Postado em 01/05/1999
O que leva os rapazes Orlando, Cláudio e Leonardo, todos com vinte e poucos anos a se embrenharem na mata no começo da década de 1940? Difícil a resposta. Nem mesmo um dos protagonistas sabe identificar as razões exatas. Aventura não é adequado. Desencanto também não serve. Talvez fosse a premonição de que algo extraordinário viesse a acontecer. Para os irmãos Villas Bôas, a decisão de cinqüenta anos atrás rendeu o presente e o futuro. Foram quarenta anos de mata e cerrado, enfurnados nos cantos mais ignorados, livres do homem civilizado (as famosas manchas brancas dos mapas demográficos). Por causa da família, o Brasil deixou de pender, como mesa sem calço, para o Oriente. No rastro dos irmãos, cidades foram erguidas, riquezas descobertas, amigos conquistados e histórias desvendadas. Infelizmente, a infâmia da ganância destruiu os primeiros ideais e no lugar do progresso alastrou-se uma impiedosa destruição, que apesar dos esforços, nem os Villas Bôas conseguiram evitar. A seguir, o irmão Orlando, em entrevista exclusiva, relata episódios de um Brasil perdido e lamenta a situação atual dos índios.
No ano que vem completam-se 500 anos do descobrimento. Esse é um motivo para celebrar ou para lamentar?
Para nós, brasileiros, é motivo de regozijo porque ganhamos um continente. Para os índios foi uma infelicidade, porque os invasores não devolveram o que deveriam. Pelo menos é o que se esperava que fizessem. Manter o respeito: a legalização das áreas ocupadas por eles. Isso desapareceu na fumaça do tempo.
Como foi o seu retorno ao Xingu, na ocasião da morte do seu irmão?
Quando meu irmão, Cláudio Villas Bôas faleceu, foi realizado no Xingu um cerimonial que se chama "kuarup", que significa a ressurreição do morto. Aquele que morre, depois do "kuarup", revive numa aldeia no céu ("umanô retam"). "Kua" quer dizer sol e "rup", madeira. Ou seja, sol na madeira. Madeira que se transforma em gente e solta a alma do morto. A alma vai para o céu e fica lá. O índio crê em três almas. Uma fica no sepulcro, a segunda tenta chegar ao céu mas é comida pelos pássaros, e a terceira chega ao céu e chama-se "iã katu" (a alma boa). O cerimonial é muito significativo para o índio. Desse dia em diante, nenhum índio pode reverenciar mais o morto porque ele não está mais morto. Esse cerimonial é realizado apenas em memória do índio de linhagem ou daquele pelo qual eles nutriam um sentimento especial.
O senhor não acha que o homem civilizado deveria conhecer mais a cultura do índio?
Claro, mas acontece que a política do invasor foi totalmente inversa. Eles vinham de uma Europa desgastada. Existia naquela época uma madeira na Ásia e na África que se chamava pau-brasil. A coqueluche da Europa era essa madeira, por causa da tinta que dela se extraía. Imediatamente, os invasores pensaram em exportá-la para a Europa, mas não estavam dispostos a pegar o machado e derrubar a madeira. Eles queriam que o índio fizesse isso. Esse foi o primeiro movimento de condenação do índio ao trabalho escravo. Mas ele não se prestou a isso. Por sua vez, embora bem intencionados, os padres jesuítas destruíram a cultura indígena. A figura de um novo Deus surgia e o índio não podia conceber a nova idéia. Na história, houve duas violências: a escravizadora dos jesuítas e a dos bandeirantes, que pretendiam apresá-los para vendê-los em São Paulo. Uns destruíam fisicamente e outros, culturalmente.
Qual era a intenção da Marcha do Oeste e da Expedição Roncador-Xingu, iniciada em 1943?
Nós estávamos em plena Segunda Guerra. A tônica da guerra é a do espaço vital e o Presidente da República, Getúlio Vargas, era um sujeito do interior e queria conhecer o Brasil. Em uma das viagens que fez a Goiânia, sobrevoou a região do Araguaia, voltando profundamente chocado com o vazio que observara. O Brasil era um país de faixa litorânea. Assim, ele resolveu criar uma expedição para conhecer a terra desocupada. É claro que ele não esperava que essas expedições fossem popularizar tudo, ele pretendia que abrissem caminho para o movimento de interiorização. A Expedição Roncador-Xingu tinha por objetivo fazer um roteiro até as águas do rio Tapajós.
Como foi organizada a Roncador-Xingu?
Ela foi criada como órgão de vanguarda da Fundação Brasil Central. A expedição começou a sentar base nas margens do Araguaia, em um lugar que se chamava Barra Goiana, hoje Aragarças. Do outro lado do rio já era Mato Grosso, uma vila que se chamava Barra Cuiabana, hoje Barra do Garça. O interior era desconhecido. Foi uma surpresa quando, da base do rio das Mortes, começamos a enxergar colunas de fumaça. Ninguém sabia o que era aquilo. Num sobrevôo, o chefe da expedição reconheceu uma série de aldeias: eram os índios xavantes, os mais bravos daquela época. Para cumprir o trajeto, a expedição teria de passar o Roncador, o coração da aldeia. Precisávamos de mais trabalhadores. Encontramos essa gente nos garimpos, os chamados "homens sem-lei" do Brasil central. Contratamos dezesseis homens. O Exército forneceu armas e munição. Cada trabalhador acostumado a matar recebia um mosquetão com cinqüenta tiros. Havia um receio muito grande de que no contato com os índios houvesse alguma escaramuça. Mas em toda a campanha não foi dado um só tiro. Nós fizemos a atração dos xavantes apenas onze meses depois de chegarmos na mata. Durante esse período, fomos atacados dezoito vezes. O índio foi um acidente na marcha da expedição. Nós não esperávamos encontrá-lo. A nossa função era cortar o Araguaia/rio das Mortes, rio das Mortes/Kuluene, Kuluene/Xingu, Xingu/Terra do Cachimbo e de lá para Tapajós.
E como era o contato com os índios?
Cada um falava a sua língua e eu o português. Fui aprendendo umas coisinhas, mas nós tínhamos doze línguas diferentes. Eu cheguei a falar muito bem umas quatro ou cinco.
Como o senhor e seus irmãos se integraram à expedição?
Nós procuramos o chefe da expedição para seguir com a Roncador-Xingu. Mas ele nos informou que não contratariam gente da cidade, apenas sertanejos. Eles se referiam a eles como "os analfabetos". Como não fomos contratados, saímos daqui e rumamos para Goiás Velho, na tentativa de encontrar a expedição em Barra Goiana. De lá, caminhamos até o rio Araguaia, 170 quilômetros. Compramos uma canoa e remamos 52 léguas (cerca de 300 quilômetros) rio acima em dezoito dias. Quando encontramos a expedição, nos fingimos de sertanejos para podermos trabalhar. Eu fui auxiliar de pedreiro, Cláudio e Leonardo foram trabalhar na enxada. Até que um dia nós fomos descobertos como alfabetizados. Tornei-me secretário da base; o Cláudio, chefe do pessoal e Leonardo, chefe do almoxarifado. Em 1946, o chefe da expedição voltou para o Exército e eu assumi o lugar dele. Aí nós tocamos a expedição até o fim.
E de onde vem esse espírito aventureiro?
Não é aventureiro. Nós morávamos em São Paulo, mas nascemos em Botucatu. E São Paulo sempre foi uma cidade hostil para quem chega. Quando nós perdemos nossos pais um logo após o outro, resolvemos voltar para o sertão. Então, voltamos para o interior do Brasil. Mas seria ingrato se voltássemos pela Sorocabana em direção a Botucatu. O destino tinha que ser outro. E quando estávamos com isso na cabeça, Getúlio criou a expedição.
Qual foi o saldo dessa expedição?
Da nossa caminhada nasceram cinqüenta cidades. Outra coisa, só na Serra do Roncador há sessenta ou setenta fazendas-modelo. E o Brasil se expandiu para o interior. De Uberlândia para o Araguaia, expandiu-se para cima. As antigas Barra Cuiabana e Goiana hoje são duas grandes cidades, Barra do Garça e Aragarças. Só na Serra do Roncador há mais ou menos 25 cidades. Do rio das Mortes até a mata do Iguarapú há cerca de vinte cidades, tudo no asfalto.
Esse movimento rumo ao Oeste não foi prejudicial ao índio?
Não, porque eles foram se acomodando em outras áreas. No Xingu, nós criamos um parque. Hoje, dezoito nações vivem no Parque Nacional do Xingu. É intocado. Nós dissemos a eles que o estranho que pisar ali, eles podem expulsar. Se eles não saírem, podem atacar. Já morreu muita gente.
Mas, e a questão ambiental?
As áreas foram violentadas. Nas fazendas à margem do rio Kuluene não têm mais árvore, arrancaram tudo. Fizeram pastagem para boi, mas se você passar por lá não vê nenhum. A civilização é uma coisa terrível.
Isso foi, então, um desvirtuamento da intenção original da expedição?
Claro. Na área compreendida entre o rio Kuluene e Brasília não há mais mata, derrubaram tudo. Até o rio Araguaia e de lá até o Xingu também toda a mata está derrubada. Enquanto nós estávamos lá, não deixamos acontecer nada. Fazíamos um grande movimento. Brigamos com o governo do Mato Grosso, de Goiás, brigamos com todo o mundo. Mandaram matar pessoas. Quando nós fizemos o Parque Nacional do Xingu, havia muita gente mandada de Mato Grosso e Goiás para nos matar.
Hoje em dia, algumas populações indígenas, principalmente na Amazônia, vivem em áreas com uma biodiversidade imensa. Por outro lado, elas têm o domínio inato das plantas da região, dos minerais etc., o que interessa muito ao mundo civilizado. Como pode se resolver o paradoxo da pobreza dos índios que vivem em regiões tão ricas?
Quando o índio é de cultura pura, ele sobrevive. Ele não conhece nem a fome, nem o crime. Você não vê um índio morrer de fome. Não existe índio magro. Índio tem previsão. É uma sociedade que nós dá uma lição fantástica de comportamento. Coisas que nós nunca tivemos e nunca poderemos ter. Equilíbrio social. Dois índios de aldeias e línguas diferentes conversam sem se hostilizar. É claro que existem conflitos entre aldeias no processo de acomodação. Mas antipatia, discordância do ponto de vista ou comportamento não são motivos de confronto. Eu nunca vi uma mãe puxar a orelha da filhinha e nem um pai dar um croque na cabeça do filho. Para os índios, a criança é a dona do mundo. Ninguém diz a palavra "não" para ela. O índio é integrado à natureza como se ele fosse parte dela. Uma vez, eu estava tomando banho em um rio de 800 metros de largura e tinha um menino de uns 5 anos junto. De repente, ele saiu da água e foi fazer xixi fora. Eu perguntei por que ele não fez xixi na água. Ele me respondeu que não podia, pois o rio é sagrado e não pode ser maculado. O filho é suprema aquisição. A criança cresce vendo o que o pai faz e o que ele não faz. Nós não conhecemos o índio ainda. Quando o Brasil foi descoberto, existiam 5 milhões deles. Hoje nós temos 300 mil. Pagou-se o tributo de um milhão de índios por século! E, hoje, os chamamos de selvagens?! Desvirtuamos o índio. Antigamente, nós os enrolávamos dando um machado para ele roubar pau-brasil. Ou, senão, fazendo-os caminhar atrás de ouro e diamante. Hoje, exploram o índio através de sua cultura. É o caso do turismo. A minha luta agora é para colocar os turistas para fora! Da mesma forma que antes, estamos ganhando dinheiro à custa dele. Não com a enxada ou o machado, mas destruindo a sua cultura. E o índio, como toda criatura, é ambicioso. Se ele ganhar um automóvel, gostará. Quem não gostaria? Para ele, o mundo civilizado oferece coisas formidáveis.
Então, essa história de desenvolvimento sustentado não é assim tão honesta?
Não. Com a inferência do homem branco, o índio tem que abandonar sua cultura para poder se beneficiar. Do mesmo jeito, significa o fim dele como povo. É inexorável que isso aconteça.
E o que fazer com esses índios que já tomaram contato com a cultura dos brancos e que já estão de certa forma aculturados?
Seja aculturado ou não, o encargo disso é da Fundação Nacional do Índio, porque ele é um tutelado do Estado e, conforme a Constituição de 1988, a União tem que zelar pela terra ocupada, pela cultura e pela integridade física do índio. A qualidade da tutela depende do grau de sensibilidade do ministro. O Ministro da Justiça (responsável pela Funai), por exemplo, foi ao cerimonial do Cláudio e me confessou que nunca pensou que o índio fosse aquilo que estava vendo. Lá, havia mais ou menos dois mil índios e o ministro perguntou se eles tinham ensaiado para o cerimonial. Ninguém ensaia nada. São tribos que falam seis línguas diferentes. "Isso é cultura, uma só cultura", eu disse a ele. Acho que ele pensava que o índio ficava apenas correndo e matando as pessoas. O que ele estava imaginando era exatamente o que o português imaginava.
Por que tanto desconhecimento de uma cultura que, pelo menos geograficamente, sempre esteve tão próxima?
Porque essa é uma tarefa que se delegava ao antropólogo. E ele é um sujeito que pretende estudar a cultura indígena, mas quer apenas defender sua tese. Se ele fizer uma tese sobre alimentação, vai lá e pergunta o que se come ou se deixa de comer, como é o cozimento etc. Mas para o íntimo da cultura do índio, para suas reivindicações, ninguém dá importância. Estamos dando os primeiros passos rumo ao desaparecimento dele sem conhecê-lo.
O que fazer quando há interpolação entre a cultura do branco e a do índio? No caso de Paulinho Paiakan, por exemplo, as medidas foram corretas?
Não. Ele deveria ter sido julgado pelo tribunal dos índios. A Funai é que teria de conduzir isso. Ele era um índio tribalizado, apesar de já viver como um civilizado. Mas, no caso de invasão de terras indígenas no Xingu, os índios matavam o sujeito a faca. Mataram um soldado da FAB que tentou abusar de uma índia. Foi uma grande confusão.
Como foi a reconstrução da aldeia Iaualapiti?
Nessa aldeia, cujo chefe chamava-se Aritana e era cego, todos eram jovens. Quando ele morreu, as outras aldeias do Xingu avançaram sobre eles e levaram os índios, acabando com a aldeia Iaualapiti. Nós soubemos dessa história através de um índio chamado Kanatu, que morava com os kuicurus. Então, eu e o Cláudio corremos aldeia por aldeia, conversamos com os sobreviventes e recolhemos 24 iaualapitis em uma aldeia própria, perto do nosso acampamento.