Meio ambiente é outro setor com absoluta necessidade de bons técnicos e especialistas; na agropecuária, principalmente agora, com a expansão do biodiesel, está ocorrendo um verdadeiro renascimento do agronegócio, no novo ciclo da cana-de-açúcar e outras commodities agrícolas, que muita gente considerava já quase extinto", explica.
Entusiasmado com o que chama de "momento fantástico" de profissionalização das empresas, em que não há mais espaço para o "jeitinho" ou a "gambiarra", Bocater enumera ainda outros setores importantes, como construção civil, mineração e turismo – com sua cadeia produtiva, que envolve a indústria hoteleira e de serviços –, os quais, segundo ele, poderão manter um crescimento estável da demanda por profissionais competentes pelos próximos 10 ou 15 anos.
"O brasileiro", acrescenta, "tem a vantagem de ser um profissional com excelente jogo de cintura, com vontade de vencer desafios, o que é um diferencial no mercado de trabalho que se globaliza. Aquela mentalidade de ter emprego fixo, com carteira assinada, no setor público, está acabando. Hoje, as extraordinárias possibilidades do setor privado são um chamariz, assim como, evidentemente, os altos salários de ocupações de maior nível técnico."
Para o professor José Pastore, da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (FEA-USP), contudo, o novo cenário que envolve a mão-de-obra brasileira apresenta uma intrigante dicotomia – desemprego convivendo com a incapacidade do mercado de encontrar profissionais qualificados para assumir determinados cargos, o que, em sua opinião, constitui um problema de graves conseqüências.
De acordo com suas pesquisas, os casos mais eloqüentes são os dos setores petroquímico, sucroalcooleiro e de construção civil. Ele afirma, por exemplo, que a Petrobras teme que a falta de profissionais qualificados inviabilize a implantação de projetos da empresa e, lá na frente, a impeça de crescer de forma consistente. Os produtores de cana-de-açúcar e etanol dizem que apenas um terço dos trabalhadores disponíveis têm condições de operar as modernas máquinas do setor e nelas fazer pequenos ajustes. Os empresários da construção civil revelam: falta mão-de-obra qualificada e até mesmo não-qualificada.
Na área de serviços, as deficiências da força de trabalho são crônicas e, segundo pesquisas do setor, milhares de vagas permanecem em aberto devido à escassez de pessoal adequado. Nesse campo, a falta de conhecimento do idioma inglês costuma ser um sério obstáculo. Segundo Pastore, num país em que 60% da população "é analfabeta funcional em português", seria demais querer que as pessoas soubessem inglês. Mas, na sua avaliação, é isso o que decide o futuro dos jovens e do próprio país.
Na China, ele cita, há cerca de 300 milhões de trabalhadores que falam ou estudam inglês. Na Índia, beneficiada nesse aspecto pela colonização britânica, o inglês é o primeiro idioma nacional. Nos países do Leste Europeu, o estudo do inglês é acelerado e generalizado entre os jovens. No Brasil, enquanto isso, as poucas empresas de call center que trabalham para o exterior encontram enorme dificuldade para preencher 100 ou 150 vagas com profissionais com real fluência na língua inglesa. "Por isso não podem crescer quanto o mercado permite", relata Pastore, acrescentando que "o entrave ao crescimento é o preço que o Brasil está pagando" por ter dado tão pouca atenção à educação de boa qualidade e à formação profissional.
CBO
Essa verdadeira revolução nas relações de trabalho, com o surgimento de novas ocupações e a extinção e criação de profissões, não está passando despercebida do governo. Os sinais desse processo no Brasil foram detectados no trabalho realizado para a Classificação Brasileira de Ocupações (CBO), lançada em outubro de 2002. A CBO é o documento utilizado por instituições como o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e o Ministério do Trabalho e do Emprego (MTE) para reconhecer, nomear e codificar os títulos e o conteúdo das ocupações do mercado brasileiro. Estiveram envolvidos no processo pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe), ligada à Universidade de São Paulo (USP), e o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai).
Segundo dados da CBO, existem no Brasil atualmente 3 mil ocupações catalogadas e quase 8 mil títulos agrupados em 600 famílias ocupacionais. Parte do mercado informal, como os catadores de papel e pessoas que ganham a vida como profissionais do sexo, foi reconhecida. Segundo o ministro do Trabalho, Carlos Lupi, a classificação facilita a realização de estatísticas de emprego – tanto levantamentos administrativos do governo quanto pesquisas domiciliares, como as realizadas pelo IBGE. Ela também é utilizada para o registro de informações sociais e cadastros de empregados e desempregados, Imposto de Renda e definições de políticas de emprego. Sabendo que uma profissão está em vias de extinção, o governo pode, por exemplo, destinar recursos para a qualificação em outra atividade daqueles que estão com sua ocupação ameaçada.
Cláudia Paiva, que chefia a divisão da CBO, confirma que o surgimento de novas tecnologias e a modificação das formas de organização do trabalho exigem uma atualização constante da documentação, para que espelhe com a maior fidelidade possível o mercado brasileiro. Profissões são acrescentadas à lista, renomeadas ou simplesmente excluídas, sempre a partir da demanda da própria sociedade. Se não há mais necessidade de um funcionário encarregado da remarcação de preços, atividade que desapareceu com o fim da inflação elevada, então a função é suprimida do catálogo. Nesse caso específico, ela acrescenta, a utilização da CBO como instrumento de políticas públicas de emprego e renda permitiu que os ocupantes dessa posição pudessem ser deslocados para outra atividade, como a de repositor de estoques.
A última CBO, editada em 2002 e sem prazo definido para nova atualização, já trouxe uma série de inovações em relação a sua versão anterior, de 1994. Entre as novas ocupações descritas estão as relativas a áreas com perfil claramente tecnológico, como biotecnologia, mecatrônica e informática. Mas as mudanças na CBO incluem, também, transformações derivadas do mercado, como o crescimento dos setores de serviços culturais e de comunicações.
"O Brasil, na América Latina, está mais adiantado que seus vizinhos na catalogação e no reconhecimento de cada uma das atividades profissionais que vêm sendo desenvolvidas no país", afirma Cláudia, acrescentando que, na região, apenas a Argentina dispõe de uma classificação da envergadura da brasileira. "E isso", declara, "tende a ser um fator-chave quando observamos uma tendência cada vez maior de fluxos migratórios de mão-de-obra entre os países participantes do Mercosul expandido (incluindo a Venezuela)." Em sua opinião, a CBO deverá num futuro próximo ter uma espécie de desdobramento, com as definições e uniformização das ocupações na América Latina.
Cláudia acredita, porém, que surgirão dificuldades. Mesmo no Brasil, uma ocupação pode ter várias denominações, de acordo com a região geográfica em que o pesquisador se encontre. "Imagine", diz ela, "quando isso for ampliado para outros países do Mercosul."