EXERCÍCIO
DA DESCONSTRUÇÃO
Medula
de toda produção teatral, a dramaturgia atravessa o tempo
dando a grupos e encenadores a deixa para criar novos estilos
Mais
uma montagem teatral da obra do dramaturgo inglês William Shakespeare.
O texto dessa vez é Hamlet, saga do atormentado príncipe
dinamarquês que se vê diante da morte do pai e da suspeita
sobre a mãe. Uma tragédia daquelas. Densa, soturna, perturbadora.
Só que, no palco, o clima não se apóia em uma ambientação
condizente com a Dinamarca de 1600 - ano em que se passa a história
-, tampouco mostra elaboradas roupas de época e menos ainda diálogos
seguindo o texto original. Onde está William Shakespeare? "A
trama básica está presente, mas queremos aproximar a peça
da nossa realidade", responde o ator e diretor Enrique Diaz, diretor
de Ensaio.Hamlet, de 2004. "Nem sempre encontro nas montagens de
Hamlet elementos que possam ser reveladores das questões do homem
de hoje." Não se trata de uma versão moderna de Shakespeare,
um Hamlet de jeans. Mais um estudo - um ensaio, daí o título
- do que uma montagem, Ensaio.Hamlet representa um tipo de trabalho
teatral que busca formas paralelas às da original para abordar
o tema de uma peça - seja ela um clássico, seja um texto
inédito. "Uma nova maneira de criar", como define o
crítico de teatro Sebastião Milaré, que explica
ainda a diferença entre adaptar uma obra e explorar sua dramaturgia:
"Quando você adapta, você pega um gênero literário
- um romance ou um conto - e passa para outro gênero, que é
a peça teatral", explica Milaré. "Há
casos também em que a própria peça teatral é
adaptada, sofre um ajuste para o elenco que a vai montar, por exemplo.
Já no caso da dramaturgia, o encenador trabalha os fundamentos
da obra, ele entra na criação do poeta, se arma de um
arsenal de conhecimento para poder trabalhar a raiz dessa dramaturgia,
e transformá-la lá na raiz."
Quase sempre esse processo é fruto do diálogo com os atores.
No entanto, há casos que deixam transparecer a mão do
encenador. É assim no Centro de Pesquisa Teatral (CPT), de Antunes
Filho, no Teatro Oficina, de José Celso Martinez Corrêa,
e nos espetáculos de Ulisses Cruz e Gerald Thomas, para citar
alguns exemplos. "Em A Pedra do Reino, de Antunes (2007), por exemplo,
foi feita a adaptação da obra literária de Ariano
Suassuna", conta Milaré. "Mas além dela há
todo um trabalho de dramaturgia que transforma, que consegue trazer
o universo do Ariano para a cena em elementos muito simples, muito singelos.
Isso é criação, é ir lá na fonte,
beber com o poeta e transformar isso numa imagem cênica."

Processo colaborativo
Há formas de trabalho em que a dramaturgia surge da criação
coletiva. Assim é com os paulistas Cia. Livre, Os Satyros e Teatro
da Vertigem; com os cariocas Cia. dos Atores e Armazém de Teatro;
com os paranaenses Cemitério de Automóveis e Ateliê
de Criação Teatral (ACT); e com o paraibano Grupo Piolim.
"Quando montamos Daqui a Duzentos Anos, optamos por desenvolver
um trabalho com os contos de Anton Tchecov [dramaturgo russo] depois
de mais de seis meses de pesquisa", conta o ator Luís Melo,
coordenador do ACT, falando do espetáculo de 2004 encenado em
São Paulo no Sesc Belenzinho. "Esse foi o formato por meio
do qual iniciamos nosso exercício de dramaturgia. Ou seja, exercitamos
os personagens e as situações dramáticas até
conseguirmos atingir a simplicidade que queríamos para as cenas."
A pesquisa também foi o caminho escolhido pela Cia. Livre para
moldar a dramaturgia de Vem Vai - O Caminho dos Mortos, que ficou em
cartaz até dia 27 de julho na unidade provisória Avenida
Paulista. Assim como foi em Arena Conta Danton, peça que o grupo
encenou no Teatro de Arena, em 2004, a dramaturgia de Vem Vai calca-se
num processo colaborativo. "Antes de o Newton Moreno [que assina
formalmente a dramaturgia] chegar, foram dez meses de pesquisas, estudos
e deglutição de um vasto material que a gente tinha",
conta a diretora Cibele Forjaz. O processo incluiu interpretações
cênicas do que era estudado. "Nós fazíamos
as cenas, mas não pensando em apresentá-las", conta
Lúcia Romano, atriz do time dos "atores-criadores",
designação dada aos integrantes do grupo no programa da
peça. "Nós somos atores, era o nosso jeito de estudar",
complementa Cibele.
A doutora em teatro pela Universidade de São Paulo (USP) e professora
da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Maria Lúcia Candeias
afirma que "a riqueza" da dramaturgia garante seu lugar na
base sustentadora de qualquer espetáculo. "Sou daquelas
pessoas que acreditam que mesmo num teatro sem palavras há uma
dramaturgia", afirma. "Uma dramaturgia moderna que às
vezes gira em torno de um tema ou dois, mas que, de modo geral, tem
sido apresentada no nosso teatro de várias formas." Entre
os exemplos, Maria Lúcia destaca Arena Canta Danton, Ensaio.Hamlet
e Gaivota - Tema para Um Conto Curto, também com direção
de Enrique Diaz e criação da Cia. dos Atores, que esteve
no Sesc Pinheiros até 15 de julho. "Reunir um time de atores
e diretores vai ao encontro da proposta de colaboratividade do projeto",
afirma Diaz sobre Gaivota. "São olhares diversos que contribuíram
para uma releitura contemporânea de um texto-pilar da dramaturgia
[A Gaivota, de Anton Tchecov]".
Sem
verborragia
No caso do CPT, que Antunes Filho coordena no Sesc Consolação
desde 1982, são marca registrada as versões particulares
do encenador - como Medéia (2001), criada com base na tragédia
grega homônima do dramaturgo grego Eurípedes, e a recente
A Pedra do Reino -, mas a produção do núcleo também
reserva espaço para novos nomes - como foi com Paulo Santoro,
novato de cujo texto Antunes montou O Canto de Gregório, em 2004,
e como tem sido com o projeto Prêt-à-Porter, no qual os
atores são responsáveis por toda a dramaturgia da série
de espetáculos que se encontra em sua oitava versão. "Houve
uma época em que a gente pirou com os textos e escrevia coisas
que nem cabiam na boca, palavras impossíveis", conta Emerson
Danesi, ator do CPT que está em Prêt-à-Porter 8,
em cartaz até 25 de agosto no Sesc Consolação.
"Mas com o tempo a gente foi entendendo que para ter poesia e qualidade
no texto não é necessário verborragia." Antunes
Filho tem apreço por esse método de trabalhar. Não
raro, o encenador afirma que sem Prêt-à-Porter não
faria o teatro que faz hoje. "Eu não teria feito Medéia,
por exemplo", diz. E arremata: "Eu quero que surja entre meus
atores um dramaturgo no nível aproximado de Nelson Rodrigues".
Retorno
aos mestres
No entanto, essa dramaturgia moderna não é exatamente
nova. "Os valores dramatúrgicos são os mesmos de
sempre", afirma Sebastião Milaré. "São
coisas que estão mais ou menos convencionadas e que permanecem
iguais. Agora, é claro que no andar da carruagem a própria
dramaturgia vai se desenvolvendo, abrindo campos, novas maneiras de
enfocar os velhos assuntos e tudo mais." O que pode servir como
característica comum da produção atual é
o que Maria Lúcia Candeias chama de uma "retomada das formas
anteriores de criação". Um retorno a mestres como
Beckett e Tchecov, mas não somente a seus textos, também
a seus métodos de trabalho. "Tchecov, no século 19,
resolveu focar em personagens que se caracterizavam mais por timidez
e inação, e Beckett radicalizou muito mais a inação,
já que nunca acreditou na comunicação verdadeira
entre dois seres humanos, tampouco na própria utilidade das ações."
Segundo a professora, a ancestralidade desse método passa ainda
pela intelectualidade francesa da metade do século 20, mais especificamente
pela figura do filósofo Jacques Derrida (1930-2004), que "exerceu
influência na desconstrução das artes", outra
característica dessa dramaturgia de investigação.
"Não é à toa que pintores como Picasso tentaram
fragmentar o real através em seus quadros", explica a especialista.
"São essas as fontes dessa dramaturgia que teve sua primeira
criação coletiva com Oh, Que Delícia de Guerra!
(1966), de Joan Littlewood [diretora de teatro inglesa]. Sem falar nos
grupos americanos como o Living Theater".
O crítico Sebastião Milaré conclui explicando que,
na América Latina, o pioneirismo partiu da Colômbia. "A
criação coletiva começou a ser mais sistematizada
por Henrique Buenaventura e por Santiago Garcia - em dois grupos, o
primeiro era o Teatro Experimental de Cali e o segundo era La Candelaria",
conta. "Foi com eles que a criação coletiva passou
a ser utilizada como um instrumento a mais para um grupo de teatro que
quisesse trabalhar sua própria dramaturgia."
Ver Boxes:
Dramaturgia
na tela
Outros
palcos
Dramaturgia na tela
Projeto
do SescTV e TV Cultura cria espaço de experimentação
para o teleteatro
Iniciado
no mês de julho, o projeto Direções - Um
Novo Olhar na Teledramaturgia, série de teleteatros que
tem orientação artística de Antunes Filho,
foi criado com o intuito de renovar a linguagem dramatúrgica
da TV. Para isso, reuniu conceituados encenadores de São
Paulo, encarregados de unir as linguagens do teatro e da televisão
em programas que, durante o mês de julho, foram ao ar
aos sábados, às 23 horas, em ambos os canais.
A grade de agosto marca o final da primeira fase do projeto
que visa a testar o protótipo do programa. "Se a
formação no país fosse melhor, aumentaria
o nível de exigência", afirma o diretor Marco
Antônio Braz, que adaptou Quando as Máquinas Param,
de Plínio Marcos. "Daí a importância
desse espaço livre para a experimentação,
para o olhar agudo sobre a realidade de um Plínio Marcos,
para uma outra formulação artística sem
a padronização das novelas." O diretor André
Garolli - que dirigiu e adaptou Pária, do dramaturgo
sueco August Strindberg - enxerga o valor da teledramaturgia,
mas lamenta também que ela tenha se restringido ao formato
das telenovelas. "O que faltava era espaço para
veicular peças [de teatro] na televisão",
afirma. "É uma oportunidade única, pois não
temos de nos preocupar com o retorno do Ibope." Confira
horários e sinopses:
Pária,
de August Strindberg
Adaptação e direção: Eduardo Tolentino
de Araújo
Sinopse: num diálogo sem interrupções,
dois homens revelam um passado de crimes que ficaram impunes
e confrontam a sua conduta num duelo intelectual.
Quando: dia 4, às 23 horas, no SescTV
Quando
as Máquinas Param, de Plínio Marcos
Adaptação e direção: Marco Antônio
Braz
Sinopse: cinco quadros representam cinco dias na vida do casal
Zé e Nina, um desempregado e uma dona de casa que tentam
sobreviver na dura realidade econômica e social na qual
estão inseridos.
Quando: dia 5, às 21 horas, na TV Cultura, e dia 11,
às 23 horas, no SescTV
Zona
de Guerra, de Eugene O'Neill
Adaptação e direção: André
Garolli
Sinopse: um jovem se emprega num cargueiro inglês que
contrabandeia munição durante a Primeira Guerra
Mundial. A partir de uma desconfiança gerada por uma
caixa preta em poder do rapaz, a tripulação suspeita
que ele seja um espião a serviço dos alemães.
Quando: dia 12, às 21 horas, na TV Cultura, e dia 18,
às 23 horas, no SescTV
Homeless,
de Noemi Marinho
Adaptação: Noemi Marinho
Direção: Francisco Medeiros
Sinopse: por meio de personagens que representam tipos - como
o velho, o jovem e o travesti -, o texto fala de como a classe
média "expulsa do paraíso" tem de lidar
com a realidade das ruas da cidade.
Quando: dia 19, às 21 horas, na TV Cultura, e dia 25,
às 23 horas, no SescTV
Serviço:
O SescTV pode ser sintonizado pelos canais 211 da DirectTV;
3 da Sky; 10 da TecSat; e 92 da NET Digital. Para maiores informações
consulte o site www.sesctv.org.br
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Outros
palcos
Grupos
e encenadores que formaram a rede teatral da segunda metade
do século 20
Anos
60 - Experimentalismo na dramaturgia e resistência
política são duas das principais marcas do teatro
produzido no Brasil na era pós-Teatro Brasileiro de Comédia
(TBC), este um ícone do teatro tradicional no Brasil.
Grupos como o Teatro de Arena e o Teatro Oficina são
grandes exemplos. "As coisas do Arena, por exemplo, vão
resultar em todo o trabalho do Augusto Boal e em obras como
Arena Canta Zumbi [musical escrito por Gianfrancesco Guarnieri
e Augusto Boal em 1965]", esclarece o crítico Sebastião
Milaré. "Já o Zé Celso, do Oficina,
fez o Rei da Vela [a partir de peça homônima de
Oswald de Andrade], e depois todo o trabalho sobre Brecht [Bertolt
Brecht, dramaturgo alemão]. Tudo era uma belíssima
experimentação."
Anos
70 - Atuante no Rio de Janeiro desde 1974, o grupo Asdrúbal
Trouxe o Trombone chegou a São Paulo em 1978, com o espetáculo
Trate-me Leão - síntese da cena da época.
"Os 'asdrúbals' mostravam um trabalho sobre o cotidiano
da geração que completava 20 anos na década
de 70", escreve a doutora em teatro pela Universidade de
São Paulo (USP) Silvia Fernandes em Grupos Teatrais -
Anos 70 (Editora da Unicamp, 2000). "Invadiam a cena com
temática, personagens e modo de representar que definiam
novas colocações diante de questões como
política, sexo, drogas, prazer e teatro."
Anos
80 - Tido como um dos grupos que prepararam o terreno para
o pessoal da década de 90, o Mambembe surgiu como uma
luz no fim de um túnel cheio de jovens criadores "muito
perdidos", de acordo com o crítico Sebastião
Milaré. Além do Mambembe, outro importante núcleo
teatral marcou a cena da época, o Grupo Pau Brasil, de
Antunes Filho, que, depois de se tornar Grupo de Teatro Macunaíma
- por conta do sucesso do espetáculo homônimo apresentado
em 1978 (foto) -, se instala em 1982 no Sesc Consolação.
É criado então o Centro de Pesquisa Teatral (CPT),
do Sesc São Paulo.
Anos
90 - Dos muitos grupos surgidos durante a década
de 90, dois conquistaram lugar cativo na cena do teatro contemporâneo.
Um deles é o Teatro da Vertigem, com suas apresentações
em espaços não convencionais, como hospitais,
igrejas e presídios. "Eles deram característica
à pesquisa de transformar o próprio espaço
em um personagem", afirma o crítico Sebastião
Milaré. O outro, Os Satyros, que usam a própria
localização, a Praça Roosevelt, na região
central de São Paulo, como fermento em sua dramaturgia.
Exemplo é Transsex (2004), primeira parte da Trilogia
da Praça Roosevelt, que trata do cotidiano dos moradores
transexuais da praça (foto).
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