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Cultura brasileira

Postado em 11/12/2006

 

 

 

 

A cultura caiçara reúne grande diversidade de costumes e crenças dos habitantes do litoral brasileiro, mas está ameaçada pela influência do modo de vida urbano

 

No filme Ele, o Boto, produção brasileira de 1987 dirigida por Walter Lima Jr., o protagonista, Carlos Alberto Ricelli, dá vida a uma antiga lenda de alguns povos do litoral brasileiro, que conta que nas noites de lua cheia, o boto - animal da mesma família do golfinho - sai das águas, assume a forma de um belo rapaz e corteja as mulheres da vila durante as festas populares. A história serve para ilustrar a riqueza do imaginário caiçara - pano de fundo para produções da teledramaturgia, como novelas e minisséries, e para a literatura, como os romances Tenda dos Milagres (1969) e Capitães da Areia (1936), do escritor baiano Jorge Amado. No entanto, a contribuição caiçara para a cultura nacional vai além das histórias contadas por seu povo. Seus costumes, festejos e culinária são verdadeiros testemunhos da trajetória do país.




A cultura caiçara é, historicamente, fruto da miscigenação entre colonizadores portugueses, índios das regiões litorâneas e ex-escravos que, após a libertação, concentraram-se à beira-mar. Essas comunidades são formadas, até hoje, em grande parte por pescadores e artesãos que também têm um modo de vida intimamente ligado à pequena agricultura e ao extrativismo. Esses povos foram, ao longo do tempo, adquirindo conhecimento aprofundado acerca do ambiente em que viviam e acumularam um repertório cultural da maior riqueza. São danças, músicas, costumes e vocabulário com inúmeras palavras de uso local, entre outras manifestações. "É uma gente simples, acostumada ao trabalho árduo de sol a sol e que se rege pelas fases da lua para determinar o melhor momento para plantar, pescar e caçar", declara Alice Branco, pesquisadora dos hábitos dessas comunidades e autora do livro Cultura Caiçara: Resgate de um Povo (Editora Etecê, 2005). "Esse povo praiano, em perfeita harmonia com o meio que o cerca, usa o mar como mercearia e geladeira, coleta na mata todos os seus medicamentos, cultiva a terra da planície litorânea fazendo-a produzir a contento, apesar da muita areia e pouca fertilidade dos solos da restinga [faixa de areia ou de pedra que se prende ao litoral e avança pelo mar]."



O barco, a rede e o peixe
Nas vilas caiçaras, é comum a construção de casas de pau-a-pique - entrelaçamento de ripas coberto de barro - e até hoje, muitas delas, não possuem energia elétrica. A base da alimentação é o peixe. Para consegui-lo, o caiçara utiliza o espinhel - uma extensa corda para prender os anzóis - e diferentes tipos de redes. Entre elas, a tarrafa, herdada de algumas tribos indígenas; o caceio, essa, que fica suspensa por bóias, de origem portuguesa e necessita geralmente de três pescadores para o manuseio; e o picaré, adequada para peixes pequenos e usada para pescarias rápidas. Embora o mar forneça boa parte do alimento para as comunidades, nem só de peixe são feitos os pratos caiçaras. São freqüentes a farinha de mandioca e a banana. Outros tipos de carne vêm do quintal - galinhas, patos e porcos criados para subsistência - ou ainda da mata, como o porco-do-mato, o tatu e o lagarto. Ovos e frutas, como a pitanga, o jambolão (ou jamelão) e o maracujá, também fazem parte dos hábitos alimentares. Completam o cardápio o milho, o cará, a abóbora, o chuchu e, como não poderia faltar, o arroz e o feijão.




Para ganhar o mar, são utilizadas embarcações típicas, como a canoa de um pau só, feita de um único tronco escavado, e a canoa de voga, também feita de um único tronco, mas comandada pelo voga, timoneiro que, sentado de costas para os remadores, mantém o rumo e marca o ritmo da remada. "Os caiçaras sempre estão de olho na maré e na Lua", ressalta Alice Branco. "Os sinais da Lua são definitivos para o entendimento do tempo e das condições do dia seguinte." Ainda para a pesca, são considerados também a posição e até o formato das nuvens, que mostram de onde o vento sopra. Essa combinação de fatores possibilita uma espécie de "diálogo com o mar", e permite que se saiba se é prudente sair e se a volta será segura.




O artesanato, uma das fontes de renda para o caiçara, é feito de matérias-primas locais. São cestarias, trançados para tapetes e redes, e objetos de barro. Os cestos são feitos quase sempre de plantas como o imbé e a taquara. As tranças são feitas de um arbusto chamado embira, de taboa - ou tabua - e também de palha. Da madeira vêm canoas, móveis, esculturas e alguns objetos menores, como conchas, cuias e um recipiente grande e raso chamado gamela.



As festas
Diversas festas populares - tanto religiosas, a maioria ligada a santos da Igreja católica, quanto as que acontecem fora do calendário católico - são celebradas pelas comunidades caiçaras e tomam as praças centrais dos vilarejos. O cantor e compositor Luiz Perequê, um dos fundadores do Silo Cultural José Kleber, centro de cultura caiçara localizado na cidade de Paraty, estado do Rio de Janeiro, explica que os festejos geralmente misturam música e encenações teatrais. "O cotidiano caiçara e suas histórias de vida são as grandes fontes de inspiração para as músicas", conta. Segundo ele, nessas festas são apresentadas danças folclóricas, como a xiba - também conhecida como bate-pé ou cachorro do mato -, típica de Paraty e da região litorânea paulista de Ubatuba; a folia de reis, comum em todo o litoral; a ciranda, também de Paraty, mas encontrada na versão chamada fandango em outras regiões; a dança da fita, também de vários lugares; e a congada de São Benedito, mais concentrada no Vale do Paraíba, em São Paulo.



O caiçara hoje
As comunidades caiçaras vêm sentindo cada vez mais as influências do mundo moderno. O contato leva estudiosos e os próprios habitantes a atentar para mecanismos de preservação das tradições, dos valores e dos ambientes naturais dessas regiões. Mas foi impossível impedir a proximidade do homem urbano e com ela a mudança do estilo de vida ligado à natureza. Esse é um dos temas tratados no livro Saberes Tradicionais e Biodiversidade no Brasil (Ministério do Meio Ambiente, 2002), organizado pelo professor de ciências ambientais da Universidade de São Paulo (USP) Antônio Carlos Diegues - que é diretor científico do Núcleo de Apoio à Pesquisa sobre Populações Humanas em Áreas Úmidas Brasileiras (Nupaub) e também autor da Enciclopédia Caiçara, editada pelo núcleo -, em parceria com o antropólogo Rinaldo Arruda, professor do Departamento de Antropologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Segundo os autores, "as comunidades caiçaras passaram a chamar a atenção de pesquisadores e de órgãos governamentais (...), em virtude das ameaças, maiores a cada dia, à sua sobrevivência material e cultural". O texto explica também que a contribuição que esses povos têm dado à conservação da biodiversidade tem sido cada vez mais reconhecida e valorizada, "dado o conhecimento que possuem da fauna e da flora e pelos sistemas tradicionais de manejo dos recursos naturais".

 

 


Entre as ameaças ao estilo de vida das populações praianas e ao próprio meio ambiente estão a especulação imobiliária nessas regiões, que leva as populações locais para longe da área costeira - muito valorizada - e dificulta suas atividades pesqueiras. O turismo de massa também tem sua responsabilidade. Se, por um lado, a atividade incrementa a economia regional, por outro, quando não regulamentada e fiscalizada, põe em risco o equilíbrio nas matas e praias.


 




A professora Alice Branco explica que a preocupação acerca da chegada da modernidade aos vilarejos vem também do fato de que uma cultura como a caiçara não tem mecanismos de competitividade suficientes para sobreviver às pressões da sociedade urbana. "É nesse choque de valores que as tradições podem se perder", diz. "O cuidado deve estar em não permitir que se rompam os laços com as raízes, basicamente ensinamentos indígenas que, até mesmo, possibilitaram a sobrevivência dos primeiros portugueses nas matas litorâneas, como o uso das ervas medicinais na cura de diversos males."

 

 

 

 

 

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Vida de Caiçara


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Vida caiçara

 


Eventos realizados no Sesc Bertioga buscam difundir e valorizar a riqueza cultural das comunidades praianas e estimular o conhecimento da flora e da fauna marinhas

 

 

Com o intuito de chamar a atenção para a importância da preservação da identidade das cidades litorâneas do estado de São Paulo, o Sesc Bertioga, com assessoria do Núcleo de Apoio à Pesquisa sobre Populações Humanas em Áreas Úmidas Brasileiras (Nupaub), da Universidade de São Paulo (USP), deu início ao projeto permanente Cenas da Cultura Caiçara. O programa faz parte de uma ação de integração que o Sesc Bertioga já desenvolve com as comunidades locais, trabalho que inclui ainda a realização sistemática de eventos esportivos, apresentações mensais de música e debates. Entre as atividades principais do projeto, ocorreu de 9 a 11 de novembro o seminário Cultura Caiçara e Suas Transformações, composto de conferências e mesas-redondas. Durante os três dias de atividades, estudiosos discutiram assuntos como a preservação cultural e também a melhoria da qualidade de vida da população caiçara. Outro destaque foi a instalação Espaço Caiçara (fotos), que apresentou o trabalho de artistas da Reserva Ecológica Juréia-Itatins, na região de Iguape. Os trabalhos reproduziram os estilos de habitação das vilas, as casas que produzem a farinha de mandioca, os ranchos onde são construídas as canoas, e ainda ambientes naturais, como roçados, palmitais e pomares. Uma programação paralela contou com shows, apresentação de teatro e exibição de documentários que registraram as diversas manifestações culturais da região da Juréia.



Outro evento da unidade, a Expedição Buriki-mar - que segue até 8 de dezembro -, concentra-se em aspectos da vida marinha e procura estimular os visitantes a conhecer a rica flora e fauna do mar por meio de instalações interativas.


 

 

 

 

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